07 dezembro 2024

HERÓIS EM AÇÃO: NOVOS TITÃS


  A Justiça ganhou vigor juvenil quando os eternos sidekicks saíram da sombra dos seus mentores para, juntos, alisarem as rugas do mundo e darem voz à nova geração. Já sem o idealismo adolescente, mas sempre com uma nobreza acima da idade, na década de 80 foram a vanguarda da revolução que salvou a DC da irrelevância. 


Denominação original:  Teen Titans
Editora: DC 
Criadores: Bob Haney e Bruno Premiani
Estreia: Com data de capa de julho de 1964, Brave and the Bold #54 é comummente apontada como a edição de estreia da Turma Titã (como a equipa original ficou conhecida no Brasil). No entanto, isso é apenas parcialmente verdade. 
Na história em apreço, Robin, Kid Flash e Aqualad agem em conjunto, mas de forma casual, sem qualquer referência aos Titãs. Foi preciso esperar mais um ano para, em Brave and the Bold #60, o grupo - entretanto convertido em quarteto com a entrada da Moça-Maravilha - ganhar estatuto e designação oficial. Tecnicamente, foi nesta edição que a Turma Titã foi fundada.
Local de formação: Hatton Corners
Membros fundadores: Robin, Kid Flash, Aqualad, Moça-Maravilha e Ricardito. Este último, apesar de só se ter juntado ao grupo em Teen Titans #4 (1966), obteve a posteriori o estatuto de membro fundador, quando, em finais de 1967, substituiu o Menino Prodígio - cujos direitos estavam alocados à série televisiva do Duo Dinâmico - no segmento reservado à Turma Titã em The Superman / Aquaman Hour of Adventure, uma animação de baixo orçamento produzida naquele ano pela Filmation.
Base operacional: Apesar de ser o quartel-general mais icónico do grupo, a Torre Titã só foi introduzida nos anos 80. Uma imponente estrutura de vidro e aço instalada numa ilhota ao largo de Nova Iorque, a torre original foi projetada por Silas Stone, o pai de Cyborg. 
Inicialmente, Robin e companhia usavam como base secreta o Covil dos Titãs, um silo abandonado das Empresas Wayne localizado sob um penhasco adjacente ao rio Gotham, cedido por Bruce Wayne a Dick Grayson.
Némesis: Trigon, Exterminador e Irmão Sangue compõem a profana trindade de arqui-inimigos dos Titãs. De entre eles, o terceiro, devido ao tipo de mal que representa, será porventura o mais perigoso. Líder supremo da Igreja do Sangue, o Irmão Sangue personifica o fanatismo religioso em nome do qual são cometidas atrocidades inomináveis. Nessa medida, o vilão, sempre à cabeça de um exército de seguidores devotos, protagonizou algumas das histórias mais perturbadoras do grupo. 

Trindade profana: Trigon, Exterminador e Irmão Sangue.


Ídolos da juventude

Sidekick é uma daqueles anglicismos com que qualquer apreciador da cultura popular está sobejamente familiarizado, mas cuja origem poucos conhecem. Crê-se que o termo terá sido cunhado, em finais do século XIX, por carteiristas ingleses. Na gíria dos amigos do alheio, "kick" era o nome dado ao bolso frontal de umas calças, considerado o mais seguro contra furtos. Assim, por analogia, "sidekick" (bolso lateral) passou a designar o companheiro mais próximo de alguém, aquele que a pessoa traz sempre à ilharga.
Como recurso narrativo, os sidekicks são quase tão antigos quanto a própria Literatura. Um dos primeiros exemplos documentados remonta mesmo à Antiguidade. No poema épico Epopeia de Gilgamés, os deuses criam Enquidu, um homem selvagem que, após um confronto inicial, se torna amigo do protagonista e passa a acompanhá-lo na sua jornada heroica.
O companheiro do herói é, com efeito, um elemento comum da ficção literária, popularizado por figuras como Sancho Pança (D. Quixote) ou o Dr. Watson (Sherlock Holmes), e que funciona normalmente como contraponto da personagem principal. Nesse sentido, tanto pode servir de alívio cómico, elo com a audiência ou consciência moral do protagonista.
Quando o género super-heroico surgiu, nos anos terminais da década de 1930, os sidekicks foram incorporados de forma peculiar nas histórias dos justiceiros fantasiados. Quase sempre em pleno fervor da puberdade, esses coadjuvantes tinham como função primordial gerar identificação com o público infantojuvenil, que nem sempre apreciava a sisudez dos heróis adultos.
Pioneira na variante do ajudante adolescente, a DC apresentou aquele que foi o protótipo de todos os sidekicks da Arte Sequencial: Robin, o fiel escudeiro do Batman, foi apresentado logo em 1940. O sucesso do binómio Cavaleiro das Trevas/Menino-Prodígio fez escola na Idade de Ouro, mas foi somente na Idade de Prata que outros heróis proeminentes da Editora das Lendas - como Aquaman, Arqueiro Verde, Flash e Mulher-Maravilha - adquiriram os seus próprios adjuntos imberbes. Graças ao seu charme pueril, Aqualad, Ricardito, Kid Flash e Moça-Maravilha tornaram-se ídolos da juventude, em alguns casos chegando mesmo a ombrear em popularidade com os seus mentores.

Apesar de ter sido o primeiro dos sidekicks nas histórias de super-heróis,
Robin também viveu aventuras a solo.
A primeira foi apresentada em Star Spangled Comics #65 (1947)

Na senda desse precedente, era uma questão de tempo até os heróis juniores se aventurarem juntos. Tanto mais que, com a eclosão do Baby Boom, logo após o fim da II Guerra Mundial, tinha surgido e alastrado pelo mundo uma cultura focada nos adolescentes e jovens adultos que encontrou no Rock and Roll a sua banda sonora de eleição.
Também nos meandros dos quadradinhos americanos essa mudança radical nos hábitos e preferências das camadas mais jovens da população não passou despercebida. À boleia do inesperado sucesso da recém-criada Patrulha do Destino (Doom Patrol), o editor da DC George Kashdan solicitou a Bob Haney, escritor veterano e coautor do conceito, uma proposta para a criação de um novo supergrupo.
Sem pensar muito, Haney sugeriu que os principais sidekicks da DC fossem agrupados. Ideia que, em abono da verdade, não era propriamente inovadora. Em 1941, Joe Simon e Jack Kirby, então ao serviço da Timely Comics (antepassada da Marvel), haviam desenvolvido um conceito similar. Os Jovens Aliados (Young Allies) eram um grupo de aventureiros adolescentes encabeçado pelos valetes do Capitão América (Bucky Barnes) e do Tocha Humana (Centelha). Ademais, a própria DC lançara, em 1958, a Legião dos Super-Heróis, um grupo de adolescentes futuristas criados como coadjuvantes das histórias do Superboy.

Capitaneados por Bucky, os Jovens Aliados foram o primeiro grupo de
heróis adolescentes (e os primeiros a terem título próprio).

Inédito ou nem tanto, o conceito elaborado por Haney precisaria ser devidamente testado. Convertido, desde 1959, em tubo de ensaio para o lançamento de futuros títulos - e tendo-lhe cabido a honra de apadrinhar a exitosa estreia da Liga da Justiça da América - , The Brave and The Bold perfilou-se como escolha óbvia. O 54º número da revista, saído do prelo em abril de 1964, incluía no seu alinhamento uma história, escrita por Bob Haney e ilustrada por Bruno Premiani (seu parceiro criativo na Patrulha do Destino), em que Robin, Aqualad e Kid Flash eram chamados a mediar o conflito intergeracional que opunha os adolescentes aos adultos de Hatton Corners.
A tarefa dos jovens titãs da justiça, já de si desafiante, complicou-se ainda mais com a entrada em cena do Senhor Ciclone (Mister Twister), um supervilão capaz de controlar o clima e que havia sequestrado todos os adolescentes da cidade. Renovando a validade do velho aforismo "A união faz a força.", o trio de heróis juniores derrotou o Senhor Ciclone e reconciliou as gerações desavindas de Hatton Corners. No final da história os três seguiram caminhos separados, mas com a promessa de voltarem a encontrar-se.

Página de abertura de The Brave and The Bold #54, na qual os protagonistas
surgem identificados individualmente, sem qualquer referência
aos Titãs.

Com efeito, a aliança dos protegidos de Batman, Aquaman e Flash voltaria a ser colocada à prova no verão de 1965. Em The Brave and The Bold #60, publicado em julho desse ano, a Robin, Aqualad e Kid Flash juntou-se a Moça-Maravilha, e os quatro constituíram-se no grupo por ela batizado de Turma Titã (Teen Titans).
Sucede que, diferente dos seus colegas de equipa, a Moça-Maravilha não havia sido criada para ser parceira da Mulher-Maravilha, mas sim a versão jovial da própria. Sem maiores explicações, Bob Haney apresentou Donna Troy como a irmã mais nova de Diana e o resto é história.
No final de 1965, a Turma Titã foi novamente reunida, mas desta feita em Showcase #8, e já sob o lápis de Nick Cardy. Principiava, assim, a longeva ligação do artista ao grupo.  Esta foi, de resto, a última vez que a pandilha de Robin usou uma casa emprestada. 
No início do ano seguinte, a Turma Titã ganhou a sua própria revista. De periodicidade bimestral, Teen Titans - produzida por Haney e Cardy - tinha como premissa a assistência prestada pelos heróis a adolescentes em apuros enquanto percorriam eles próprios o agreste caminho até à idade adulta. Bob Haney permaneceu como argumentista e com ele a série adquiriu uma identidade muito própria através do uso (e abuso) do calão juvenil da época e de múltiplas referências à cultura popular. 
Partindo do pressuposto que o público-alvo dos comics eram catraios de doze anos residentes nos estados rurais, Haney privilegiava a coloquialidade dos diálogos, nos quais abundavam expressões idiomáticas como "os adultos são uns quadrados" ou "é uma brasa". Muitas vezes o resultado soava tolo ou exagerado e, para forçar ainda mais a identificação com a juventude, a Turma Titã era frequentemente apelidada de Fab Four (Os Quatro Fabulosos, em referência aos Beatles).

Ainda sem Ricardito, a Turma Titã ganhou a sua própria revista em 1966.

Recém-contratado à Charlton Comics, em 1968 Dick Giordano substituiu George Kashdan como editor de Teen Titans, e aos poucos foi modificando o tom das histórias. Com o lado psicadélico e fantasioso das primícias a ser moderado pelo olhar mais realista e social que a época impunha.
Para o 20º número de Teen Titans foi preparada uma história cujo título - Titans Fit the Battle of Jericho (Titãs na Batalha de Jericó) - foi inspirado em Joshua Fit the Battle of Jericho, uma canção gospel muito apreciada pela comunidade afro-americana. Nela, a Turma Titã (com Ricardito a ocupar a vaga de Aqualad) iria para um gueto situado numa grande cidade americana, onde seria confrontada com a revolta violenta dos adolescentes negros contra o racismo estrutural dos EUA. Os heróis receberiam então a inesperada ajuda de um misterioso aventureiro mascarado chamado Jericó, que os ajudaria a apaziguar os ânimos. A grande surpresa estaria reservada para o final: a revelação de que Jericó era ele próprio um adolescente negro - circunstância que faria dele o primeiro  super-herói afro-americano do Universo DC.
Embora aprovada sem ressalvas por Giordano e integralmente desenhada por Nick Cardy, a trama foi vetada por Carmine Infantino. O editor-chefe da DC receava uma possível repercussão negativa no Sul dos EUA e também lhe desagradava o teor excessivamente político da história - saída da pena de um tal de Marv Wolfman.
Chamado a redesenhar a história em tempo recorde, Neal Adams transformou, a contragosto, Jericó num jovem caucasiano e a revolta no gueto numa invasão extradimensional. Tudo isto enquanto metade do país chorava ainda a morte de Martin Luther King e a luta dos negros pelos direitos civis estava ao rubro. 

Página não publicada de Titãs na Batalha de Jericó,
onde Jericó se revela um jovem afro-americano.

Independentemente da polémica, Titans Fit the Battle of Jericho sinalizou um momento de profundas e irreversíveis mudanças na Turma Titã. Mudanças essas que, entre outras coisas, envolveram a admissão de novos membros (Rapina e Columba) e a abertura de uma filial californiana (Titãs do Oeste).
A década de 70 trouxe a Idade de Bronze e com ela uma audiência mais madura que passou a exigir histórias menos inconsequentes. Por conta do novo perfil dos leitores, o entusiasmo em relação aos heróis adolescentes começou a arrefecer. O primeiro sinal desse arrefecimento foi quando Denny O'Neil e Neal Adams reaproximaram Batman das suas origens sombrias e solipsistas, deixando pouco espaço para Robin nas histórias do Cavaleiro das Trevas. O mesmo aconteceria, nos anos imediatos, a Kid Flash, Aqualad e Ricardito, cada vez menos presentes na vida dos seus mentores. Em contraciclo, a Moça-Maravilha ia ganhando maior destaque na revista da irmã, culminando com a sua participação na série televisiva da Princesa Amazona com Lynda Carter.
Apesar de, oficialmente, a Turma Titã se manter unida, o seu vigor juvenil revelou-se insuficiente para suster a própria revista. Com um percurso editorial errático, bordejado por suspensões e relançamentos, Teen Titans acabaria por ser definitivamente cancelada em 1978. À medida que o brilho colorido dos néones da adolescência ia perdendo intensidade, os heróis, agora praticamente jovens adultos, descartaram gradualmente o conceito a que tinham dado corpo. 


O número final de Teen Titans anunciava
 a nunca revelada origem do grupo.

Adivinhava-se o fim de uma era. Afinal de contas, nem o Menino-Prodígio nem a Moça-Maravilha eram já crianças. Era, pois, natural que, tal como na vida real, deixassem para trás os dilemas e desvarios pubescentes, seguindo para a próxima etapa do seu desenvolvimento pessoal. Num contexto em que eram cada vez mais os heróis soturnos, amargurados e maduros os verdadeiros ídolos da juventude, aos eternos sidekicks restava continuar a crescer nas sombras dos seus celebérrimos mentores.
Tudo indicava, portanto, que a Turma Titã viraria uma nota de rodapé no cânone da DC e que os seus integrantes se veriam relegados à condição de coadjuvantes bissextos nas histórias de terceiros. Contudo, para surpresa geral, a notícia da morte dos sidekicks foi manifestamente exagerada.

Idade Maior

À entrada da década de 80, a preferência dos leitores de super-heróis, sempre oscilante entre as duas maiores editoras a operar nesse mercado, parecia afastar-se da DC. Mesmo que Super-Homem e Batman continuassem a ser líderes de vendas - mais pela força do mito que encarnavam do que pela qualidade intrínseca das histórias que protagonizavam - as restantes produções da DC estavam longe da irreverência, sofisticação e sintonia com o público que era então apanágio da sua principal concorrente.
Após uma longa temporada ao serviço da Marvel, Marv Wolfman, agora um escritor com tarimba, retornou à Editora das Lendas e, perante a crise instalada, propôs o lançamento de uma nova série da Turma Titã. A maior parte dos seus colegas torceu o nariz à ideia, mas Len Wein - recém-promovido a editor - resolveu arriscar.
Na altura uma estrela em ascensão na indústria dos quadradinhos, George Pérez aceitou participar no projeto, à guisa de favor pessoal a Wolfman. Fê-lo, todavia, no pressuposto de que ilustrar as histórias da Turma Titã seria apenas uma curta etapa que o levaria ao Olimpo da DC: a Liga da Justiça.
Numa espécie de jogo de espelhos geracional, os Novos Titãs incluíam membros da equipa original, o benjamim da Patrulha do Destino e criações de Wolfman e Pérez. Aos fundadores Robin, Kid Flash e Moça-Maravilha juntou-se um trio de figuras novas, com personalidades diferenciadas e contrastantes: o angustiado Cyborg, cujo corpo mutilado foi substituído por componentes cibernéticos; a extrovertida Estelar, uma princesa alienígena com um passado de escravidão e intriga familiar; e a misteriosa Ravena, empata e filha de um demónio extradimensional. O inusitado elenco ficou completo com o divertido Mutano (anteriormente conhecido como Rapaz-Fera), um adolescente esverdeado capaz de transformar-se em qualquer animal.

Os Novos Titãs de Wolfman e Pérez fizeram a síntese entre o passado e a modernidade.

Os Novos Titãs foram apresentados aos leitores americanos em DC Comics Presents #26, de outubro de 1980, e imediatamente ficou claro que a equipa não era constituída por adolescentes desorientados, mas sim jovens adultos que formavam uma família disfuncional unida por fortes laços de amizade. 
O que aconteceu em seguida dificilmente poderia ter sido previsto, pois, numa curiosa inversão dos eventos da mitologia grega, estes titãs de tinta destronaram os olímpios da Liga da Justiça nas vendas e na aclamação da crítica.
Com dinamismo para dar e vender, os Novos Titãs trouxeram um zéfiro de positividade ao Universo DC. As suas histórias tinham a capacidade rara de casar de forma harmoniosa o lado da aventura épica cheia de peripécias com a vertente de novela pontuada por personagens cheias de alegrias e dramas, discussões e empatias, sucessos e tragédias. Tudo amplificado pelo soberbo traço de Pérez, que, assim como Wolfman, se afeiçoara genuinamente às personagens. Esse avultado investimento emocional da dupla criativa dos Novos Titãs foi, de resto, um dos ingredientes da fórmula de sucesso.
Ao tornarem-se coeditores de The New Teen Titans, Wolfman e Pérez, dois dos maiores dínamos criativos da Arte Sequencial, conquistaram ampla liberdade para contarem a história intemporal de um grupo de jovens com nobreza acima da idade, que lutavam para afirmarem as suas próprias individualidades. E ninguém o fez com mais afinco do que Dick Grayson. Ainda que Robin continuasse a ser um excelente líder para os Novos Titãs, não conseguia enxaguar o lastro de, por tanto tempo, ter sido o pajem do Cavaleiro das Trevas. Mas isso estava prestes a mudar.
Entre a rica galeria de coadjuvantes dos Novos Titãs pontificava aquele que viria a ser um dos vilões mais carismáticos e versáteis de todo o Universo DC: o Exterminador (Deathstroke, The Terminator). 
Slade Wilson, o implacável mercenário zarolho, foi pedra basilar do enredo mais controverso de toda a série. Em The Judas Contract (O Contrato de Judas), os Novos Titãs dão as boas vindas a Terra, uma jovem com poderes elementais e personalidade volátil. 
Ao longo de mais de um ano, primeiro em pano de fundo e depois à boca de cena, Dana Markov vai-se revelando uma espia plantada na equipa, com a missão de descobrir os pontos fracos de cada um dos seus elementos. Ainda por cima, aquela adolescente franzina de apenas 16 anos, que até fuma e bebe, é também sexualmente ativa e amante do Exterminador. Como se tudo isso não fosse suficientemente impactante, foi também nessa saga que Dick Grayson deixou finalmente de ser o Menino-Prodígio passando a responder por Asa Noturna. Uma expressão de individualidade e empoderamento que mereceu o aplauso da generalidade dos leitores e que deixou claro que nada voltaria a ser como antes.

Como Robin ou Asa Noturna, Dick Grayson foi sempre o líder natural dos Titãs.

Tudo isto serviu para fazer de New Teen Titans um best-seller, gerando-se uma atmosfera de expectativa quase telenovelesca antes do lançamento de cada novo número. A juventude dos protagonistas não impedia que os enredos abordassem temas adultos. Exemplo disso foi o arco narrativo que lidou com flagelo das drogas e que, de tão eficaz na mensagem que pretendia passar, teve seguimento num anúncio animado de prevenção da toxicodependência. Curiosidade: a história em causa foi patrocinada pela Keebler, uma marca de bolachas que estava associada à campanha de combate às drogas amadrinhada pela então Primeira-dama dos EUA Nancy Reagan.
Mesmo as histórias com matizes mais fantasiosas destacavam-se dentro de um género tão codificado como o dos super-heróis. Tão logo surgiram em The New Teen Titans, a C.O.L.M.E.I.A. e a Igreja do Sangue tornaram-se partes integrantes do folclore da DC. Ao mesmo tempo que lidavam com ameaças à escala planetária (e por vezes galáctica), os Novos Titãs exploravam a condição humana através, por exemplo, da relação conturbada entre Cyborg e o pai, ou da angústia da Moça-Maravilha por causa do seu obscuro passado.
Em questão de meses, os Novos Titãs cativaram os leitores e assumiram-se como força charneira de uma inesperada revolução que resgatou a DC do abismo da irrelevância. Wolfman e Pérez assinaram juntos as aventuras do grupo durante 5 anos e 50 números de The New Teen Titans, com o argumentista a permanecer no título (entretanto renomeado Tales of the Teen Titans) após a saída do artista. 

Em 1982, no auge da popularidade das duas equipas,
X-Men e Novos Titãs protagonizaram um dos mais
épicos crossovers Marvel/DC.

A partida de Pérez foi, aliás, um das causas para a "titãmania" perder gás no final dos anos 80, altura em que a chama criativa já diminuíra claramente de intensidade. Apesar de um último surto de popularidade no início do decénio seguinte, os Novos Titãs acabaram mesmo por sair de cena. 
Até que, em 2003, Geoff Johns decidiu juntar Superboy e os novos Robin (Tim Drake), Kid Flash (Bart Allen) e Moça-Maravilha (Cassandra Sandsmark) aos agora veteranos Estelar, Cyborg, Ravena e Mutano. Numa quase poética inversão de papéis, os velhos Novos Titãs viram-se no papel de mentores de uma nova geração de campeões do Bem, à semelhança do que os primeiros Robin, Kid Flash e Moça-Maravilha com eles haviam feito.
A grande proeza dos Novos Titãs do século XXI foi devolver o grupo aos tops de vendas pela primeira vez em mais de uma década. Os louros têm, no entanto, de ser divididos com Teen Titans, a série animada de grande sucesso que foi para o ar nesse período.
Mas nem tudo foram rosas. Em 2011, o reboot dos Novos 52 acabou com o profundo sentido de legado do Universo DC, truncando eventos e apagando a história das personagens. Os mais afetados por esse fluxo caótico foram justamente os Novos Titãs. 
Na nova continuidade, a formação atual do grupo não foi precedida por nenhuma outra. Significando isto, na prática, que nem a Turma Titã nem os Novos Titãs alguma vez existiram.  Quando, por fim, se cansou de navegar a polémica, a DC aproveitou o reboot Renascimento para restaurar parte do cânone dos Novos Titãs. Sem contudo desfazer outros movimentos questionáveis como a inclusão de Cyborg na Liga da Justiça.
Independentemente das trapalhadas recentes e do enorme sucesso que os Novos Titãs alcançaram nos idos de 80, estes jovens heróis terão sempre um importante papel a desempenhar. Mais que não seja, satisfazendo as fantasias vicárias dos fãs, por incorporarem o truísmo de que o novo acaba sempre por substituir o velho. Num meio cíclico como o dos comics, isso levá-los-á inevitavelmente a serem os agentes da mudança que sacodem o marasmo e renovam o statu quo. Provando, dessa forma, que, quando a execução é competente, até os conceitos menos promissores podem funcionar às mil maravilhas.
 
Os Titãs do terceiro milénio não são despidos de passado,
 mas têm os olhos postos no futuro.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre Estelar, Nick Cardy e Marv Wolfman disponíveis para leitura complementar.  


























25 junho 2024

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A MORTE DE JEAN DEWOLFF»

  Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha lança-se à caça do assassino de uma velha amiga. Um fanático de moralidade distorcida anda à solta nas ruas e promete continuar a lavar os pecados da sociedade com o sangue dos inocentes. Cederá o herói à tentação de fazer justiça pelas próprias mãos, perante mais esta tragédia pessoal?

Título original: The Death of Jean DeWolff
Editora: Marvel Comics
País: Estados Unidos da América
Data de lançamento: Outubro de 1985
Títulos abrangidos: Peter Parker, The Spectacular Spider-Man #107-110
Autores: Peter David (trama), Rich Buckler (ilustrações) e Josef Rubinstein (arte-final)
Protagonistas: Homem-Aranha, Demolidor e Devorador de Pecados
Cenários: Nova Iorque 
Edições em português: A primeira versão traduzida deste arco de histórias foi publicada, entre setembro e outubro de 1990, no tradicional formatinho da Abril brasileira. O primeiro capítulo da saga foi apresentado em Homem-Aranha nº87, sendo os restantes incluídos no número seguinte. Desde 2013, a Panini e a Salvat têm-se alternado no lançamento de encadernados, o mais recente dos quais data de 2021. 

Inédita em Portugal, a saga já foi várias vezes
republicada no Brasil.
Em 2017, a Salvat incluiu-a na sua
Coleção Definitiva do Homem-Aranha. 

Lei da bala 

A violência urbana sempre foi - e continua a ser - um dos maiores flagelos sociais nos EUA. Num país com mais armas do que habitantes, impera muitas vezes a lei da bala. As falhas da Justiça, que devia ser para todos, geram revolta e frustração. Sentimentos que demasiados cidadãos extravasam premindo o gatilho.
No início dos anos 80, o fenómeno adquiriu contornos epidémicos nas ruas das principais cidades americanas. Em Nova Iorque, onde as relações interpessoais sempre se caracterizaram pela agressividade, registou-se nesse período um aumento exponencial da taxa de homicídios. Para piorar o quadro, os crimes eram cometidos quer por indivíduos socialmente excluídos quer por cidadãos comuns sem motivo aparente para chegarem a vias de facto.
Um episódio, em particular, obteve grande ressonância mediática e chocou a opinião pública a nível nacional. Num daqueles acasos com hora marcada, a 22 de dezembro de 1984, Bernhard Goetz alvejou quatro jovens que o importunavam durante uma viagem noturna de metro. Prontamente apelidado de Vigilante do Metro pelos tabloides, Goetz alegou legítima defesa. Argumento insuficiente para prevenir a tempestade racial desencadeada pela cor da pele dos intervenientes: Goetz era branco, as suas vítimas negras.
Entre os milhões de nova-iorquinos que seguiam apaixonadamente o caso estava Peter David. À época assistente de vendas da Marvel após uma malsucedida carreira jornalística, David era um aspirante a escritor à espera de uma oportunidade para mostrar o seu valor.

Racismo ou legítima defesa?
Bernhard Goetz continua a dividir opiniões.

Por aqueles dias, o Homem-Aranha era o maior trunfo da Casa das Ideias, que o presenteou com quatro títulos mensais: Marvel Team-Up, Amazing Spider-Man, Web of Spider-Man e Peter Parker, The Spectacular Spider-Man. Este último, em circulação desde 1976, apresentava habitualmente histórias em que o herói aracnídeo, sozinho ou emparelhado com vigilantes urbanos como Manto e Adaga, combatia o tráfico de drogas ou punha fim a guerras de gangues. Nova Iorque era a meca do crime e os escribas da série, com Al Milgrom à cabeça, retratavam-na sem filtros.
Apesar das boas vendas de Peter Parker, The Spectacular Spider-Man, Jim Oswley, o novo editor do Cabeça de Teia, desejava refrescar o título com histórias mais adultas e temas mais complexos. Para levar a cabo essa pequena revolução, Oswley substituiu o veterano Al Milgrom pelo inexperiente Peter David. Sem floreados, Oswley informou David da sua intenção de matar uma personagem importante: ninguém menos do que a capitã Jean DeWolff.

Peter David, na altura com 29 anos, foi uma aposta pessoal
do novo editor do Homem-Aranha.

Criada, em 1976, por Bill Mantlo e Sal Buscema, Jean DeWolff era uma das coadjuvantes mais antigas das histórias do Escalador de Paredes. Os seus subordinados tinham aprendido a respeitá-la, os leitores a apreciar o seu guarda-roupa antiquado. À parte ser mulher, DeWolff incorporava praticamente todos os estereótipos dos detetives dos filmes e séries policiais daquela época: era dura e ranzinza, mas tremendamente competente. Era, também, uma preciosa aliada do Homem-Aranha, se bem que, com o tempo, a relação deles evoluiria para uma franca amizade. Como reagiria, portanto, o herói ao assassinato de alguém tão próximo?


Corajosa e determinada, a capitã DeWolff
cultivou uma relação especial com o Homem-Aranha.

Face às muitas perdas pessoais que enfrentou no decurso dos anos, o Homem-Aranha subordinou sempre as suas ações à sua consciência heroica. Nem a efusão de sangue de alguns dos seus entes queridos o levou a aplicar a Lei de Talião. Nesse espírito, a ideia consistia em apresentá-lo a um vilão cujos crimes, de tão hediondos, testassem os limites de Peter Parker.
Ao Devorador de Pecados (Sin-Eater) serviu de modelo uma personagem homónima de The Incredible Journey of Doctor Meg Laurel (1979), um dos filmes preferidos de Peter David. Em certas regiões do Reino Unido, mormente na Escócia e no País de Gales, sempre que alguém morre, os seus entes queridos depositam alimentos sobre o caixão do defunto. De acordo com esta tradição pagã de origem difusa, o ritual serve para absorver espiritualmente os pecados terrenos. Geralmente um mendigo, cabe depois ao Devorador de Pecados comer as oferendas que simbolizam as transgressões cometidas em vida pelo morto. Foi nessa sinistra figura do folclore anglo-saxónico que Peter David se inspirou para criar o carrasco de Jean DeWolff. 

Por terem absorvido tantos pecados alheios, acreditava-se que 
os Devoradores de Pecados nunca entrariam no Céu. Eram a pior 
espécie de párias sociais, mas úteis à comunidade.

Aquando do seu lançamento, no outono de 1985, A Morte de Jean DeWolff foi considerada, sob vários aspetos, inovadora. Desde logo por ter quebrado a tradição de conceder à personagem martirizada uma morte honrosa, idealmente no clímax de uma batalha ou enquanto salvava outrem. Jean DeWolff, ao invés, é morta durante o sono, logo a abrir a história. Em vez de um supervilão, o seu assassino é tão-somente um psicopata armado com uma espingarda e um código moral distorcido. Acrescendo, ainda, uma peculiaridade estilística: os créditos da história surgem apenas no final de cada um dos quatro capítulos que a compõem.
Ser ainda hoje considerada uma história incontornável na mitologia do Homem-Aranha não é o único mérito de A Morte de Jean DeWolff. A obra garantiu também assento ao seu autor entre a elite plumitiva dos comics americanos.

Quem nunca pecou...

Ao entregar à Polícia o trio de meliantes que haviam agredido Ernie Popchik, um dos residentes no lar de idosos gerido pela Tia May, o Homem-Aranha é informado do assassínio da capitã Jean DeWolff. A notícia da morte da sua velha amiga e aliada deixa o herói sem chão.
Em conversa com Stan Carter, o detetive encarregue da investigação do caso, o Homem-Aranha fica a par de mais pormenores: DeWolff foi baleada à queima-roupa enquanto dormia e o seu distintivo está desaparecido.

Jean DeWolff foi a primeira vítima do Devorador de Pecados.

No dia seguinte, Matt Murdock, nomeado advogado oficioso, consegue que os agressores de Popchik sejam libertados sem fiança. À saída da sala de audiências, é confrontado por um indignado Peter Parker. Mais tarde nesse mesmo dia, Matt confidencia ao juiz Horace Rosenthal o seu crescente desconforto em assumir a defesa pro bono de indivíduos de moralidade questionável.
Ainda no gabinete do juiz, o radar de Matt deteta a presença de um intruso na sala adjacente. Antes que Matt possa alertar o seu interlocutor, um encapuzado irrompe no gabinete e abre fogo sobre ambos. Graças aos seus reflexos sobre-humanos, Matt consegue esquivar-se das balas, mas o juiz tem menos sorte.
Atraído pelos disparos, o Homem-Aranha acorre ao local, sendo prontamente recebido com uma saraivada de chumbo. Para surpresa do Escalador de Paredes, o mascarado não só resiste aos seus golpes como revida com inesperada pujança.
No exterior do tribunal, alguns transeuntes são feridos pelas balas perdidas. Tirando partido do pânico instalado, o mascarado desenvencilha-se do Homem-Aranha e põe-se em fuga. O herói ainda tenta travá-lo com a sua teia, mas constata que os lançadores foram danificados durante a escaramuça. Capta, no entanto, um vislumbre do distintivo policial que adorna o cinto do mascarado - e reconhece-o como tendo pertencido a Jean DeWolff.

O Devorador de Pecados revela-se um osso duro de roer.

Com o consentimento do detetive Carter, o Homem-Aranha revista o apartamento da capitã DeWolff. Não encontra, porém, quaisquer pistas que o ajudem a perceber o móbil do crime. Apenas fotos e recortes de jornais onde ele aparece. O eco solitário do amor impossível que DeWolff trazia aninhado na alma. Essa descoberta deixa o herói ainda mais consternado.
Em novo encontro com o Homem-Aranha, Stan Carter informa-o que o assassino da capitã DeWolff e do juiz Rosenthal se autodenomina Devorador de Pecados. O detetive explica-lhe o folclore associado ao nome e revela ainda o próprio passado como agente da SHIELD.
Durante o funeral do juiz Rosenthal, Matt Murdock deteta o batimento cardíaco do Devorador de Pecados. É, no entanto, incapaz de identificá-lo no mar de gente que assiste à cerimónia.
Nessa mesma noite, o Devorador de Pecados volta a atacar. Executa a sangue-frio o sacerdote que conduzira as exéquias do juiz Rosenthal. Em consequência de mais essa morte, é montado um circo mediático, aproveitado pelo reverendo Jackson Tulliver para vitimizar a comunidade afroamericana.
Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha e o Demolidor vasculham o submundo nova-iorquino em busca de informações sobre o paradeiro e identidade do Devorador de Pecados. A cada beco sem saída, sentem que perseguem um fantasma.
Dias depois, o Devorador de Pecados invade a redação do Daily Bugle e, tomando Marla como refém, exige falar com J. Jonah Jameson. Enquanto Joe Robertson se faz passar por Jameson, Peter Parker atinge o mascarado na cabeça com o rolo de uma máquina de escrever, deitando-o por terra.
Ao recuperar os sentidos, o Devorador de Pecados, entretanto desmascarado, apresenta-se como Emil Gregg. Ele não tem, contudo, a mais vaga lembrança de ter perpetrado os homicídios que lhe são imputados. Recorda-se apenas das vozes a ordenarem que os cometesse.
A confissão de Gregg é também testemunhada pelo Demolidor, que não reconhece, porém, o seu batimento cardíaco. Convicto de que estão em presença de um impostor, o Diabo da Guarda convida o Homem-Aranha a acompanhá-lo numa busca ao apartamento do suspeito. Durante a breve conversa entre ambos, o Demolidor reconhece o batimento cardíaco de Peter Parker.

O falso Devorador de Pecados confessa 
os crimes que não cometeu.

Enquanto o Homem-Aranha revista o apartamento de Gregg, o Demolidor repara que a fechadura da porta do apartamento contíguo foi estroncada. Ao investigar, o Homem Sem Medo tropeça numa pequena pilha de correspondência por abrir. Toda ela destinada a Stan Carter. Os heróis encontram também um gravador de voz onde Carter registava as suas atividades como Devorador de Pecados - era essa a origem das vozes que atormentavam Gregg.
Deduzindo que Carter usara Gregg como distração para cumprir o seu verdadeiro objetivo, o Homem-Aranha liga para o Daily Bugle e obtém o número de telefone de J.J. Jameson. A chamada é atendida pela sua secretária pessoal, Betty Brant, mas antes que o herói consiga avisá-la, ouve-se um disparo em fundo e a linha fica muda.
Convencido que Betty estaria morta, o Homem-Aranha atravessa a cidade até ao domicílio de Jameson. Para seu alívio, a jovem estão viva e ilesa. Isso é no entanto insuficiente para conter a vaga de fúria incandescente que cresce dentro do herói.
Para horror de Betty, o Homem-Aranha continua a espancar o Devorador de Pecados, mesmo depois de ele ter ficado inconsciente. Só muito a custo o Demolidor, entretanto chegado ao local, consegue impedir que o seu aliado faça justiça pelas próprias mãos.

O Demolidor sente na pele a fúria do Homem-Aranha,
depois de o ter impedido de vingar a morte da amiga.

Stan Carter é preso e a notícia de que o Devorador de Pecados era um polícia corre como pólvora, incendiado os ânimos. É nesse clima de alta tensão, com uma onda de revolta a encapelar-se no horizonte urbano, que Ernie Popchik dispara contra um grupo de rufias que o assediava numa carruagem de metro. Em seguida, o idoso entrega-se às autoridades.
Nesse emmeio, a Polícia é notificada pela SHIELD que Carter fora submetido a tratamentos com uma droga experimental. A substância capacitou-o com força e resistência sobre-humanas, mas teve a esquizofrenia como efeito colateral.
Quando o plano secreto para transferir o Devorador de Pecados para a Ilha Riker é denunciado pela imprensa, uma turba ululante concentra-se diante da esquadra onde Carter se encontra sob custódia. Para impedir o linchamento, o Demolidor interpõe-se entre a multidão e o edifício, mas é rapidamente sobrepujado.
Num telhado próximo, o Homem-Aranha assiste, impávido, àquela erupção de violência. Mas o grito desesperado do Demolidor impele-o a agir no último instante.
Com Stan Carter a caminho da prisão, o Demolidor revela a sua verdadeira identidade ao Homem-Aranha e oferece-se para defender Ernie Popchik. Apesar das suas visões opostas da justiça, os dois heróis sabem que estarão sempre do mesmo lado da barricada na guerra contra o crime.
  
Apontamentos

*Apesar das muitas pistas a apontarem nesse sentido, nenhum leitor, a julgar pelas cartas recebidas na redação da Marvel, conseguiu deduzir que Stan Carter era o Devorador de Pecados. Peter David atribui esta falta de perspicácia ao facto de, após décadas de associação a Stan Lee, o nome Stan soar amistoso aos fãs;
*O uniforme negro usado pelo Homem-Aranha era um modelo de tecido normal ofertado pela Gata Negra. Peter descartara o traje original depois de ter descoberto que ele era, na verdade, um simbionte alienígena que procurava unir-se de forma permanente ao seu hospedeiro;
*Jean DeWolff admirava profundamente o seu padrasto e foi por causa dele que, para desgosto da mãe, ingressou na Polícia. Carl Weatherby acreditava que Jean poderia ser, um dia, a primeira comissária a chefiar o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Na vida real, isso só aconteceria em 2022, quando Keechant Sewell se tornou a primeira mulher (e a terceira afrodescendente) a assumir o cargo;
*Numa vinheta de Peter Parker, the Spectacular Spider-Man #108, o ator Charles Bronson surge entre a multidão que caminha pelas ruas de Nova Iorque. Trata-se de uma homenagem ao seu papel de Paul Kersey na franquia cinematográfica Death Wish, sobre um ex-tenente da Polícia de Los Angeles que, inconformado com as falhas do sistema legal, passa a atuar como um implacável vigilante;

O cameo de Charles Bronson coincidiu com o lançamento de Death Wish III. 
O filme foi produzido pela Cannon que, pouco tempo antes, adquirira os direitos
cinematográficos do Escalador de Paredes.

*Em resposta à candidatura apresentada por uma potencial assassina a soldo, o Rei do Crime dita uma carta dirigida a C.B. Kalish. Carol Kalish, ao tempo gerente de vendas diretas da Marvel e vice-presidente do departamento de desenvolvimento de novos produtos, era chefe e amiga de Peter David. Foi pela mão dela que David deu os primeiros passos na indústria dos comics. Kalish faleceria cinco anos mais tarde, de doença prolongada. Tinha apenas 36 anos;
*Apesar de ser um novato na altura e de A Morte de Jean DeWolff ter sido apenas o seu segundo trabalho profissional como argumentista da Marvel, Peter David é hoje um autor prolífico e premiado, com mais de meia centena de romances publicados. Entre os rios de prosa com que continua a irrigar a imaginação de milhões de leitores em todo o mundo, o maior destaque vai para as novelas de Star Trek, sendo mesmo considerado o melhor escritor da franquia. Na banda desenhada, deixou a sua impressão digital em títulos como Aquaman, Supergirl, X-Factor, Spider-Man 2099 e The Incredible Hulk. Neste último assinou uma das melhores fases de sempre do Gigante Verde, pela qual foi distinguindo, em 1993, com um Prémio Will Eisner. Com vasta experiência em cinema e televisão, David escreveu também vários episódios de Babylon 5 e enredos de filmes produzidos pela Full Moon Entertainment; 

Uma das muitas aventuras literárias de Star Trek 
saídas da pena de Peter David.

*Peter David trouxe de volta o Devorador de Pecados em Spectacular Spider-Man #134-136 (janeiro-março de 1988). Informalmente conhecida como o Retorno do Devorador de Pecados, a sequência, ambientada cerca de um ano após os eventos de A Morte de Jean DeWolff, explorava simultaneamente a origem do vilão e a sua fracassada tentativa de reabilitação. Mesmo depois de sair da prisão sem vestígios das drogas da SHIELD no seu organismo, Stan Carter continua a ser roído pelo remorso devido ao baralho de iniquidades perpetradas pelo seu alter ego. Sucumbindo por fim à loucura, Stan volta a vestir a fantasia de Devorador de Pecados e, armado com uma espingarda descarregada, incita a polícia a abrir fogo contra ele. Peter David considera que, apesar de violento, este foi um final misericordioso para o personagem;
*O Devorador de Pecados foi responsável indireto pelo surgimento de Venom. Em The Amazing Spider-Man #300 (maio de 1988), Eddie Brock, ex-repórter do Daily Globe, recorda como expôs publicamente Emil Gregg como sendo o Devorador de Pecados. Quando Stan Carter foi desmascarado pelo Homem-Aranha, Brock foi demitido e, preso numa espiral autodestrutiva, acabou abandonado pela esposa. Brock preferiu, ao invés, culpar o Escalador de Paredes pelo seu infortúnio e, em busca de vingança, aceitou ser o novo hospedeiro do simbionte alienígena.

Porque vale a pena ler?

Peter Parker bem podia ser a personificação da desdita. Nunca conheceu os pais, mortos quando ele ainda nem gatinhava. Na adolescência, perdeu o Tio Ben, o homem que o criara como filho. A este rosário de desgraças a idade adulta encarregou-se de acrescentar outra conta: a morte de Gwen Stacy, o primeiro grande amor de Peter.
Desde tenra idade que Peter sofre tragédias na periferia da vida. Perder entes queridos tem sido uma dolorosa rotina. Seria, portanto, de esperar que Peter já estivesse calejado, mas a morte de Jean DeWolff provou o contrário.
Por muito tempo, a capitã DeWolff foi a única aliada do Homem-Aranha no Departamento de Polícia de Nova Iorque que lhe era tradicionalmente hostil. Era também uma amiga que o ajudou em momentos difíceis. Cumplicidades antigas que fizeram do assassinato de DeWolff, não apenas um crime hediondo, mas um assunto pessoal para o Escalador de Paredes.

Tal como a inocência nas histórias de super-heróis,
Jean DeWolff foi marcada para morrer,

Com esta premissa, Peter David compôs uma trama tensa e envolvente, cujo suspense invoca os melhores contos policiais. Ao contrapor as personalidades de Matt Murdock e Peter Parker, David reacende, também, o velho debate entre justiça e vingança. Tantas vezes caricaturada como um espasmo de moralidade mesquinha, esta última é encarada pelo Homem-Aranha como a alternativa à impunidade proporcionada pelas falhas do sistema judicial. Aquele em que o Demolidor, mesmo operando na orla da Lei, deposita uma fé cega. Cabendo-lhe, por isso, ser a consciência moral de um Homem-Aranha tomado pelas emoções mais primárias.
A construção psicológica das personagens, incluindo do Devorador de Pecados, é minuciosa. Mesmo não sendo o mais carismático dos vilões, o seu apelo reside precisamente na sua simplicidade marcial. Se a motivação religiosa do Devorador de Pecados é um tanto unidimensional, essa falta de profundidade é compensada pela violência gráfica com que ele é representado. De uma crueldade (quase) sem precedentes nas histórias de super-heróis, o assassinato de Jean DeWolff faz revirar as entranhas do leitor. 
Apesar da grande quantidade de coadjuvantes, Peter David não abre mão do controlo narrativo, dando peso a cada morte retratada ao longo da trama. A arte de Rich Buckler, por sua vez, potencia a dramaticidade do enredo, fazendo uso de enquadramentos cuidadosamente escolhidos para manter a tensão e o sentimento de urgência.
Do mesmo modo que a verve de David expõe a alma de Peter Parker à contraluz, a narrativa visual de Buckler põe a nu as mazelas de uma Nova Iorque em ponto de ebulição. A violência quotidiana não ceifa apenas vidas, decapita também a esperança.
Não sendo necessariamente atemporal, A Morte de Jean DeWolff é, inquestionavelmente, uma das mais importantes histórias do Homem-Aranha. O conflito interno do herói, refletido pelo Demolidor, é o que  realmente a faz perdurar. 
Produzida numa das melhores décadas dos comics americanos, A Morte de Jean DeWolff quebrou alguns conceitos até então normativos. A sua crueza e complexidade traçou uma bissetriz nas histórias do Cabeça de Teia, desbravando caminho, nos anos imediatos, para outras fábulas sombrias como A Última Caçada de Kraven.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Resenha de A Última Caçada de Kraven disponível para leitura complementar.




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05 fevereiro 2024

RETROSPETIVA: «MULHER-MARAVILHA»



  Para acabar com a mãe de todas as guerras instigada por Ares, a princesa guerreira das Amazonas troca o seu paraíso secreto pelo caótico Mundo dos Homens. Ao mesmo tempo que ilumina corações e mentes com o esplendor da Verdade, Diana terá de dissipar as sombras que ocultam o seu destino.

Título original: Wonder Woman
Ano: 2017
País: Estados Unidos da América
Duração: 141 minutos
Género: Drama / Ação / Fantasia / Super-heróis
Produção: Warner Bros. Pictures, DC Films e Atlas Entertainment
Realização: Patty Jenkins
Argumento: Allan Heinberg, Jason Fuchs e Zack Snyder
Distribuição: Warner Bros. Pictures
Elenco: Gal Gadot (Diana Prince / Mulher-Maravilha); Chris Pine (Steve Trevor); Robin Wright (Antíope); Danny Huston (General Erich Ludendorff); David Thewlis ( Patrick Morgan / Ares); Connie Nielsen (Rainha Hipólita); Elena Anaya (Doutora Isabel Maru); Lucy Davis (Etta Candy);Ewen Bremner (Charlie); Eugene Brave Rock (Chefe); Saïd Taghmaoui (Sameer)
Orçamento: 149 milhões de dólares
Receitas globais: 824 milhões de dólares

Anatomia de um épico pós-feminista

Malgrado a sua magna importância na mitologia da DC, a Mulher-Maravilha foi a última integrante da Trindade a transitar para o celuloide. Enquanto Batman e Super-Homem acumulavam décadas de acertos e fracassos no segmento audiovisual, a Princesa Amazona só ganhou visibilidade em 1975, com a série televisiva estrelada pela ex-Miss América Lynda Carter.
Inúmeras tentativas frustradas de adaptar a Mulher-Maravilha ao cinema deixaram muitos fãs conformados com a ideia de que esse seria um daqueles filmes sempre prestes a ser feito, mas que nunca sairia da gaveta. Habituada a superar as mais duras provações na banda desenhada, Diana fez também o caminho das pedras para chegar ao grade ecrã.
Com muitos avanços e recuos à mistura, o desenvolvimento da primeira longa-metragem da Mulher-Maravilha demorou mais de uma década. Os primeiros planos nesse sentido remontam a 1996, quando Ivan Reitman - cineasta eslovaco celebrizado por Ghostbusters - foi contratado como produtor e possível realizador.
Deixado a aboborar durante meia dúzia de anos, em 2001 o projeto passou para as mãos do produtor Joel Silver. Na esperança de ter Sandra Bullock no papel principal, Silver incumbiu Todd Alcott de escrever o argumento. Lucy Lawless, a atriz neozelandesa que por aqueles dias emprestava o corpo a outra princesa guerreira (Xena), também foi considerada.

Sandra Bullock confirmou os contactos - e o interesse -
para dar vida à Mulher-Maravilha no cinema.

Já sem Reitman a bordo, em março de 2005 a Warner Bros. subiu ao leme determinada em levar o projeto a bom porto. Patty Jenkins, que, dois anos antes, conquistara o público e a crítica com Monster - a produção independente que valeu o Óscar a Charlize Theron - foi a realizadora escolhida. Uma inesperada gravidez impediu-a, porém, de abraçar esse novo desafio.
Joss Whedon, que acabara de dirigir o seu primeiro filme (Serenity), tornou-se o novo timoneiro de uma nau à deriva. O enredo proposto por Whedon incluía Steve Trevor como narrador e uma violenta escaramuça entre Diana e a Rainha Hipólita, motivada pela decisão da princesa de trocar Temiscira pelo Mundo dos Homens. Apesar de nenhuma atriz ter sido oficialmente escalada para o papel, Kate Beckinsale e Angelina Jolie encabeçavam a lista de favoritas do estúdio.
Nas vésperas de Whedon abandonar o projeto, na primavera de 2007, a Warner Bros. e a Silver Pictures compraram um argumento escrito a meias por Matthew Jennison e Brent Strickland. Ambientada na II Guerra Mundial, a trama impressionou os executivos da Silver, ainda que, na verdade, tudo não tenha passado de um expediente para conservar os direitos da Mulher-Maravilha.
Quase em simultâneo, a Warner Bros. deu luz verde ao desenvolvimento de uma película baseada na Liga da Justiça. Justice League Mortal seria dirigido por George Miller (Mad Max) e contaria com a participação da Mulher-Maravilha, interpretada pela modelo australiana Megan Gale. Atrasos na produção e preocupações orçamentais ditaram, todavia, o seu cancelamento.

Fotos promocionais de Megan Cale como Mulher-Maravilha em Justice League Mortal.

Novamente em ponto morto, o filme da Mulher-Maravilha teve, por fim, ordem para avançar em 2010. Em resposta ao sucesso da recente franquia cinemática da Marvel, a Warner Bros. anunciou que a Princesa Amazona era, em conjunto com Flash e Aquaman, uma das três personagens da DC sinalizadas como prioritárias para uma adaptação ao grande ecrã.
À procura de uma visão feminina para o projeto, a Warner sondou várias realizadoras, incidindo a escolha sobre ninguém menos do que Patty Jenkins - que assim se tornaria a primeira mulher a dirigir o filme de uma super-heroína. Funcionando como uma prequela da participação da Mulher-Maravilha em Batman versus Superman: Dawn of Justice (2016), o enredo teria a I Guerra Mundial como pano de fundo e referenciaria tanto as histórias clássicas da autoria de William Moulton Marston como a aclamada fase pós-Crise de George Pérez.
Gal Gadot, ex-Miss Israel cuja carreira na representação começara com Fast & Furious (2009), foi a escolha pessoal - e muito contestada - de Zack Snyder para Mulher-Maravilha. Desde que fora confirmada a participação de Diana em Batman versus Superman que muitos fãs sonhavam ver Alexandra Daddario como princesa das Amazonas. Ao recusar explicar o motivo da sua escolha, Snyder endossou teorias conspiratórias que atribuíram a escalação de Gadot à influência do poderoso lóbi judaico.

Gal Gadot, Miss Israel 2004, foi a eleita para interpretar a Princesa Amazona.

A fotografia principal do filme começou a 21 de novembro de 2015, com as filmagens realizadas em França, Itália e Inglaterra a ficarem concluídas em 9 de maio de 2016, data de nascimento de William Moulton Marston.
Wonder Woman fez a sua antestreia no Pantages Theatre de Los Angeles a 26 de maio de 2017, uma semana antes de chegar às salas de cinema de todo o mundo. Apesar do rotundo sucesso de bilheteira (encerrou o Top 10 das produções mais lucrativas daquele ano) e das loas da crítica (eleito o melhor filme de 2017 pelo American Film Institute), não escapou à controvérsia.
Seguindo o exemplo libanês, vários países árabes, como a Argélia e a Tunísia, boicotaram a exibição de Wonder Woman, em protesto contra a escolha de uma ex-soldado israelita para protagonista. Em 2014, Gal Gadot declarara publicamente o seu apoio às ações militares de Israel na Faixa de Gaza, sendo acusada de sionismo pelos partidários da causa palestiniana.
Na frente doméstica, a polémica foi aditivada pelas sessões exclusivas para mulheres, organizadas em Austin, a capital texana. A chuva de protestos contra a discriminação dos homens sequer salpicou, porém, um épico pós-feminista em que a heroicidade e a vilania são unissexo.

Foi longa e árdua a jornada de Diana até chegar às salas de cinema.


Enredo

A trabalhar como restauradora de obras de arte no Museu do Louvre, em Paris, Diana é surpreendida pela entrega de uma fotografia antiga enviada por Bruce Wayne. O retrato desbotado em que ela posa entre um grupo de homens durante a I Guerra Mundial é o seu passaporte para uma viagem ao passado.
Muitos séculos atrás, Diana, a irrequieta filha da Rainha Hipólita, cresce alegremente na ilha escondida de Temiscira, lar das Amazonas. Essa raça de ferozes guerreiras foi criada pelos deuses olimpianos para proteger a Humanidade.
Certa noite, Hipólita deixa a pequena Diana fascinada com a história de como Ares, o deus da guerra, sentia ciúmes dos humanos e orquestrou a sua destruição. Quando os outros deuses porfiaram esforços para impedi-lo, Ares matou-os sem dó nem piedade. Também ele mortalmente ferido, Zeus usou o último resquício do seu imenso poder para derrotar Ares. Antes de perecer, Zeus preparou as Amazonas para o inevitável regresso do seu vingativo filho, e agraciou-as com uma arma infalível chamada Matadora de Deuses.
Pressionada pela sua irmã Antíope, Hipólita concorda relutantemente que Diana seja treinada para ser uma guerreira. As Amazonas depressa percebem o extraordinário potencial da sua princesa, enquanto esta se questiona sobre qual será o seu verdadeiro destino.

À medida que Diana cresce, a ilha vai-lhe ficando estreita.

Avançando para 1918, Diana salva o Capitão Steve Trevor de morrer afogado quando este, aos comandos de um avião roubado aos alemães, se despenha na costa de Temiscira. Ato contínuo, a ilha é invadida pelos marinheiros alemães que perseguiam Steve.
Na sangrenta batalha que se segue, as Amazonas, mesmo sofrendo pesadas baixas, desbaratam os invasores. Antíope, por sua vez, sacrifica-se para salvar Diana de uma bala perdida.
Mais tarde, atado pelo Laço de Héstia, que compele qualquer um a falar verdade, Steve Trevor revela que uma grande guerra devasta o mundo exterior e que ele é um espião Aliado. Na sua posse tem um caderno de anotações roubado à química-chefe dos alemães. Sob as ordens do General Erich Ludendorff, a Doutora Maru desenvolveu uma fórmula mais letal do gás mostarda, capaz de dissolver as máscaras antigás.
O horripilante relato de Steve deixa Diana profundamente angustiada. Convicta de que Ares está por trás da carnificina, a princesa das Amazonas, desafiando a vontade materna, parte para o Mundo dos Homens, acompanhada por Steve e armada com a espada Matadora de Deuses. Seja qual for o seu desfecho, mãe e filha sabem que aquela será uma viagem sem retorno.

Steve Trevor foi o primeiro homem a pisar Temiscira.

Em Londres, Diana e Steve entregam o caderno de Maru ao Conselho Supremo da Guerra, onde Sir Patrick Morgan, um ardoroso pacifista, tenta sem sucesso negociar um armistício com a Alemanha. Ao traduzir os apontamentos de Maru, Diana descobre que os alemães planeiam soltar o novo gás mostarda na Frente Ocidental.
Ao arrepio das ordens diretas do seu comandante e com o financiamento secreto de Sir Patrick, Steve recruta o espião argelino Sameer, o atirador escocês Charlie e o Chefe Napi, um contrabandista blackfoot. Juntamente com Diana, formam o grupo de desajustados que irá auxiliar Steve na sua arriscada missão de sabotagem no laboratório do terror de Maru.
Chegado à Bélgica, o grupo é impedido de prosseguir a sua jornada devido ao intenso fogo alemão. Num ímpeto, Diana avança sozinha pela Terra de Ninguém e, para assombro de todos, destrói a trincheira inimiga.
Depois de libertarem Veld, uma pequena vila ocupada pelos alemães, o grupo comemora brevemente, sendo o momento eternizado numa chapa fotográfica. Nessa mesma noite, enquanto dançam sob uma chuva de minúsculos flocos de neve, Diana e Steve apaixonam-se.

Retrato para a posteridade.

No dia seguinte, Steve é informado do baile de gala que se irá realizar no Alto Comando Alemão, a poucos quilómetros da vila. Steve e Diana infiltram-se separadamente na festa, com objetivos diferentes. Diana pretende matar Ludendorff, mas é impedida por Steve, receoso de que isso comprometa a sua missão primária: localizar e destruir o gás.
Ludendorff escapa em meio à confusão e ordena a libertação do gás sobre Veld, matando todos os seus habitantes. Culpando Steve pelo massacre, Diana persegue Ludendorff até ao aeródromo onde um bombardeiro alemão com destino a Londres está ser carregado com o gás.
Diana encurrala Ludendorff, mas fica confusa quando a morte do general não põe fim à guerra. Sir Patrick entra em cena e revela ser o disfarce humano de Ares. O deus da guerra admite ter influenciado subtilmente os homens, mas foram eles que, mercê da sua natureza corrupta e violenta, decidiram matar-se uns aos outros.
Diana golpeia Ares com a Matadora de Deuses, mas o vilão quebra a lâmina sem esforço. Divertido com a perplexidade de Diana, Ares revela que, como filha de Zeus e Hipólita, é ela, e não a espada, a verdadeira Matadora de Deuses.

Ares regressou da morte e trouxe o Inferno com ele.

Ao mesmo tempo que Diana e Ares retomam a sua contenda, Steve e a sua equipa destroem o laboratório de Maru. Depois de sequestrar o bombardeiro com a carga mortífera, Steve fá-lo explodir a uma altitude segura. No solo, Diana testemunha, impotente, o martírio do homem que ama.
Ares procura manipular a raiva e a dor de Diana, instigando-a a matar Maru, mas a Princesa Amazona já passou tempo suficiente no Mundo dos Homens para saber que existe bondade no coração humano. Poupando a vida a Maru, Diana redireciona o raio de Ares, matando-o para sempre. Mais tarde nessa noite, soldados e civis comemoram em conjunto o fim da mãe de todas as guerras.
De volta ao presente, Diana envia um email a Bruce Wayne, agradecendo-lhe a fotografia. O espectro da guerra volta a pairar sobre o Mundo dos Homens, mas a princesa das Amazonas será sempre uma Embaixadora da Paz.

Trailer

Curiosidades

*A grande batalha na praia que opõe as Amazonas aos marinheiros alemães no encalço de Steve Trevor demorou duas semanas a ser rodada e envolveu duas unidades de filmagem equipadas com seis câmaras. As tomadas de cena eram composições digitais de dois locais distintos: um com grandes falésias brancas, outro com um areal extenso o suficiente para acomodar a ação. Matthew Jensen, o diretor de fotografia, afirmou que, além de filmar um cenário visual tão complexo devido à profusão de câmaras, atores e figurantes, o maior desafio passou por manter a iluminação consistente ao longo de tantos dias, e com várias alterações meteorológicas à mistura;
*Interpretadas por supermodelos e atletas de alta competição de diversas nacionalidades (nenhuma delas grega), algumas das Amazonas usam um tecido cor de pele sobre um dos lados do peito. Trata-se de uma referência à forma como essa lendária casta de guerreiras era tradicionalmente retratada na arte clássica. Fontes antigas afirmam que as Amazonas amputavam ou queimavam o seio do lado dominante, de modo a melhorar o seu desempenho em combate, especialmente quando usavam arco e flechas. O seu nome deriva, aliás, do vocábulo grego "a-mazos", que significa "sem peito";

Brooke Ence, referência mundial de Crossfit,
deu corpo a uma Amazona.

*Após ser salvo dos alemães por Diana e suas irmãs de armas, Steve Trevor refere-se sarcasticamente ao lar das Amazonas como Ilha Paraíso. Era esse o nome original da ilha na banda desenhada e, também, na série televisiva da Mulher-Maravilha. No pós-Crise, quando George Pérez recontou a origem da Princesa Amazona, a Ilha Paraíso foi rebatizada de Temiscira, em tributo à mitologia helénica;
*O General Erich Ludendorff foi uma personagem real e de má memória para os soldados inimigos. Valendo-se da sua condição de comandante supremo das forças alemãs durante a I Guerra Mundial, autorizou o uso do famigerado gás mostarda, um agente corrosivo capaz de derreter tecidos moles e que, dependendo do grau de exposição, podia causar cegueira temporária ou permanente, danos duradouros nos pulmões e, no limite, uma morte excruciante. Após o Armistício, Ludendorff, como tantos outros ex-combatentes germânicos, sentiu-se traído pela classe política e apoiou o golpe fracassado de Adolf Hitler em Munique, mas distanciou-se do futuro chanceler muito antes do Partido Nazi alcançar o poder;
*O relógio que Steve Trevor usa é um relógio de bolso adaptado com um estojo de couro para ser usado no pulso. Geralmente presos numa corrente, os relógios de bolso eram os mais comuns na época, mas provaram-se impraticáveis na linha da frente. Uma vez que o tempo era fundamental para coordenar ações em grande escala, como ataques de infantaria apoiados por barragens de artilharia, os soldados passaram a usar os relógios nos pulsos. No final da guerra, a moda espalhou-se entre os civis, tornando os relógios de bolso acessórios obsoletos;
*A escolha da atriz espanhola Elena Anaya para interpretar a Doutora Maru (uma mulher desfigurada que esconde as cicatrizes com uma prótese plástica) foi uma homenagem de Patty Jenkins à sua atuação em A Pele Onde Eu Vivo (2011), de Pedro Almodóvar. Uma das mais antigas adversárias da Mulher-Maravilha na banda desenhada, Maru surgiu no início de 1942, no rescaldo do ataque a Pearl Harbor, como uma princesa japonesa que chefiava o departamento de armas químicas dos nazis, sendo por isso alcunhada de Doutora Veneno;

Doutora Veneno é uma das mais antigas 
adversárias da Mulher-Maravilha.

*Melhor amiga e companheira de aventuras da Mulher-Maravilha, Etta Candy foi criada, tal como a própria Diana, por William Moulton Marston e H.G. Peter. Apesar de ter sido várias vezes reinventada desde a Idade de Ouro, foi quase sempre retratada como uma mulher alegre, anafada e afoita. Descontando a mudança de nacionalidade (de americana passou a inglesa), a sua congénere cinematográfica evoca a aparência e maneirismos da personagem original;
*Patty Jenkins, uma grande admiradora da série televisiva da Mulher-Maravilha, convidou Lynda Carter e Lyle Wagoner (o Steve Trevor original) a participarem no filme, mas ambos foram impedidos de aceder ao pedido da realizadora, devido aos seus compromissos profissionais. Ignora-se que papéis teria Jenkins em mente, mas muitos fãs sonhavam com uma Rainha Hipólita interpretada por Lynda Carter;
*Sucedendo no papel a Cathy Lee Crosby e Lynda Carter, Gal Gadot foi a terceira atriz (e a primeira não americana) a emprestar corpo à Mulher-Maravilha. Apesar do treino intensivo a que se sujeitou durante nove meses e que lhe acrescentou quase oito quilos de massa muscular, Gal não mereceu a aprovação de muitos fãs, desagradados com o seu corpo demasiado esguio. Quando foram necessárias refilmagens, Gal, grávida do seu segundo filho, insistiu em fazer ela própria as cenas mais arriscadas;

Cathy Lee Crosby (1974) e Lynda Carter (1975-79) foram
as primeiras Mulheres-Maravilha de carne e osso.

*No início de 2021, Zack Snyder compartilhou na suas redes sociais uma imagem conceptual que mostrava Diana durante a Guerra da Crimeia (1853-1856).  A Princesa Amazona surgia rodeada por um grupo de guerreiros de diferentes origens e segurando três cabeças decapitadas como se troféus de caça se tratassem. Elementos que sugerem que a história idealizada por Snyder teria sido muito mais sombria e violenta do que aquela que foi mostrada na película dirigida por Patty Jenkins.
Além de ter sido o primeiro conflito bélico a ser fotografado (e um dos primeiros a ser telegrafado), a Guerra da Crimeia foi, pela sua escala continental, uma espécie de prelúdio da I Guerra Mundial;

Outra guerra, outros guerreiros.

*Na cena extra incluída na versão DVD e Blu-ray, Etta Candy, Sameer, Charlie e o Chefe voltam a reunir-se logo após o Armistício, com vista à preparação de uma missão secreta envolvendo uma Caixa Materna. A cadeia de eventos por eles colocada em marcha culminaria, séculos mais tarde, na formação da Liga da Justiça para impedir a invasão da Terra pelas hordas de Darkseid;
*Perto do final do filme, Diana descobre, enfim, a sua verdadeira origem e propósito. A princesa das Amazonas é o fruto da união transgressora da Rainha Hipólita com Zeus, fazendo de Ares seu meio-irmão. Esta relação familiar remete para a versão moderna da Mulher-Maravilha apresentada na fase Novos 52, mas sem qualquer substrato comum com a mitologia grega. Na história clássica, Hipólita era filha de Ares e, portanto, neta de Zeus (sendo Diana sua bisneta).


Veredito: 80%

Não era de estranhar o ambiente de receosa expectativa que rodeava a estreia da primeira longa-metragem da Mulher-Maravilha. O fogo cerrado da crítica sobre Batman versus Superman e Esquadrão Suicida parecia ter ferido de morte a incipiente franquia cinematográfica da DC. Como Atlas, Diana foi, pois, chamada a carregar nos ombros o peso, não do mundo, mas de todo um universo expandido.
Ciente da enormidade da tarefa, a realizadora Patty Jenkins tomou a decisão sensata de optar por um caminho simples. Mulher-Maravilha é uma história clássica de origem, estruturada para apresentar ao grande público a campeã da Verdade e do feminismo criada por William Moulton Marston, no já distante ano de 1941.
Na sua narrativa leve e divertida, intercalada por empolgantes cenas de ação, são óbvias as influências de Superman (1978). Acresce ainda um bónus raro nas atuais produções do género: apesar da referência inicial a Batman versus Superman, não é necessário ter assistido aos filmes anteriores da franquia para compreender a história.
Essa combinação - simplicidade narrativa e apelo emocional - confere à película uma aura de cinema antigo, que se distancia do tom sombrio dos seus antecessores, resgatando graciosamente o Universo Estendido da DC da pátina do cinismo e da desesperança.
No cômputo geral, Mulher-Maravilha é uma obra bem balanceada. Até as cenas de luta, que geralmente se estendem por longos e fastidiosos minutos de CGI e câmara lenta, acontecem no tempo certo. Em vez de ser a atração principal, a pirotecnia digital serve apenas como uma ferramenta.
Embora coberto de virtudes, o filme tem também os seus pecadilhos, desde logo a caracterização dos vilões. Ares é o gatilho para a transformação de Diana em Mulher-Maravilha, mas a sua revelação ocorre tardiamente e não surpreende (quase) ninguém. Rasos como pires, o General Ludendorff e a Doutora Maru são praticamente caricaturas vilanescas. Esta última podia perfeitamente ter sido substituída por um cientista genérico, já que a sua função na trama se resume a criar o gás.
Apesar dos pesares, Mulher-Maravilha é o filme que a DC precisava, que os fãs pediam e que Diana merecia. A sua mensagem simples, calorosa e universal, relembra-nos que os heróis e heroínas servem para nos inspirar, não para deprimir-nos. Para isso já basta o mundo contingente dos homens e mulheres comuns.

A Mulher-Maravilha reergueu sozinha o Universo Estendido da DC.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre William Moulton Marston e a fase de George Pérez disponíveis para leitura complementar.