09 abril 2025

MARVEL COMICS

  A imaginação e a irreverência serviram de matérias-primas aos arquitetos da sua mística que, sem fecharem janelas para o mundo real, abriram claraboias para outros universos. De negócio familiar a conglomerado multimédia, a Casa das Ideias continua a fabricar mitos que se fundem e confundem com o imaginário popular.

MUSEU DE MARAVILHAS


No decurso da sua já vetusta história, a Marvel tornou-se sinónimo de personagens carismáticas e sagas memoráveis. Com assinalável impacto na indústria dos comics americanos e na cultura do entretenimento como um todo, a evolução da Casa das Ideias refletiu, desde sempre, o compasso do mundo real. Segunda Guerra Mundial, Era Atómica, corrida ao Espaço e a luta pelos direitos civis das minorias foram alguns dos acontecimentos históricos que lhe moldaram os conceitos. Embora conotadas com o escapismo, as suas publicações são, afinal, crónicas políticas e sociais dos EUA.
Na vertente empresarial, a Marvel, como veremos, passou por muitos altos e baixos. Mesmo nos momentos mais críticos demonstrou, porém, possuir uma resiliência que não só lhe garantiu a sobrevivência, como lhe abriu novos e lucrativos horizontes de possibilidades.
Apesar de ser uma das mais antigas editoras de banda desenhada do mundo ainda em atividade, só na década de 1960 a Marvel emergiu como força criativa verdadeiramente distinta e influente. No ressalto da sua revolução do género super-heroico, a indústria de quadradinhos americana adentrou numa segunda Idade de Ouro. E foi precisamente na primeira Idade de Ouro, quando os comics eram ainda uma cultura de nicho produzida por pessoas de reputação questionável, que a Marvel, hoje uma marca global, começou a erigir o seu império. 

Toque de Midas

As modestas origens da Marvel começam com uma homem chamado Martin Goodman. Fascinado por revistas desde criança, Goodman ambicionava vir a ter um dia a sua própria casa publicadora. Esse sonho seria parcialmente cumprido quando, ainda nos seus verdes anos, começou a trabalhar como vendedor da nova-iorquina Independent News.
Em 1932, Goodman e um sócio fundaram a Western Fiction Publishing, uma editora de revistas pulp dirigidas a adolescentes e jovens adultos. Numa época de concorrência feroz e poder aquisitivo rarefeito pela Grande Depressão, Goodman, sempre previdente, criou múltiplas subsidiárias. Se alguma delas falisse, as restantes não seriam afetadas. Tampouco alguém perderia o emprego, uma vez que o staff era comum a todas elas.
Cada uma dessas microempresas procurava capitalizar o interesse do público por um género específico em determinado momento. À súbita alteração de tendências respondiam com a imediata alteração de conteúdos. Se os leitores se desinteressavam dos contos policiais passando a preferir as histórias de faroeste, logo a Western, qual camaleão, editorial, se adaptava à preferência do público. A Goodman pouco interessava o tipo de material publicado, contanto que fosse vendável. Foi essa estratégia comercial que, em última análise, lhe permitiu afirmar-se num mercado volátil e altamente competitivo. 
Em 1938, Goodman publicava 27 revistas, com uma amplitude de registos que abarcava desde o faroeste à ficção científica, passando pelas aventuras na selva. Entre os títulos com maior tiragem sobressaíam Best Western, Ka-Zar (cópia carbono de Tarzan que ainda hoje integra o cânone da Marvel) e Marvel Science Stories. Esta última uma antologia de ficção científica que contava com a colaboração de alguns dos melhores autores do género.

Nascido Moe Goodman, Martin Goodman (1908-1992)
foi um dos reis dos pulps
durante os anos de chumbo da Grande Depressão.


Marvel Science Stories
 foi uma das publicações mais emblemáticas da Western Fiction.

No seguimento de uma conversa casual com um vendedor da Funnies Inc. sobre o promissor futuro da banda desenhada, Goodman, confiante no seu toque de Midas, decidiu aventurar-se na publicação desse tipo de conteúdos. A Funnies Inc. tinha os conceitos e os recursos humanos para produzi-los, mas faltava-lhe a logística necessária à impressão e distribuição. Goodman dispunha dela e dessa sinergia nasceu, em 1939, a Timely Comics. Sediada nos escritórios da Western, na 42nd Street de Nova Iorque, a nova editora tinha Martin Goodman como presidente-executivo e o seu irmão Abraham como gestor comercial.
Impulsionados pelo recente sucesso do Super-Homem, os super-heróis eram a febre do momento entre os leitores de histórias aos quadradinhos. Previsivelmente, a primeira publicação da Timely incluía vários desses espécimes. De uma assentada, em outubro de 1939 Marvel Comics #1 (renomeada Marvel Mystery Comics a partir do segundo número) apresentou ao mundo o Tocha Humana, o Príncipe Submarino e o Anjo (sem qualquer relação com o X-Man homónimo). Os dois primeiros foram êxitos instantâneos e, mesmo sem ombrearem com Super-Homem e Batman, garantiram à Timely uma generosa fatia do mercado. Participação que, já depois de Goodman ter descartado a Funnies Inc., seria reforçada pelo seu primeiro super-herói de cunho patriótico.



Primeiro título lançado sob o selo da Timely, Marvel Comics #1
vendeu 80 mil cópias,
levando Goodman a lançar uma segunda edição que decuplicou esse valor.

Criação de Joe Simon e Jack Kirby em 1941, o Capitão América, além da epítome do patriotismo ianque, tornou-se o campeão de vendas da Timely. O Sentinela da Liberdade simbolizava, ademais, o apelo intervencionista que, face ao avanço imparável do nazifascismo na Europa, se imiscuía nas publicações da editora - facto a que não seriam alheias as origens judaicas dos irmãos Goodman.
Sendo verdade que antes, durante e depois da entrada dos EUA na II Guerra Mundial várias editoras tinham dado ao prelo histórias impregnadas por um forte sentimento antinazi, a Timely esteve entre as primeiras a fazê-lo. Logo em fevereiro de 1940, a capa de Marvel Mystery Comics #4 mostrava Namor numa refrega com a tripulação de um submarino alemão.
Quando, por fim, os EUA se juntaram aos beligerantes, a Timely lançou um magote de heróis patrióticos em narrativas simplistas e exageradas. Apesar de pouco ou nada informarem os leitores sobre a evolução do conflito, incutiam fervor patriótico nos seus jovens leitores e levantavam a moral dos G.I. Joe destacados para a Europa e para o Pacífico.
Encorajada pelo enorme sucesso do Capitão América (cuja revista mensal vendia, em média, um milhão de exemplares), a Timely continuou a expandir as suas operações. Foi então que, pela mão de Martin Goodman, aquele que viria a ser uma das maiores lendas da Arte Sequencial entrou na indústria dos comics. Stanley Lieber, primo adolescente da esposa de Goodman, foi contratado como assistente de redação, mas depressa passou a argumentista. Com aspirações literárias, Stanley olhava com desdém para as histórias aos quadradinhos e, como tantos outros escritores do meio, adotou um nom de plume que o imortalizaria no imaginário coletivo: Stan Lee.
No que a alguns se poderá prefigurar como um flagrante caso de nepotismo, o inexperiente Stan Lee foi promovido a chefe do departamento criativo quando Simon e Kirby abandonaram a Timely, devido a desentendimentos sobre royalties. Forçado a assumir essa importante função, Lee acabaria por ser decisivo para o futuro da editora. 
Como a maioria das suas concorrentes, a Timely prosperou durante a II Guerra Mundial, ao ponto de transferir as suas instalações para o Empire State Building. O conflito teve tanto destaque nas suas publicações que as vendas - em particular de super-heróis - caíram a pique com o regresso da paz. 
Sem pensar duas vezes, Martin Goodman cessou a publicação de títulos de super-heróis e passou a explorar géneros mais populares, como o crime e o terror. Exemplos típicos desta abordagem foram Lawbreakers Always Lose (resposta ao sucesso de Crime Does Not Pay, da Lev Gleason) e Strange Tales (imitação barata de Tales From the Crypt, da EC). O que faltava em qualidade às suas publicações, a Timely compensava com quantidade, maximizando as vantagens da rede de distribuição de Goodman.

Atlas do futuro 

Com um inventário composto por 82 publicações periódicas, em 1950 Martin Goodman fundou uma nova empresa de distribuição para reduzir custos operacionais. A partir do ano seguinte, o logotipo da Atlas News Company - um singelo globo preto e branco -  passou a adornar as capas de todas elas.
À mudança de nome não correspondeu, porém, uma mudança de estratégia. A nova velha editora manteve-se fiel à prática consagrada de acompanhar as tendências mais populares. Em vez de inovar, a Atlas preferiu, como sempre, jogar pelo seguro. 
Quando a Guerra da Coreia restituiu o apelo às narrativas militares, a Atlas lançou-as em catadupa. Os protagonistas já não eram super-heróis patrióticos, mas soldados comuns cujo medo, dor e desespero eram retratados de forma crua. A violência gráfica que permeava as histórias servia também para expor a crueldade no campo de batalha. Muito provavelmente, isto refletia os traumas dos seus autores, na sua maioria veteranos da II Guerra Mundial que tinham visto de perto o seu interminável cortejo de horrores.

A Guerra da Coreia (1950-53) foi um maná para a Atlas. 
Com uma circulação média de 700 mil exemplares, 
War Comics era um dos seus títulos mais populares.

A meio da década de 1950,  a Atlas tentou, sem sucesso, recuperar aquele que tinha sido o ativo mais valioso da Timely. Caixa de ressonância do macarthismo, o Capitão América era agora visceralmente anticomunista, mas a fria reação dos leitores depressa o voltou a colocar em animação suspensa. Revés de somenos por comparação com o que estava para vir. 
A roda da fortuna de Martin Goodman começou a desandar em 1954, quando, no rescaldo de uma Subcomissão do Senado dos EUA que investigou a alegada correlação entre banda desenhada e delinquência juvenil, as vendas da Atlas iniciaram uma curva descendente. Daí à falência da sua empresa de distribuição foi um passo de anão.
Antes de dobrar a esquina da década, a Atlas, que publicara mais banda desenhada do que qualquer outra editora, tornou-se uma empresa marginal no setor. 
Em 1956, logo após ter deixado de distribuir o próprio material, a Atlas passou a operar através da American News Company (ANC), a maior e mais poderosa distribuidora de revistas e jornais nos EUA. Contrariando as esperanças de Martin Goodman, a ANC foi no entanto forçada a cessar atividade pouco tempo depois, devido a práticas comerciais irregulares.
Numa jogada desesperada de quem acabara de ser destrunfado, Martin Goodman sacou um último ás da manga: Independent News. A empresa onde Goodman trabalhara na juventude, mas que era agora propriedade da sua principal concorrente. Previsivelmente, a DC valeu-se dessa situação para impor uma drástica redução do número de publicações que a Atlas poderia fazer chegar às bancas: 16 títulos bimestrais era o limite ditado.
Estas restrições draconianas, somadas à recessão económica de 1957, obrigaram a Atlas a retrair-se ainda mais. Depois de ter dispensado todo o seu pessoal - à exceção de Stan Lee - a editora dependeu, por algum tempo, de reimpressões e material rejeitado.
O rápido declínio da Atlas deixou-a à beira do precipício, mas a situação desesperadora inspirou uma nova estratégia de tomada de riscos que a devolveria ao jogo. As sementes dos fracassos presentes germinariam êxitos futuros.

Triunfo dos outsiders 

Desde a segunda metade da década de 1950 que a DC vinha resgatando da pátina do esquecimento alguns dos seus justiceiros fantasiados da Idade de Ouro. Face ao recrudescimento do interesse do público pelos super-heróis, Martin Goodman, sempre sintonizado com as tendências do mercado, decidiu voltar a apostar neles. Sabia, no entanto, que não bastaria imitar; era preciso inovar.
Para sinalizar essa rutura com o passado, Goodman mudou novamente o nome à sua casa publicadora. Assim, em junho de 1961, o 69º número de Journey Into Mystery - antologia de terror e ficção científica que, tal como as suas "irmãs" Strange Tales e Tales to Astonish, logo seria convertida em placa de Petri editorial - foi a primeira a ostentar na capa um minúsculo quadrado com as letras MC. Tratavam-se das iniciais de Marvel Comics, em homenagem ao primeiro título publicado pela Timely no já distante ano de 1939.
A pensar nos leitores maduros, Stan Lee e o regressado Jack Kirby criaram a primeira família de super-heróis. O Quarteto Fantástico foi apresentado ao mundo em The Fantastic Four #1 (novembro de 1961) e, de uma penada, quebrou várias convenções do género super-heroico. Desde logo a ausência de uniformes coloridos e identidades secretas. Os seus membros detinham o estatuto de celebridades e, por contraponto aos heróis impossivelmente nobres e um tudo nada monótonos da DC, exibiam fraquezas humanas, como o ciúme e a intemperança. A despeito dos seus fabulosos poderes, os Quatro Fantásticos falavam, agiam e sentiam como pessoas comuns.
Quando as vendas aumentaram e os fãs elogiaram a caracterização do Quarteto Fantástico, Lee soube que tinha encontrado uma fórmula para o sucesso. Era agora uma evidência solar que o Baby Boom tinha criado uma nova geração de leitores que se deixava cativar por este estilo revolucionário de escrita.
Para aprofundar ainda mais as tramas, Lee usava e abusava dos balões de pensamento. Via aberta para a intimidade das personagens, esse recurso narrativo tornava-as mais relacionáveis. Os leitores identificavam-se com os seus dramas e dilemas pessoais, e neles procuravam respostas para os seus próprios.



Fantastic Four #1 apresentou um novo tipo de super-heróis
e sinalizou o início da Era das Maravilhas.

Firmada a doutrina de Lee, nos anos imediatos a Marvel introduziu uma sucessão de personagens que recusavam perder-se na floresta de lugares-comuns de um género tão codificado como o dos super-heróis. Isto aplicava-se, particularmente, ao Homem-Aranha e aos X-Men. O primeiro era um adolescente a braços com problemas mundanos e inseguranças típicas de alguém da sua idade; os segundos eram exilados da Humanidade que lutavam em prol de um ideal de tolerância num mundo que os temia e odiava. 
Mas o Escalador de Paredes e os Filhos do Átomo não eram os únicos outsiders. Do Incrível Hulk ao Demolidor, passando pelo Surfista Prateado, todos tinham, de alguma forma, o apelo do estranho incompreendido que se tornou imagem de marca da Marvel. A redescoberta do herói marginal propiciou o reconhecimento tardio por parte da indústria dos comics da enorme importância dessa figura mítica no imaginário americano.
A retórica ambígua dos super-heróis da Marvel refletia, por outro lado, as ansiedades decorrentes da Guerra Fria. O próprio conceito de um herói falho e problemático que, apesar das suas boas intenções, nem sempre conseguia realizar o que pretendia metaforizava as limitações dos EUA enquanto superpotência mundial.
Sem alienar os mais novos, todos estes elementos despertaram o interesse dos leitores mais velhos, incluindo de jovens adultos em idade universitária. Em 1965, a revista Esquire noticiou que a Marvel se havia tornado um fenómeno nos campus americanos, enquanto personagens como o Doutor Estranho eram reverenciadas pela contracultura. A Marvel ganhou, assim, uma aura pop e o próprio Stan Lee tornou-se uma celebridade menor. 
Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko, arquitetos da mística da Casa das Ideias, haviam criado uma nova mitologia, um universo complexo com personagens e temas interligados que fascinavam leitores de diferentes grupos etários. Num aparente contrassenso, a Marvel explorava o ethos escapista através dos dramas e angústias do mundo real.

Das ruínas nasce um império

Enquanto a convulsa década de 1960 rolava vertiginosamente para o seu final, a Casa das Ideias ainda ressumava criatividade e os negócios corriam de vento em popa a Martin Goodman. Mesmo condicionada pelo acordo de distribuição com a Independent News, a Marvel vendia anualmente perto de 50 milhões de cópias e ameaçava cada vez mais a hegemonia da DC.
Para assombro geral, em outubro de 1968 Goodman vendeu a Marvel e a sua empresa-mãe - a Magazine Management - à Perfect Film & Chemical Corporation (posteriormente renomeada Candice Industries Corporation). Apesar da transferência de propriedade, Goodman conservou o cargo de publisher (diretor editorial) e a estrutura da empresa manteve-se praticamente intocada.
A jusante desta aparentemente descabida decisão de Goodman esteve a crise por ele intuída. Com as vendas em declínio, resultava óbvio que o boom de super-heróis tinha chegado ao fim e que, muito em breve, a indústria dos comics voltaria a cair no marasmo.
As profundas transformações culturais em marcha desde o início do decénio tinham, com efeito, afastado progressivamente os jovens americanos das histórias de super-heróis. Engajados com causas como o feminismo e a oposição à Guerra do Vietname, eram agora um grupo altamente politizado, determinado em desafiar as normas sociais para alisar as rugas do mundo. O seu ativismo deixava pouco espaço ao escapismo. 
Em 1969, Martin Goodman rasgou finalmente o acordo com a Independent News e assinou um novo com a Curtis Circulation Company. Sem limites à distribuição impostos pela Distinta Concorrente, a Marvel podia agora lançar tantos títulos quantos a demanda justificasse. Ironicamente, um dos efeitos tangíveis da crise pressentida por Goodman foi o cancelamento de várias das suas séries periódicas.
Se no domínio empresarial os ventos deixavam de ser benfazejos, no campo criativo a Marvel continuava a dar cartas. Em 1971, em resposta ao preocupante aumento de overdoses, o Departamento de Saúde dos EUA contactou Stan Lee, ao tempo editor-chefe da Marvel, para produzir uma banda desenhada que alertasse os jovens para os perigos do consumo de estupefacientes. Lee correspondeu ao pedido escrevendo uma dramática história do Homem-Aranha na qual Harry Osborn, o melhor amigo de Peter Parker, sofria um surto psicótico induzido por um substância lisérgica. 

Depois de Mary Jane o ter deixado, Harry Osborn mergulhou numa espiral autodestrutiva.
Através desta controversa história, a Marvel prestou um importante serviço público.

Apesar da sua intenção pedagógica, a história não passou no crivo da Comics Code Authority (CCA), o conselho de autocensura da indústria dos quadradinhos americanos. Com o beneplácito de Martin Goodman, Stan Lee ignorou o veto da CCA e publicou a história nos números 96, 97 e 98 de The Amazing Spider-Man. Perante a reação positiva dos leitores e os elogios da imprensa, a CCA não teve outro remédio senão rever os seus critérios, sob pena de ter o seu poder de supervisão esvaziado.
Goodman abandonou em definitivo a Marvel em 1972, colocando o seu filho Chip nos eixos da sucessão como publisher. Pouco tempo depois, Stan Lee acumularia essas funções com as de presidente não executivo. Em rigor, o seu curto mandato resumiu-se a uma medianamente bem-sucedida campanha de relações públicas, destinada a aumentar a ressonância social e mediática da Casa das Ideias.
Coincidindo com esta transição de poder, a Marvel ultrapassou a DC em vendas, pondo fim à longa hegemonia da Editora das Lendas. Forçada a reconhecer a superlativa qualidade do material da arquirrival, a DC tentou - quase sempre de forma desajeitada e raramente com sucesso comercial comparável - adaptar a abordagem da Marvel às suas personagens. Os leitores, porém, continuaram a preferir o original à cópia.
À entrada da década de 1980, a Marvel expandiu a sua linha com propriedades licenciadas, tendo sido fundamental no desenvolvimento de histórias aos quadradinhos baseadas em brinquedos. Micronauts e Rom, The Spaceknight foram não só exemplos pioneiros, mas muito mais populares do que os produtos originais. Abrindo caminho, dessa forma, a uma parceria da Marvel com a Hasbro para relançar G.I. Joe e criar os Transformers. 
O novo modelo de negócios da Marvel levou ainda à criação de duas subsidiárias: a Epic Comics e a Star Comics Ao passo que a primeira oferecia histórias não convencionais e garantia direitos autorais, a segunda seduzia o público infantil com as suas personagens ternurentas. 
Por esses dias, os estudos de mercado indicavam que a Marvel era a mais vendida tanto no mercado tradicional como no cada vez mais importante segmento das lojas especializadas. Para reforçar a sua posição dominante, a editora retomou a antiga estratégia de inundar o mercado com títulos. 
A ideia era submergir a concorrência,  mesmo que algumas dessas publicações saíssem de circulação ao fim de pouco tempo. Foi o caso, por exemplo, da linha Novo Universo, lançada em 1986 para celebrar as bodas de prata da Marvel. Nesse mesmo ano, a nova empresa-mãe da Marvel - a Marvel Entertainment Group - foi vendida à New World Entertainment. Que, por sua a vez, a venderia, no final de 1998, à MacAndrews & Forbes Incorporated, detida pelo investidor de Wall Street Ronald Perelman. 

Hoje quase esquecido, o Novo Universo
 foi um dos maiores flops da história da Marvel.

A partir de 1991, a Marvel, por iniciativa de Perelman, passou a estar cotada na Bolsa de Valores de Nova Iorque. A rápida valorização das suas ações permitiu a Perelman emitir obrigações de alto risco que utilizou para adquirir outras empresas de entretenimento. 
O sucesso empresarial da Marvel suscitou, contudo, algumas reações negativas por parte dos fãs e da crítica especializada. Outrora na vanguarda do mercado, os conteúdos da Marvel aproximavam-se perigosamente do mainstream. Muitos leitores ficaram desagradados com os desconcertantes crossovers e com a nova tendência de disseminar personagens populares, como Homem-Aranha e X-Men, por uma panóplia de títulos interligados. Alguns criadores queixavam-se igualmente da atmosfera corporativa instalada na editora que haviam romantizado na juventude.
No entanto, quando, em 1996, a acentuada desvalorização bolsista da Marvel levou a empresa a requer proteção contra a falência iminente, essa débacle deveu-se mais aos investimentos imprudentes de Perelman do que à impopularidade das publicações da derruída Casa das Ideias.
Nos anos terminais da década de1990, Ike Perlmutter e Avi Arad, executivos da Toy Biz, desenharam um ambicioso plano de fusão com a Marvel, que contemplava a produção de filmes de grande orçamento. Após sucessivas reestruturações, a Marvel saiu da falência em 2000. Aliviados, os fãs presenciaram o alvorecer de uma nova e gloriosa era. Das ruínas nasceria um império.
Logo na viragem do século, a primeira longa-metragem dos X-Men arrecadou uns impressionantes 54 milhões de dólares no fim de semana de estreia. Menos impressionantes, ainda assim, do que os 400 milhões de dólares gerados dois anos depois pelo tão aguardado filme do Homem-Aranha. Apesar de ter recebido apenas 5% desse valor, a Marvel obteve um apreciável encaixe financeiro por via do licenciamento da marca Homem-Aranha para uma gama tão variada de produtos desde vestuário a jogos de vídeo. 

Através do seu Universo Cinematográfico, a Marvel industrializou os filmes de super-heróis
e tornou-se uma marca global.

Graças às receitas multimilionárias de filmes e merchandising, a Marvel logrou crescer e expandir o seu catálogo editorial, embora já sem o fulgor pretérito. Comprada pela Disney em finais de 2009, por uns "módicos" 4 mil milhões de dólares, a Marvel tornou-se o ramo editorial de algumas das mais lucrativas franquias da sua nova empresa-mãe, com destaque para Star Wars.
Ao abrigo de um programa de redução de custos implementado nesse ano pela Disney, desde 2023 que a Marvel enquanto empresa foi formalmente dissolvida, fazendo agora parte da Disney Publishing Worldwide.
Mais do que uma simples editora de banda desenhada, a Marvel é hoje um rolo compressor cultural. Os omnipresentes filmes de super-heróis converteram as suas personagens em ícones globais e máquinas de fazer dinheiro. O crescimento de convenções de fãs, dentro e fora dos EUA, é outra prova inequívoca do supino ascendente da Marvel na cultura popular.
Desde os seus primórdios como negócio familiar até ao moderno conglomerado multimédia, o legado da Marvel teve como argamassa a imaginação, a inovação e a irreverência. Apesar de octogenária, a Casa das Ideias vende saúde e promete maravilhar gerações vindouras.


* Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia do Português.
* Textos sobre Timely Comics, Capitão, América, Namor, Tocha Humana, Quarteto Fantástico e Doutor Estranho disponíveis para leitura complementar.






 




 

















07 dezembro 2024

HERÓIS EM AÇÃO: NOVOS TITÃS


  A Justiça ganhou vigor juvenil quando os eternos sidekicks saíram da sombra dos seus mentores para, juntos, alisarem as rugas do mundo e darem voz à nova geração. Já sem o idealismo adolescente, mas sempre com uma nobreza acima da idade, na década de 80 foram a vanguarda da revolução que salvou a DC da irrelevância. 


Denominação original:  Teen Titans
Editora: DC 
Criadores: Bob Haney e Bruno Premiani
Estreia: Com data de capa de julho de 1964, Brave and the Bold #54 é comummente apontada como a edição de estreia da Turma Titã (como a equipa original ficou conhecida no Brasil). No entanto, isso é apenas parcialmente verdade. 
Na história em apreço, Robin, Kid Flash e Aqualad agem em conjunto, mas de forma casual, sem qualquer referência aos Titãs. Foi preciso esperar mais um ano para, em Brave and the Bold #60, o grupo - entretanto convertido em quarteto com a entrada da Moça-Maravilha - ganhar estatuto e designação oficial. Tecnicamente, foi nesta edição que a Turma Titã foi fundada.
Local de formação: Hatton Corners
Membros fundadores: Robin, Kid Flash, Aqualad, Moça-Maravilha e Ricardito. Este último, apesar de só se ter juntado ao grupo em Teen Titans #4 (1966), obteve a posteriori o estatuto de membro fundador, quando, em finais de 1967, substituiu o Menino Prodígio - cujos direitos estavam alocados à série televisiva do Duo Dinâmico - no segmento reservado à Turma Titã em The Superman / Aquaman Hour of Adventure, uma animação de baixo orçamento produzida naquele ano pela Filmation.
Base operacional: Apesar de ser o quartel-general mais icónico do grupo, a Torre Titã só foi introduzida nos anos 80. Uma imponente estrutura de vidro e aço instalada numa ilhota ao largo de Nova Iorque, a torre original foi projetada por Silas Stone, o pai de Cyborg. 
Inicialmente, Robin e companhia usavam como base secreta o Covil dos Titãs, um silo abandonado das Empresas Wayne localizado sob um penhasco adjacente ao rio Gotham, cedido por Bruce Wayne a Dick Grayson.
Némesis: Trigon, Exterminador e Irmão Sangue compõem a profana trindade de arqui-inimigos dos Titãs. De entre eles, o terceiro, devido ao tipo de mal que representa, será porventura o mais perigoso. Líder supremo da Igreja do Sangue, o Irmão Sangue personifica o fanatismo religioso em nome do qual são cometidas atrocidades inomináveis. Nessa medida, o vilão, sempre à cabeça de um exército de seguidores devotos, protagonizou algumas das histórias mais perturbadoras do grupo. 

Trindade profana: Trigon, Exterminador e Irmão Sangue.


Ídolos da juventude

Sidekick é uma daqueles anglicismos com que qualquer apreciador da cultura popular está sobejamente familiarizado, mas cuja origem poucos conhecem. Crê-se que o termo terá sido cunhado, em finais do século XIX, por carteiristas ingleses. Na gíria dos amigos do alheio, "kick" era o nome dado ao bolso frontal de umas calças, considerado o mais seguro contra furtos. Assim, por analogia, "sidekick" (bolso lateral) passou a designar o companheiro mais próximo de alguém, aquele que a pessoa traz sempre à ilharga.
Como recurso narrativo, os sidekicks são quase tão antigos quanto a própria Literatura. Um dos primeiros exemplos documentados remonta mesmo à Antiguidade. No poema épico Epopeia de Gilgamés, os deuses criam Enquidu, um homem selvagem que, após um confronto inicial, se torna amigo do protagonista e passa a acompanhá-lo na sua jornada heroica.
O companheiro do herói é, com efeito, um elemento comum da ficção literária, popularizado por figuras como Sancho Pança (D. Quixote) ou o Dr. Watson (Sherlock Holmes), e que funciona normalmente como contraponto da personagem principal. Nesse sentido, tanto pode servir de alívio cómico, elo com a audiência ou consciência moral do protagonista.
Quando o género super-heroico surgiu, nos anos terminais da década de 1930, os sidekicks foram incorporados de forma peculiar nas histórias dos justiceiros fantasiados. Quase sempre em pleno fervor da puberdade, esses coadjuvantes tinham como função primordial gerar identificação com o público infantojuvenil, que nem sempre apreciava a sisudez dos heróis adultos.
Pioneira na variante do ajudante adolescente, a DC apresentou aquele que foi o protótipo de todos os sidekicks da Arte Sequencial: Robin, o fiel escudeiro do Batman, foi apresentado logo em 1940. O sucesso do binómio Cavaleiro das Trevas/Menino-Prodígio fez escola na Idade de Ouro, mas foi somente na Idade de Prata que outros heróis proeminentes da Editora das Lendas - como Aquaman, Arqueiro Verde, Flash e Mulher-Maravilha - adquiriram os seus próprios adjuntos imberbes. Graças ao seu charme pueril, Aqualad, Ricardito, Kid Flash e Moça-Maravilha tornaram-se ídolos da juventude, em alguns casos chegando mesmo a ombrear em popularidade com os seus mentores.

Apesar de ter sido o primeiro dos sidekicks nas histórias de super-heróis,
Robin também viveu aventuras a solo.
A primeira foi apresentada em Star Spangled Comics #65 (1947)

Na senda desse precedente, era uma questão de tempo até os heróis juniores se aventurarem juntos. Tanto mais que, com a eclosão do Baby Boom, logo após o fim da II Guerra Mundial, tinha surgido e alastrado pelo mundo uma cultura focada nos adolescentes e jovens adultos que encontrou no Rock and Roll a sua banda sonora de eleição.
Também nos meandros dos quadradinhos americanos essa mudança radical nos hábitos e preferências das camadas mais jovens da população não passou despercebida. À boleia do inesperado sucesso da recém-criada Patrulha do Destino (Doom Patrol), o editor da DC George Kashdan solicitou a Bob Haney, escritor veterano e coautor do conceito, uma proposta para a criação de um novo supergrupo.
Sem pensar muito, Haney sugeriu que os principais sidekicks da DC fossem agrupados. Ideia que, em abono da verdade, não era propriamente inovadora. Em 1941, Joe Simon e Jack Kirby, então ao serviço da Timely Comics (antepassada da Marvel), haviam desenvolvido um conceito similar. Os Jovens Aliados (Young Allies) eram um grupo de aventureiros adolescentes encabeçado pelos valetes do Capitão América (Bucky Barnes) e do Tocha Humana (Centelha). Ademais, a própria DC lançara, em 1958, a Legião dos Super-Heróis, um grupo de adolescentes futuristas criados como coadjuvantes das histórias do Superboy.

Capitaneados por Bucky, os Jovens Aliados foram o primeiro grupo de
heróis adolescentes (e os primeiros a terem título próprio).

Inédito ou nem tanto, o conceito elaborado por Haney precisaria ser devidamente testado. Convertido, desde 1959, em tubo de ensaio para o lançamento de futuros títulos - e tendo-lhe cabido a honra de apadrinhar a exitosa estreia da Liga da Justiça da América - , The Brave and The Bold perfilou-se como escolha óbvia. O 54º número da revista, saído do prelo em abril de 1964, incluía no seu alinhamento uma história, escrita por Bob Haney e ilustrada por Bruno Premiani (seu parceiro criativo na Patrulha do Destino), em que Robin, Aqualad e Kid Flash eram chamados a mediar o conflito intergeracional que opunha os adolescentes aos adultos de Hatton Corners.
A tarefa dos jovens titãs da justiça, já de si desafiante, complicou-se ainda mais com a entrada em cena do Senhor Ciclone (Mister Twister), um supervilão capaz de controlar o clima e que havia sequestrado todos os adolescentes da cidade. Renovando a validade do velho aforismo "A união faz a força.", o trio de heróis juniores derrotou o Senhor Ciclone e reconciliou as gerações desavindas de Hatton Corners. No final da história os três seguiram caminhos separados, mas com a promessa de voltarem a encontrar-se.

Página de abertura de The Brave and The Bold #54, na qual os protagonistas
surgem identificados individualmente, sem qualquer referência
aos Titãs.

Com efeito, a aliança dos protegidos de Batman, Aquaman e Flash voltaria a ser colocada à prova no verão de 1965. Em The Brave and The Bold #60, publicado em julho desse ano, a Robin, Aqualad e Kid Flash juntou-se a Moça-Maravilha, e os quatro constituíram-se no grupo por ela batizado de Turma Titã (Teen Titans).
Sucede que, diferente dos seus colegas de equipa, a Moça-Maravilha não havia sido criada para ser parceira da Mulher-Maravilha, mas sim a versão jovial da própria. Sem maiores explicações, Bob Haney apresentou Donna Troy como a irmã mais nova de Diana e o resto é história.
No final de 1965, a Turma Titã foi novamente reunida, mas desta feita em Showcase #8, e já sob o lápis de Nick Cardy. Principiava, assim, a longeva ligação do artista ao grupo.  Esta foi, de resto, a última vez que a pandilha de Robin usou uma casa emprestada. 
No início do ano seguinte, a Turma Titã ganhou a sua própria revista. De periodicidade bimestral, Teen Titans - produzida por Haney e Cardy - tinha como premissa a assistência prestada pelos heróis a adolescentes em apuros enquanto percorriam eles próprios o agreste caminho até à idade adulta. Bob Haney permaneceu como argumentista e com ele a série adquiriu uma identidade muito própria através do uso (e abuso) do calão juvenil da época e de múltiplas referências à cultura popular. 
Partindo do pressuposto que o público-alvo dos comics eram catraios de doze anos residentes nos estados rurais, Haney privilegiava a coloquialidade dos diálogos, nos quais abundavam expressões idiomáticas como "os adultos são uns quadrados" ou "é uma brasa". Muitas vezes o resultado soava tolo ou exagerado e, para forçar ainda mais a identificação com a juventude, a Turma Titã era frequentemente apelidada de Fab Four (Os Quatro Fabulosos, em referência aos Beatles).

Ainda sem Ricardito, a Turma Titã ganhou a sua própria revista em 1966.

Recém-contratado à Charlton Comics, em 1968 Dick Giordano substituiu George Kashdan como editor de Teen Titans, e aos poucos foi modificando o tom das histórias. Com o lado psicadélico e fantasioso das primícias a ser moderado pelo olhar mais realista e social que a época impunha.
Para o 20º número de Teen Titans foi preparada uma história cujo título - Titans Fit the Battle of Jericho (Titãs na Batalha de Jericó) - foi inspirado em Joshua Fit the Battle of Jericho, uma canção gospel muito apreciada pela comunidade afro-americana. Nela, a Turma Titã (com Ricardito a ocupar a vaga de Aqualad) iria para um gueto situado numa grande cidade americana, onde seria confrontada com a revolta violenta dos adolescentes negros contra o racismo estrutural dos EUA. Os heróis receberiam então a inesperada ajuda de um misterioso aventureiro mascarado chamado Jericó, que os ajudaria a apaziguar os ânimos. A grande surpresa estaria reservada para o final: a revelação de que Jericó era ele próprio um adolescente negro - circunstância que faria dele o primeiro  super-herói afro-americano do Universo DC.
Embora aprovada sem ressalvas por Giordano e integralmente desenhada por Nick Cardy, a trama foi vetada por Carmine Infantino. O editor-chefe da DC receava uma possível repercussão negativa no Sul dos EUA e também lhe desagradava o teor excessivamente político da história - saída da pena de um tal de Marv Wolfman.
Chamado a redesenhar a história em tempo recorde, Neal Adams transformou, a contragosto, Jericó num jovem caucasiano e a revolta no gueto numa invasão extradimensional. Tudo isto enquanto metade do país chorava ainda a morte de Martin Luther King e a luta dos negros pelos direitos civis estava ao rubro. 

Página não publicada de Titãs na Batalha de Jericó,
onde Jericó se revela um jovem afro-americano.

Independentemente da polémica, Titans Fit the Battle of Jericho sinalizou um momento de profundas e irreversíveis mudanças na Turma Titã. Mudanças essas que, entre outras coisas, envolveram a admissão de novos membros (Rapina e Columba) e a abertura de uma filial californiana (Titãs do Oeste).
A década de 70 trouxe a Idade de Bronze e com ela uma audiência mais madura que passou a exigir histórias menos inconsequentes. Por conta do novo perfil dos leitores, o entusiasmo em relação aos heróis adolescentes começou a arrefecer. O primeiro sinal desse arrefecimento foi quando Denny O'Neil e Neal Adams reaproximaram Batman das suas origens sombrias e solipsistas, deixando pouco espaço para Robin nas histórias do Cavaleiro das Trevas. O mesmo aconteceria, nos anos imediatos, a Kid Flash, Aqualad e Ricardito, cada vez menos presentes na vida dos seus mentores. Em contraciclo, a Moça-Maravilha ia ganhando maior destaque na revista da irmã, culminando com a sua participação na série televisiva da Princesa Amazona com Lynda Carter.
Apesar de, oficialmente, a Turma Titã se manter unida, o seu vigor juvenil revelou-se insuficiente para suster a própria revista. Com um percurso editorial errático, bordejado por suspensões e relançamentos, Teen Titans acabaria por ser definitivamente cancelada em 1978. À medida que o brilho colorido dos néones da adolescência ia perdendo intensidade, os heróis, agora praticamente jovens adultos, descartaram gradualmente o conceito a que tinham dado corpo. 


O número final de Teen Titans anunciava
 a nunca revelada origem do grupo.

Adivinhava-se o fim de uma era. Afinal de contas, nem o Menino-Prodígio nem a Moça-Maravilha eram já crianças. Era, pois, natural que, tal como na vida real, deixassem para trás os dilemas e desvarios pubescentes, seguindo para a próxima etapa do seu desenvolvimento pessoal. Num contexto em que eram cada vez mais os heróis soturnos, amargurados e maduros os verdadeiros ídolos da juventude, aos eternos sidekicks restava continuar a crescer nas sombras dos seus celebérrimos mentores.
Tudo indicava, portanto, que a Turma Titã viraria uma nota de rodapé no cânone da DC e que os seus integrantes se veriam relegados à condição de coadjuvantes bissextos nas histórias de terceiros. Contudo, para surpresa geral, a notícia da morte dos sidekicks foi manifestamente exagerada.

Idade Maior

À entrada da década de 80, a preferência dos leitores de super-heróis, sempre oscilante entre as duas maiores editoras a operar nesse mercado, parecia afastar-se da DC. Mesmo que Super-Homem e Batman continuassem a ser líderes de vendas - mais pela força do mito que encarnavam do que pela qualidade intrínseca das histórias que protagonizavam - as restantes produções da DC estavam longe da irreverência, sofisticação e sintonia com o público que era então apanágio da sua principal concorrente.
Após uma longa temporada ao serviço da Marvel, Marv Wolfman, agora um escritor com tarimba, retornou à Editora das Lendas e, perante a crise instalada, propôs o lançamento de uma nova série da Turma Titã. A maior parte dos seus colegas torceu o nariz à ideia, mas Len Wein - recém-promovido a editor - resolveu arriscar.
Na altura uma estrela em ascensão na indústria dos quadradinhos, George Pérez aceitou participar no projeto, à guisa de favor pessoal a Wolfman. Fê-lo, todavia, no pressuposto de que ilustrar as histórias da Turma Titã seria apenas uma curta etapa que o levaria ao Olimpo da DC: a Liga da Justiça.
Numa espécie de jogo de espelhos geracional, os Novos Titãs incluíam membros da equipa original, o benjamim da Patrulha do Destino e criações de Wolfman e Pérez. Aos fundadores Robin, Kid Flash e Moça-Maravilha juntou-se um trio de figuras novas, com personalidades diferenciadas e contrastantes: o angustiado Cyborg, cujo corpo mutilado foi substituído por componentes cibernéticos; a extrovertida Estelar, uma princesa alienígena com um passado de escravidão e intriga familiar; e a misteriosa Ravena, empata e filha de um demónio extradimensional. O inusitado elenco ficou completo com o divertido Mutano (anteriormente conhecido como Rapaz-Fera), um adolescente esverdeado capaz de transformar-se em qualquer animal.

Os Novos Titãs de Wolfman e Pérez fizeram a síntese entre o passado e a modernidade.

Os Novos Titãs foram apresentados aos leitores americanos em DC Comics Presents #26, de outubro de 1980, e imediatamente ficou claro que a equipa não era constituída por adolescentes desorientados, mas sim jovens adultos que formavam uma família disfuncional unida por fortes laços de amizade. 
O que aconteceu em seguida dificilmente poderia ter sido previsto, pois, numa curiosa inversão dos eventos da mitologia grega, estes titãs de tinta destronaram os olímpios da Liga da Justiça nas vendas e na aclamação da crítica.
Com dinamismo para dar e vender, os Novos Titãs trouxeram um zéfiro de positividade ao Universo DC. As suas histórias tinham a capacidade rara de casar de forma harmoniosa o lado da aventura épica cheia de peripécias com a vertente de novela pontuada por personagens cheias de alegrias e dramas, discussões e empatias, sucessos e tragédias. Tudo amplificado pelo soberbo traço de Pérez, que, assim como Wolfman, se afeiçoara genuinamente às personagens. Esse avultado investimento emocional da dupla criativa dos Novos Titãs foi, de resto, um dos ingredientes da fórmula de sucesso.
Ao tornarem-se coeditores de The New Teen Titans, Wolfman e Pérez, dois dos maiores dínamos criativos da Arte Sequencial, conquistaram ampla liberdade para contarem a história intemporal de um grupo de jovens com nobreza acima da idade, que lutavam para afirmarem as suas próprias individualidades. E ninguém o fez com mais afinco do que Dick Grayson. Ainda que Robin continuasse a ser um excelente líder para os Novos Titãs, não conseguia enxaguar o lastro de, por tanto tempo, ter sido o pajem do Cavaleiro das Trevas. Mas isso estava prestes a mudar.
Entre a rica galeria de coadjuvantes dos Novos Titãs pontificava aquele que viria a ser um dos vilões mais carismáticos e versáteis de todo o Universo DC: o Exterminador (Deathstroke, The Terminator). 
Slade Wilson, o implacável mercenário zarolho, foi pedra basilar do enredo mais controverso de toda a série. Em The Judas Contract (O Contrato de Judas), os Novos Titãs dão as boas vindas a Terra, uma jovem com poderes elementais e personalidade volátil. 
Ao longo de mais de um ano, primeiro em pano de fundo e depois à boca de cena, Dana Markov vai-se revelando uma espia plantada na equipa, com a missão de descobrir os pontos fracos de cada um dos seus elementos. Ainda por cima, aquela adolescente franzina de apenas 16 anos, que até fuma e bebe, é também sexualmente ativa e amante do Exterminador. Como se tudo isso não fosse suficientemente impactante, foi também nessa saga que Dick Grayson deixou finalmente de ser o Menino-Prodígio passando a responder por Asa Noturna. Uma expressão de individualidade e empoderamento que mereceu o aplauso da generalidade dos leitores e que deixou claro que nada voltaria a ser como antes.

Como Robin ou Asa Noturna, Dick Grayson foi sempre o líder natural dos Titãs.

Tudo isto serviu para fazer de New Teen Titans um best-seller, gerando-se uma atmosfera de expectativa quase telenovelesca antes do lançamento de cada novo número. A juventude dos protagonistas não impedia que os enredos abordassem temas adultos. Exemplo disso foi o arco narrativo que lidou com flagelo das drogas e que, de tão eficaz na mensagem que pretendia passar, teve seguimento num anúncio animado de prevenção da toxicodependência. Curiosidade: a história em causa foi patrocinada pela Keebler, uma marca de bolachas que estava associada à campanha de combate às drogas amadrinhada pela então Primeira-dama dos EUA Nancy Reagan.
Mesmo as histórias com matizes mais fantasiosas destacavam-se dentro de um género tão codificado como o dos super-heróis. Tão logo surgiram em The New Teen Titans, a C.O.L.M.E.I.A. e a Igreja do Sangue tornaram-se partes integrantes do folclore da DC. Ao mesmo tempo que lidavam com ameaças à escala planetária (e por vezes galáctica), os Novos Titãs exploravam a condição humana através, por exemplo, da relação conturbada entre Cyborg e o pai, ou da angústia da Moça-Maravilha por causa do seu obscuro passado.
Em questão de meses, os Novos Titãs cativaram os leitores e assumiram-se como força charneira de uma inesperada revolução que resgatou a DC do abismo da irrelevância. Wolfman e Pérez assinaram juntos as aventuras do grupo durante 5 anos e 50 números de The New Teen Titans, com o argumentista a permanecer no título (entretanto renomeado Tales of the Teen Titans) após a saída do artista. 

Em 1982, no auge da popularidade das duas equipas,
X-Men e Novos Titãs protagonizaram um dos mais
épicos crossovers Marvel/DC.

A partida de Pérez foi, aliás, um das causas para a "titãmania" perder gás no final dos anos 80, altura em que a chama criativa já diminuíra claramente de intensidade. Apesar de um último surto de popularidade no início do decénio seguinte, os Novos Titãs acabaram mesmo por sair de cena. 
Até que, em 2003, Geoff Johns decidiu juntar Superboy e os novos Robin (Tim Drake), Kid Flash (Bart Allen) e Moça-Maravilha (Cassandra Sandsmark) aos agora veteranos Estelar, Cyborg, Ravena e Mutano. Numa quase poética inversão de papéis, os velhos Novos Titãs viram-se no papel de mentores de uma nova geração de campeões do Bem, à semelhança do que os primeiros Robin, Kid Flash e Moça-Maravilha com eles haviam feito.
A grande proeza dos Novos Titãs do século XXI foi devolver o grupo aos tops de vendas pela primeira vez em mais de uma década. Os louros têm, no entanto, de ser divididos com Teen Titans, a série animada de grande sucesso que foi para o ar nesse período.
Mas nem tudo foram rosas. Em 2011, o reboot dos Novos 52 acabou com o profundo sentido de legado do Universo DC, truncando eventos e apagando a história das personagens. Os mais afetados por esse fluxo caótico foram justamente os Novos Titãs. 
Na nova continuidade, a formação atual do grupo não foi precedida por nenhuma outra. Significando isto, na prática, que nem a Turma Titã nem os Novos Titãs alguma vez existiram.  Quando, por fim, se cansou de navegar a polémica, a DC aproveitou o reboot Renascimento para restaurar parte do cânone dos Novos Titãs. Sem contudo desfazer outros movimentos questionáveis como a inclusão de Cyborg na Liga da Justiça.
Independentemente das trapalhadas recentes e do enorme sucesso que os Novos Titãs alcançaram nos idos de 80, estes jovens heróis terão sempre um importante papel a desempenhar. Mais que não seja, satisfazendo as fantasias vicárias dos fãs, por incorporarem o truísmo de que o novo acaba sempre por substituir o velho. Num meio cíclico como o dos comics, isso levá-los-á inevitavelmente a serem os agentes da mudança que sacodem o marasmo e renovam o statu quo. Provando, dessa forma, que, quando a execução é competente, até os conceitos menos promissores podem funcionar às mil maravilhas.
 
Os Titãs do terceiro milénio não são despidos de passado,
 mas têm os olhos postos no futuro.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre Estelar, Nick Cardy e Marv Wolfman disponíveis para leitura complementar.  


























25 junho 2024

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A MORTE DE JEAN DEWOLFF»

  Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha lança-se à caça do assassino de uma velha amiga. Um fanático de moralidade distorcida anda à solta nas ruas e promete continuar a lavar os pecados da sociedade com o sangue dos inocentes. Cederá o herói à tentação de fazer justiça pelas próprias mãos, perante mais esta tragédia pessoal?

Título original: The Death of Jean DeWolff
Editora: Marvel Comics
País: Estados Unidos da América
Data de lançamento: Outubro de 1985
Títulos abrangidos: Peter Parker, The Spectacular Spider-Man #107-110
Autores: Peter David (trama), Rich Buckler (ilustrações) e Josef Rubinstein (arte-final)
Protagonistas: Homem-Aranha, Demolidor e Devorador de Pecados
Cenários: Nova Iorque 
Edições em português: A primeira versão traduzida deste arco de histórias foi publicada, entre setembro e outubro de 1990, no tradicional formatinho da Abril brasileira. O primeiro capítulo da saga foi apresentado em Homem-Aranha nº87, sendo os restantes incluídos no número seguinte. Desde 2013, a Panini e a Salvat têm-se alternado no lançamento de encadernados, o mais recente dos quais data de 2021. 

Inédita em Portugal, a saga já foi várias vezes
republicada no Brasil.
Em 2017, a Salvat incluiu-a na sua
Coleção Definitiva do Homem-Aranha. 

Lei da bala 

A violência urbana sempre foi - e continua a ser - um dos maiores flagelos sociais nos EUA. Num país com mais armas do que habitantes, impera muitas vezes a lei da bala. As falhas da Justiça, que devia ser para todos, geram revolta e frustração. Sentimentos que demasiados cidadãos extravasam premindo o gatilho.
No início dos anos 80, o fenómeno adquiriu contornos epidémicos nas ruas das principais cidades americanas. Em Nova Iorque, onde as relações interpessoais sempre se caracterizaram pela agressividade, registou-se nesse período um aumento exponencial da taxa de homicídios. Para piorar o quadro, os crimes eram cometidos quer por indivíduos socialmente excluídos quer por cidadãos comuns sem motivo aparente para chegarem a vias de facto.
Um episódio, em particular, obteve grande ressonância mediática e chocou a opinião pública a nível nacional. Num daqueles acasos com hora marcada, a 22 de dezembro de 1984, Bernhard Goetz alvejou quatro jovens que o importunavam durante uma viagem noturna de metro. Prontamente apelidado de Vigilante do Metro pelos tabloides, Goetz alegou legítima defesa. Argumento insuficiente para prevenir a tempestade racial desencadeada pela cor da pele dos intervenientes: Goetz era branco, as suas vítimas negras.
Entre os milhões de nova-iorquinos que seguiam apaixonadamente o caso estava Peter David. À época assistente de vendas da Marvel após uma malsucedida carreira jornalística, David era um aspirante a escritor à espera de uma oportunidade para mostrar o seu valor.

Racismo ou legítima defesa?
Bernhard Goetz continua a dividir opiniões.

Por aqueles dias, o Homem-Aranha era o maior trunfo da Casa das Ideias, que o presenteou com quatro títulos mensais: Marvel Team-Up, Amazing Spider-Man, Web of Spider-Man e Peter Parker, The Spectacular Spider-Man. Este último, em circulação desde 1976, apresentava habitualmente histórias em que o herói aracnídeo, sozinho ou emparelhado com vigilantes urbanos como Manto e Adaga, combatia o tráfico de drogas ou punha fim a guerras de gangues. Nova Iorque era a meca do crime e os escribas da série, com Al Milgrom à cabeça, retratavam-na sem filtros.
Apesar das boas vendas de Peter Parker, The Spectacular Spider-Man, Jim Oswley, o novo editor do Cabeça de Teia, desejava refrescar o título com histórias mais adultas e temas mais complexos. Para levar a cabo essa pequena revolução, Oswley substituiu o veterano Al Milgrom pelo inexperiente Peter David. Sem floreados, Oswley informou David da sua intenção de matar uma personagem importante: ninguém menos do que a capitã Jean DeWolff.

Peter David, na altura com 29 anos, foi uma aposta pessoal
do novo editor do Homem-Aranha.

Criada, em 1976, por Bill Mantlo e Sal Buscema, Jean DeWolff era uma das coadjuvantes mais antigas das histórias do Escalador de Paredes. Os seus subordinados tinham aprendido a respeitá-la, os leitores a apreciar o seu guarda-roupa antiquado. À parte ser mulher, DeWolff incorporava praticamente todos os estereótipos dos detetives dos filmes e séries policiais daquela época: era dura e ranzinza, mas tremendamente competente. Era, também, uma preciosa aliada do Homem-Aranha, se bem que, com o tempo, a relação deles evoluiria para uma franca amizade. Como reagiria, portanto, o herói ao assassinato de alguém tão próximo?


Corajosa e determinada, a capitã DeWolff
cultivou uma relação especial com o Homem-Aranha.

Face às muitas perdas pessoais que enfrentou no decurso dos anos, o Homem-Aranha subordinou sempre as suas ações à sua consciência heroica. Nem a efusão de sangue de alguns dos seus entes queridos o levou a aplicar a Lei de Talião. Nesse espírito, a ideia consistia em apresentá-lo a um vilão cujos crimes, de tão hediondos, testassem os limites de Peter Parker.
Ao Devorador de Pecados (Sin-Eater) serviu de modelo uma personagem homónima de The Incredible Journey of Doctor Meg Laurel (1979), um dos filmes preferidos de Peter David. Em certas regiões do Reino Unido, mormente na Escócia e no País de Gales, sempre que alguém morre, os seus entes queridos depositam alimentos sobre o caixão do defunto. De acordo com esta tradição pagã de origem difusa, o ritual serve para absorver espiritualmente os pecados terrenos. Geralmente um mendigo, cabe depois ao Devorador de Pecados comer as oferendas que simbolizam as transgressões cometidas em vida pelo morto. Foi nessa sinistra figura do folclore anglo-saxónico que Peter David se inspirou para criar o carrasco de Jean DeWolff. 

Por terem absorvido tantos pecados alheios, acreditava-se que 
os Devoradores de Pecados nunca entrariam no Céu. Eram a pior 
espécie de párias sociais, mas úteis à comunidade.

Aquando do seu lançamento, no outono de 1985, A Morte de Jean DeWolff foi considerada, sob vários aspetos, inovadora. Desde logo por ter quebrado a tradição de conceder à personagem martirizada uma morte honrosa, idealmente no clímax de uma batalha ou enquanto salvava outrem. Jean DeWolff, ao invés, é morta durante o sono, logo a abrir a história. Em vez de um supervilão, o seu assassino é tão-somente um psicopata armado com uma espingarda e um código moral distorcido. Acrescendo, ainda, uma peculiaridade estilística: os créditos da história surgem apenas no final de cada um dos quatro capítulos que a compõem.
Ser ainda hoje considerada uma história incontornável na mitologia do Homem-Aranha não é o único mérito de A Morte de Jean DeWolff. A obra garantiu também assento ao seu autor entre a elite plumitiva dos comics americanos.

Quem nunca pecou...

Ao entregar à Polícia o trio de meliantes que haviam agredido Ernie Popchik, um dos residentes no lar de idosos gerido pela Tia May, o Homem-Aranha é informado do assassínio da capitã Jean DeWolff. A notícia da morte da sua velha amiga e aliada deixa o herói sem chão.
Em conversa com Stan Carter, o detetive encarregue da investigação do caso, o Homem-Aranha fica a par de mais pormenores: DeWolff foi baleada à queima-roupa enquanto dormia e o seu distintivo está desaparecido.

Jean DeWolff foi a primeira vítima do Devorador de Pecados.

No dia seguinte, Matt Murdock, nomeado advogado oficioso, consegue que os agressores de Popchik sejam libertados sem fiança. À saída da sala de audiências, é confrontado por um indignado Peter Parker. Mais tarde nesse mesmo dia, Matt confidencia ao juiz Horace Rosenthal o seu crescente desconforto em assumir a defesa pro bono de indivíduos de moralidade questionável.
Ainda no gabinete do juiz, o radar de Matt deteta a presença de um intruso na sala adjacente. Antes que Matt possa alertar o seu interlocutor, um encapuzado irrompe no gabinete e abre fogo sobre ambos. Graças aos seus reflexos sobre-humanos, Matt consegue esquivar-se das balas, mas o juiz tem menos sorte.
Atraído pelos disparos, o Homem-Aranha acorre ao local, sendo prontamente recebido com uma saraivada de chumbo. Para surpresa do Escalador de Paredes, o mascarado não só resiste aos seus golpes como revida com inesperada pujança.
No exterior do tribunal, alguns transeuntes são feridos pelas balas perdidas. Tirando partido do pânico instalado, o mascarado desenvencilha-se do Homem-Aranha e põe-se em fuga. O herói ainda tenta travá-lo com a sua teia, mas constata que os lançadores foram danificados durante a escaramuça. Capta, no entanto, um vislumbre do distintivo policial que adorna o cinto do mascarado - e reconhece-o como tendo pertencido a Jean DeWolff.

O Devorador de Pecados revela-se um osso duro de roer.

Com o consentimento do detetive Carter, o Homem-Aranha revista o apartamento da capitã DeWolff. Não encontra, porém, quaisquer pistas que o ajudem a perceber o móbil do crime. Apenas fotos e recortes de jornais onde ele aparece. O eco solitário do amor impossível que DeWolff trazia aninhado na alma. Essa descoberta deixa o herói ainda mais consternado.
Em novo encontro com o Homem-Aranha, Stan Carter informa-o que o assassino da capitã DeWolff e do juiz Rosenthal se autodenomina Devorador de Pecados. O detetive explica-lhe o folclore associado ao nome e revela ainda o próprio passado como agente da SHIELD.
Durante o funeral do juiz Rosenthal, Matt Murdock deteta o batimento cardíaco do Devorador de Pecados. É, no entanto, incapaz de identificá-lo no mar de gente que assiste à cerimónia.
Nessa mesma noite, o Devorador de Pecados volta a atacar. Executa a sangue-frio o sacerdote que conduzira as exéquias do juiz Rosenthal. Em consequência de mais essa morte, é montado um circo mediático, aproveitado pelo reverendo Jackson Tulliver para vitimizar a comunidade afroamericana.
Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha e o Demolidor vasculham o submundo nova-iorquino em busca de informações sobre o paradeiro e identidade do Devorador de Pecados. A cada beco sem saída, sentem que perseguem um fantasma.
Dias depois, o Devorador de Pecados invade a redação do Daily Bugle e, tomando Marla como refém, exige falar com J. Jonah Jameson. Enquanto Joe Robertson se faz passar por Jameson, Peter Parker atinge o mascarado na cabeça com o rolo de uma máquina de escrever, deitando-o por terra.
Ao recuperar os sentidos, o Devorador de Pecados, entretanto desmascarado, apresenta-se como Emil Gregg. Ele não tem, contudo, a mais vaga lembrança de ter perpetrado os homicídios que lhe são imputados. Recorda-se apenas das vozes a ordenarem que os cometesse.
A confissão de Gregg é também testemunhada pelo Demolidor, que não reconhece, porém, o seu batimento cardíaco. Convicto de que estão em presença de um impostor, o Diabo da Guarda convida o Homem-Aranha a acompanhá-lo numa busca ao apartamento do suspeito. Durante a breve conversa entre ambos, o Demolidor reconhece o batimento cardíaco de Peter Parker.

O falso Devorador de Pecados confessa 
os crimes que não cometeu.

Enquanto o Homem-Aranha revista o apartamento de Gregg, o Demolidor repara que a fechadura da porta do apartamento contíguo foi estroncada. Ao investigar, o Homem Sem Medo tropeça numa pequena pilha de correspondência por abrir. Toda ela destinada a Stan Carter. Os heróis encontram também um gravador de voz onde Carter registava as suas atividades como Devorador de Pecados - era essa a origem das vozes que atormentavam Gregg.
Deduzindo que Carter usara Gregg como distração para cumprir o seu verdadeiro objetivo, o Homem-Aranha liga para o Daily Bugle e obtém o número de telefone de J.J. Jameson. A chamada é atendida pela sua secretária pessoal, Betty Brant, mas antes que o herói consiga avisá-la, ouve-se um disparo em fundo e a linha fica muda.
Convencido que Betty estaria morta, o Homem-Aranha atravessa a cidade até ao domicílio de Jameson. Para seu alívio, a jovem estão viva e ilesa. Isso é no entanto insuficiente para conter a vaga de fúria incandescente que cresce dentro do herói.
Para horror de Betty, o Homem-Aranha continua a espancar o Devorador de Pecados, mesmo depois de ele ter ficado inconsciente. Só muito a custo o Demolidor, entretanto chegado ao local, consegue impedir que o seu aliado faça justiça pelas próprias mãos.

O Demolidor sente na pele a fúria do Homem-Aranha,
depois de o ter impedido de vingar a morte da amiga.

Stan Carter é preso e a notícia de que o Devorador de Pecados era um polícia corre como pólvora, incendiado os ânimos. É nesse clima de alta tensão, com uma onda de revolta a encapelar-se no horizonte urbano, que Ernie Popchik dispara contra um grupo de rufias que o assediava numa carruagem de metro. Em seguida, o idoso entrega-se às autoridades.
Nesse emmeio, a Polícia é notificada pela SHIELD que Carter fora submetido a tratamentos com uma droga experimental. A substância capacitou-o com força e resistência sobre-humanas, mas teve a esquizofrenia como efeito colateral.
Quando o plano secreto para transferir o Devorador de Pecados para a Ilha Riker é denunciado pela imprensa, uma turba ululante concentra-se diante da esquadra onde Carter se encontra sob custódia. Para impedir o linchamento, o Demolidor interpõe-se entre a multidão e o edifício, mas é rapidamente sobrepujado.
Num telhado próximo, o Homem-Aranha assiste, impávido, àquela erupção de violência. Mas o grito desesperado do Demolidor impele-o a agir no último instante.
Com Stan Carter a caminho da prisão, o Demolidor revela a sua verdadeira identidade ao Homem-Aranha e oferece-se para defender Ernie Popchik. Apesar das suas visões opostas da justiça, os dois heróis sabem que estarão sempre do mesmo lado da barricada na guerra contra o crime.
  
Apontamentos

*Apesar das muitas pistas a apontarem nesse sentido, nenhum leitor, a julgar pelas cartas recebidas na redação da Marvel, conseguiu deduzir que Stan Carter era o Devorador de Pecados. Peter David atribui esta falta de perspicácia ao facto de, após décadas de associação a Stan Lee, o nome Stan soar amistoso aos fãs;
*O uniforme negro usado pelo Homem-Aranha era um modelo de tecido normal ofertado pela Gata Negra. Peter descartara o traje original depois de ter descoberto que ele era, na verdade, um simbionte alienígena que procurava unir-se de forma permanente ao seu hospedeiro;
*Jean DeWolff admirava profundamente o seu padrasto e foi por causa dele que, para desgosto da mãe, ingressou na Polícia. Carl Weatherby acreditava que Jean poderia ser, um dia, a primeira comissária a chefiar o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Na vida real, isso só aconteceria em 2022, quando Keechant Sewell se tornou a primeira mulher (e a terceira afrodescendente) a assumir o cargo;
*Numa vinheta de Peter Parker, the Spectacular Spider-Man #108, o ator Charles Bronson surge entre a multidão que caminha pelas ruas de Nova Iorque. Trata-se de uma homenagem ao seu papel de Paul Kersey na franquia cinematográfica Death Wish, sobre um ex-tenente da Polícia de Los Angeles que, inconformado com as falhas do sistema legal, passa a atuar como um implacável vigilante;

O cameo de Charles Bronson coincidiu com o lançamento de Death Wish III. 
O filme foi produzido pela Cannon que, pouco tempo antes, adquirira os direitos
cinematográficos do Escalador de Paredes.

*Em resposta à candidatura apresentada por uma potencial assassina a soldo, o Rei do Crime dita uma carta dirigida a C.B. Kalish. Carol Kalish, ao tempo gerente de vendas diretas da Marvel e vice-presidente do departamento de desenvolvimento de novos produtos, era chefe e amiga de Peter David. Foi pela mão dela que David deu os primeiros passos na indústria dos comics. Kalish faleceria cinco anos mais tarde, de doença prolongada. Tinha apenas 36 anos;
*Apesar de ser um novato na altura e de A Morte de Jean DeWolff ter sido apenas o seu segundo trabalho profissional como argumentista da Marvel, Peter David é hoje um autor prolífico e premiado, com mais de meia centena de romances publicados. Entre os rios de prosa com que continua a irrigar a imaginação de milhões de leitores em todo o mundo, o maior destaque vai para as novelas de Star Trek, sendo mesmo considerado o melhor escritor da franquia. Na banda desenhada, deixou a sua impressão digital em títulos como Aquaman, Supergirl, X-Factor, Spider-Man 2099 e The Incredible Hulk. Neste último assinou uma das melhores fases de sempre do Gigante Verde, pela qual foi distinguindo, em 1993, com um Prémio Will Eisner. Com vasta experiência em cinema e televisão, David escreveu também vários episódios de Babylon 5 e enredos de filmes produzidos pela Full Moon Entertainment; 

Uma das muitas aventuras literárias de Star Trek 
saídas da pena de Peter David.

*Peter David trouxe de volta o Devorador de Pecados em Spectacular Spider-Man #134-136 (janeiro-março de 1988). Informalmente conhecida como o Retorno do Devorador de Pecados, a sequência, ambientada cerca de um ano após os eventos de A Morte de Jean DeWolff, explorava simultaneamente a origem do vilão e a sua fracassada tentativa de reabilitação. Mesmo depois de sair da prisão sem vestígios das drogas da SHIELD no seu organismo, Stan Carter continua a ser roído pelo remorso devido ao baralho de iniquidades perpetradas pelo seu alter ego. Sucumbindo por fim à loucura, Stan volta a vestir a fantasia de Devorador de Pecados e, armado com uma espingarda descarregada, incita a polícia a abrir fogo contra ele. Peter David considera que, apesar de violento, este foi um final misericordioso para o personagem;
*O Devorador de Pecados foi responsável indireto pelo surgimento de Venom. Em The Amazing Spider-Man #300 (maio de 1988), Eddie Brock, ex-repórter do Daily Globe, recorda como expôs publicamente Emil Gregg como sendo o Devorador de Pecados. Quando Stan Carter foi desmascarado pelo Homem-Aranha, Brock foi demitido e, preso numa espiral autodestrutiva, acabou abandonado pela esposa. Brock preferiu, ao invés, culpar o Escalador de Paredes pelo seu infortúnio e, em busca de vingança, aceitou ser o novo hospedeiro do simbionte alienígena.

Porque vale a pena ler?

Peter Parker bem podia ser a personificação da desdita. Nunca conheceu os pais, mortos quando ele ainda nem gatinhava. Na adolescência, perdeu o Tio Ben, o homem que o criara como filho. A este rosário de desgraças a idade adulta encarregou-se de acrescentar outra conta: a morte de Gwen Stacy, o primeiro grande amor de Peter.
Desde tenra idade que Peter sofre tragédias na periferia da vida. Perder entes queridos tem sido uma dolorosa rotina. Seria, portanto, de esperar que Peter já estivesse calejado, mas a morte de Jean DeWolff provou o contrário.
Por muito tempo, a capitã DeWolff foi a única aliada do Homem-Aranha no Departamento de Polícia de Nova Iorque que lhe era tradicionalmente hostil. Era também uma amiga que o ajudou em momentos difíceis. Cumplicidades antigas que fizeram do assassinato de DeWolff, não apenas um crime hediondo, mas um assunto pessoal para o Escalador de Paredes.

Tal como a inocência nas histórias de super-heróis,
Jean DeWolff foi marcada para morrer,

Com esta premissa, Peter David compôs uma trama tensa e envolvente, cujo suspense invoca os melhores contos policiais. Ao contrapor as personalidades de Matt Murdock e Peter Parker, David reacende, também, o velho debate entre justiça e vingança. Tantas vezes caricaturada como um espasmo de moralidade mesquinha, esta última é encarada pelo Homem-Aranha como a alternativa à impunidade proporcionada pelas falhas do sistema judicial. Aquele em que o Demolidor, mesmo operando na orla da Lei, deposita uma fé cega. Cabendo-lhe, por isso, ser a consciência moral de um Homem-Aranha tomado pelas emoções mais primárias.
A construção psicológica das personagens, incluindo do Devorador de Pecados, é minuciosa. Mesmo não sendo o mais carismático dos vilões, o seu apelo reside precisamente na sua simplicidade marcial. Se a motivação religiosa do Devorador de Pecados é um tanto unidimensional, essa falta de profundidade é compensada pela violência gráfica com que ele é representado. De uma crueldade (quase) sem precedentes nas histórias de super-heróis, o assassinato de Jean DeWolff faz revirar as entranhas do leitor. 
Apesar da grande quantidade de coadjuvantes, Peter David não abre mão do controlo narrativo, dando peso a cada morte retratada ao longo da trama. A arte de Rich Buckler, por sua vez, potencia a dramaticidade do enredo, fazendo uso de enquadramentos cuidadosamente escolhidos para manter a tensão e o sentimento de urgência.
Do mesmo modo que a verve de David expõe a alma de Peter Parker à contraluz, a narrativa visual de Buckler põe a nu as mazelas de uma Nova Iorque em ponto de ebulição. A violência quotidiana não ceifa apenas vidas, decapita também a esperança.
Não sendo necessariamente atemporal, A Morte de Jean DeWolff é, inquestionavelmente, uma das mais importantes histórias do Homem-Aranha. O conflito interno do herói, refletido pelo Demolidor, é o que  realmente a faz perdurar. 
Produzida numa das melhores décadas dos comics americanos, A Morte de Jean DeWolff quebrou alguns conceitos até então normativos. A sua crueza e complexidade traçou uma bissetriz nas histórias do Cabeça de Teia, desbravando caminho, nos anos imediatos, para outras fábulas sombrias como A Última Caçada de Kraven.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Resenha de A Última Caçada de Kraven disponível para leitura complementar.




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