25 junho 2024

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A MORTE DE JEAN DEWOLFF»

  Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha lança-se à caça do assassino de uma velha amiga. Um fanático de moralidade distorcida anda à solta nas ruas e promete continuar a lavar os pecados da sociedade com o sangue dos inocentes. Cederá o herói à tentação de fazer justiça pelas próprias mãos, perante mais esta tragédia pessoal?

Título original: The Death of Jean DeWolff
Editora: Marvel Comics
País: Estados Unidos da América
Data de lançamento: Outubro de 1985
Títulos abrangidos: Peter Parker, The Spectacular Spider-Man #107-110
Autores: Peter David (trama), Rich Buckler (ilustrações) e Josef Rubinstein (arte-final)
Protagonistas: Homem-Aranha, Demolidor e Devorador de Pecados
Cenários: Nova Iorque 
Edições em português: A primeira versão traduzida deste arco de histórias foi publicada, entre setembro e outubro de 1990, no tradicional formatinho da Abril brasileira. O primeiro capítulo da saga foi apresentado em Homem-Aranha nº87, sendo os restantes incluídos no número seguinte. Desde 2013, a Panini e a Salvat têm-se alternado no lançamento de encadernados, o mais recente dos quais data de 2021. 

Inédita em Portugal, a saga já foi várias vezes
republicada no Brasil.
Em 2017, a Salvat incluiu-a na sua
Coleção Definitiva do Homem-Aranha. 

Lei da bala 

A violência urbana sempre foi - e continua a ser - um dos maiores flagelos sociais nos EUA. Num país com mais armas do que habitantes, impera muitas vezes a lei da bala. As falhas da Justiça, que devia ser para todos, geram revolta e frustração. Sentimentos que demasiados cidadãos extravasam premindo o gatilho.
No início dos anos 80, o fenómeno adquiriu contornos epidémicos nas ruas das principais cidades americanas. Em Nova Iorque, onde as relações interpessoais sempre se caracterizaram pela agressividade, registou-se nesse período um aumento exponencial da taxa de homicídios. Para piorar o quadro, os crimes eram cometidos quer por indivíduos socialmente excluídos quer por cidadãos comuns sem motivo aparente para chegarem a vias de facto.
Um episódio, em particular, obteve grande ressonância mediática e chocou a opinião pública a nível nacional. Num daqueles acasos com hora marcada, a 22 de dezembro de 1984, Bernhard Goetz alvejou quatro jovens que o importunavam durante uma viagem noturna de metro. Prontamente apelidado de Vigilante do Metro pelos tabloides, Goetz alegou legítima defesa. Argumento insuficiente para prevenir a tempestade racial desencadeada pela cor da pele dos intervenientes: Goetz era branco, as suas vítimas negras.
Entre os milhões de nova-iorquinos que seguiam apaixonadamente o caso estava Peter David. À época assistente de vendas da Marvel após uma malsucedida carreira jornalística, David era um aspirante a escritor à espera de uma oportunidade para mostrar o seu valor.

Racismo ou legítima defesa?
Bernhard Goetz continua a dividir opiniões.

Por aqueles dias, o Homem-Aranha era o maior trunfo da Casa das Ideias, que o presenteou com quatro títulos mensais: Marvel Team-Up, Amazing Spider-Man, Web of Spider-Man e Peter Parker, The Spectacular Spider-Man. Este último, em circulação desde 1976, apresentava habitualmente histórias em que o herói aracnídeo, sozinho ou emparelhado com vigilantes urbanos como Manto e Adaga, combatia o tráfico de drogas ou punha fim a guerras de gangues. Nova Iorque era a meca do crime e os escribas da série, com Al Milgrom à cabeça, retratavam-na sem filtros.
Apesar das boas vendas de Peter Parker, The Spectacular Spider-Man, Jim Oswley, o novo editor do Cabeça de Teia, desejava refrescar o título com histórias mais adultas e temas mais complexos. Para levar a cabo essa pequena revolução, Oswley substituiu o veterano Al Milgrom pelo inexperiente Peter David. Sem floreados, Oswley informou David da sua intenção de matar uma personagem importante: ninguém menos do que a capitã Jean DeWolff.

Peter David, na altura com 29 anos, foi uma aposta pessoal
do novo editor do Homem-Aranha.

Criada, em 1976, por Bill Mantlo e Sal Buscema, Jean DeWolff era uma das coadjuvantes mais antigas das histórias do Escalador de Paredes. Os seus subordinados tinham aprendido a respeitá-la, os leitores a apreciar o seu guarda-roupa antiquado. À parte ser mulher, DeWolff incorporava praticamente todos os estereótipos dos detetives dos filmes e séries policiais daquela época: era dura e ranzinza, mas tremendamente competente. Era, também, uma preciosa aliada do Homem-Aranha, se bem que, com o tempo, a relação deles evoluiria para uma franca amizade. Como reagiria, portanto, o herói ao assassinato de alguém tão próximo?


Corajosa e determinada, a capitã DeWolff
cultivou uma relação especial com o Homem-Aranha.

Face às muitas perdas pessoais que enfrentou no decurso dos anos, o Homem-Aranha subordinou sempre as suas ações à sua consciência heroica. Nem a efusão de sangue de alguns dos seus entes queridos o levou a aplicar a Lei de Talião. Nesse espírito, a ideia consistia em apresentá-lo a um vilão cujos crimes, de tão hediondos, testassem os limites de Peter Parker.
Ao Devorador de Pecados (Sin-Eater) serviu de modelo uma personagem homónima de The Incredible Journey of Doctor Meg Laurel (1979), um dos filmes preferidos de Peter David. Em certas regiões do Reino Unido, mormente na Escócia e no País de Gales, sempre que alguém morre, os seus entes queridos depositam alimentos sobre o caixão do defunto. De acordo com esta tradição pagã de origem difusa, o ritual serve para absorver espiritualmente os pecados terrenos. Geralmente um mendigo, cabe depois ao Devorador de Pecados comer as oferendas que simbolizam as transgressões cometidas em vida pelo morto. Foi nessa sinistra figura do folclore anglo-saxónico que Peter David se inspirou para criar o carrasco de Jean DeWolff. 

Por terem absorvido tantos pecados alheios, acreditava-se que 
os Devoradores de Pecados nunca entrariam no Céu. Eram a pior 
espécie de párias sociais, mas úteis à comunidade.

Aquando do seu lançamento, no outono de 1985, A Morte de Jean DeWolff foi considerada, sob vários aspetos, inovadora. Desde logo por ter quebrado a tradição de conceder à personagem martirizada uma morte honrosa, idealmente no clímax de uma batalha ou enquanto salvava outrem. Jean DeWolff, ao invés, é morta durante o sono, logo a abrir a história. Em vez de um supervilão, o seu assassino é tão-somente um psicopata armado com uma espingarda e um código moral distorcido. Acrescendo, ainda, uma peculiaridade estilística: os créditos da história surgem apenas no final de cada um dos quatro capítulos que a compõem.
Ser ainda hoje considerada uma história incontornável na mitologia do Homem-Aranha não é o único mérito de A Morte de Jean DeWolff. A obra garantiu também assento ao seu autor entre a elite plumitiva dos comics americanos.

Quem nunca pecou...

Ao entregar à Polícia o trio de meliantes que haviam agredido Ernie Popchik, um dos residentes no lar de idosos gerido pela Tia May, o Homem-Aranha é informado do assassínio da capitã Jean DeWolff. A notícia da morte da sua velha amiga e aliada deixa o herói sem chão.
Em conversa com Stan Carter, o detetive encarregue da investigação do caso, o Homem-Aranha fica a par de mais pormenores: DeWolff foi baleada à queima-roupa enquanto dormia e o seu distintivo está desaparecido.

Jean DeWolff foi a primeira vítima do Devorador de Pecados.

No dia seguinte, Matt Murdock, nomeado advogado oficioso, consegue que os agressores de Popchik sejam libertados sem fiança. À saída da sala de audiências, é confrontado por um indignado Peter Parker. Mais tarde nesse mesmo dia, Matt confidencia ao juiz Horace Rosenthal o seu crescente desconforto em assumir a defesa pro bono de indivíduos de moralidade questionável.
Ainda no gabinete do juiz, o radar de Matt deteta a presença de um intruso na sala adjacente. Antes que Matt possa alertar o seu interlocutor, um encapuzado irrompe no gabinete e abre fogo sobre ambos. Graças aos seus reflexos sobre-humanos, Matt consegue esquivar-se das balas, mas o juiz tem menos sorte.
Atraído pelos disparos, o Homem-Aranha acorre ao local, sendo prontamente recebido com uma saraivada de chumbo. Para surpresa do Escalador de Paredes, o mascarado não só resiste aos seus golpes como revida com inesperada pujança.
No exterior do tribunal, alguns transeuntes são feridos pelas balas perdidas. Tirando partido do pânico instalado, o mascarado desenvencilha-se do Homem-Aranha e põe-se em fuga. O herói ainda tenta travá-lo com a sua teia, mas constata que os lançadores foram danificados durante a escaramuça. Capta, no entanto, um vislumbre do distintivo policial que adorna o cinto do mascarado - e reconhece-o como tendo pertencido a Jean DeWolff.

O Devorador de Pecados revela-se um osso duro de roer.

Com o consentimento do detetive Carter, o Homem-Aranha revista o apartamento da capitã DeWolff. Não encontra, porém, quaisquer pistas que o ajudem a perceber o móbil do crime. Apenas fotos e recortes de jornais onde ele aparece. O eco solitário do amor impossível que DeWolff trazia aninhado na alma. Essa descoberta deixa o herói ainda mais consternado.
Em novo encontro com o Homem-Aranha, Stan Carter informa-o que o assassino da capitã DeWolff e do juiz Rosenthal se autodenomina Devorador de Pecados. O detetive explica-lhe o folclore associado ao nome e revela ainda o próprio passado como agente da SHIELD.
Durante o funeral do juiz Rosenthal, Matt Murdock deteta o batimento cardíaco do Devorador de Pecados. É, no entanto, incapaz de identificá-lo no mar de gente que assiste à cerimónia.
Nessa mesma noite, o Devorador de Pecados volta a atacar. Executa a sangue-frio o sacerdote que conduzira as exéquias do juiz Rosenthal. Em consequência de mais essa morte, é montado um circo mediático, aproveitado pelo reverendo Jackson Tulliver para vitimizar a comunidade afroamericana.
Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha e o Demolidor vasculham o submundo nova-iorquino em busca de informações sobre o paradeiro e identidade do Devorador de Pecados. A cada beco sem saída, sentem que perseguem um fantasma.
Dias depois, o Devorador de Pecados invade a redação do Daily Bugle e, tomando Marla como refém, exige falar com J. Jonah Jameson. Enquanto Joe Robertson se faz passar por Jameson, Peter Parker atinge o mascarado na cabeça com o rolo de uma máquina de escrever, deitando-o por terra.
Ao recuperar os sentidos, o Devorador de Pecados, entretanto desmascarado, apresenta-se como Emil Gregg. Ele não tem, contudo, a mais vaga lembrança de ter perpetrado os homicídios que lhe são imputados. Recorda-se apenas das vozes a ordenarem que os cometesse.
A confissão de Gregg é também testemunhada pelo Demolidor, que não reconhece, porém, o seu batimento cardíaco. Convicto de que estão em presença de um impostor, o Diabo da Guarda convida o Homem-Aranha a acompanhá-lo numa busca ao apartamento do suspeito. Durante a breve conversa entre ambos, o Demolidor reconhece o batimento cardíaco de Peter Parker.

O falso Devorador de Pecados confessa 
os crimes que não cometeu.

Enquanto o Homem-Aranha revista o apartamento de Gregg, o Demolidor repara que a fechadura da porta do apartamento contíguo foi estroncada. Ao investigar, o Homem Sem Medo tropeça numa pequena pilha de correspondência por abrir. Toda ela destinada a Stan Carter. Os heróis encontram também um gravador de voz onde Carter registava as suas atividades como Devorador de Pecados - era essa a origem das vozes que atormentavam Gregg.
Deduzindo que Carter usara Gregg como distração para cumprir o seu verdadeiro objetivo, o Homem-Aranha liga para o Daily Bugle e obtém o número de telefone de J.J. Jameson. A chamada é atendida pela sua secretária pessoal, Betty Brant, mas antes que o herói consiga avisá-la, ouve-se um disparo em fundo e a linha fica muda.
Convencido que Betty estaria morta, o Homem-Aranha atravessa a cidade até ao domicílio de Jameson. Para seu alívio, a jovem estão viva e ilesa. Isso é no entanto insuficiente para conter a vaga de fúria incandescente que cresce dentro do herói.
Para horror de Betty, o Homem-Aranha continua a espancar o Devorador de Pecados, mesmo depois de ele ter ficado inconsciente. Só muito a custo o Demolidor, entretanto chegado ao local, consegue impedir que o seu aliado faça justiça pelas próprias mãos.

O Demolidor sente na pele a fúria do Homem-Aranha,
depois de o ter impedido de vingar a morte da amiga.

Stan Carter é preso e a notícia de que o Devorador de Pecados era um polícia corre como pólvora, incendiado os ânimos. É nesse clima de alta tensão, com uma onda de revolta a encapelar-se no horizonte urbano, que Ernie Popchik dispara contra um grupo de rufias que o assediava numa carruagem de metro. Em seguida, o idoso entrega-se às autoridades.
Nesse emmeio, a Polícia é notificada pela SHIELD que Carter fora submetido a tratamentos com uma droga experimental. A substância capacitou-o com força e resistência sobre-humanas, mas teve a esquizofrenia como efeito colateral.
Quando o plano secreto para transferir o Devorador de Pecados para a Ilha Riker é denunciado pela imprensa, uma turba ululante concentra-se diante da esquadra onde Carter se encontra sob custódia. Para impedir o linchamento, o Demolidor interpõe-se entre a multidão e o edifício, mas é rapidamente sobrepujado.
Num telhado próximo, o Homem-Aranha assiste, impávido, àquela erupção de violência. Mas o grito desesperado do Demolidor impele-o a agir no último instante.
Com Stan Carter a caminho da prisão, o Demolidor revela a sua verdadeira identidade ao Homem-Aranha e oferece-se para defender Ernie Popchik. Apesar das suas visões opostas da justiça, os dois heróis sabem que estarão sempre do mesmo lado da barricada na guerra contra o crime.
  
Apontamentos

*Apesar das muitas pistas a apontarem nesse sentido, nenhum leitor, a julgar pelas cartas recebidas na redação da Marvel, conseguiu deduzir que Stan Carter era o Devorador de Pecados. Peter David atribui esta falta de perspicácia ao facto de, após décadas de associação a Stan Lee, o nome Stan soar amistoso aos fãs;
*O uniforme negro usado pelo Homem-Aranha era um modelo de tecido normal ofertado pela Gata Negra. Peter descartara o traje original depois de ter descoberto que ele era, na verdade, um simbionte alienígena que procurava unir-se de forma permanente ao seu hospedeiro;
*Jean DeWolff admirava profundamente o seu padrasto e foi por causa dele que, para desgosto da mãe, ingressou na Polícia. Carl Weatherby acreditava que Jean poderia ser, um dia, a primeira comissária a chefiar o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Na vida real, isso só aconteceria em 2022, quando Keechant Sewell se tornou a primeira mulher (e a terceira afrodescendente) a assumir o cargo;
*Numa vinheta de Peter Parker, the Spectacular Spider-Man #108, o ator Charles Bronson surge entre a multidão que caminha pelas ruas de Nova Iorque. Trata-se de uma homenagem ao seu papel de Paul Kersey na franquia cinematográfica Death Wish, sobre um ex-tenente da Polícia de Los Angeles que, inconformado com as falhas do sistema legal, passa a atuar como um implacável vigilante;

O cameo de Charles Bronson coincidiu com o lançamento de Death Wish III. 
O filme foi produzido pela Cannon que, pouco tempo antes, adquirira os direitos
cinematográficos do Escalador de Paredes.

*Em resposta à candidatura apresentada por uma potencial assassina a soldo, o Rei do Crime dita uma carta dirigida a C.B. Kalish. Carol Kalish, ao tempo gerente de vendas diretas da Marvel e vice-presidente do departamento de desenvolvimento de novos produtos, era chefe e amiga de Peter David. Foi pela mão dela que David deu os primeiros passos na indústria dos comics. Kalish faleceria cinco anos mais tarde, de doença prolongada. Tinha apenas 36 anos;
*Apesar de ser um novato na altura e de A Morte de Jean DeWolff ter sido apenas o seu segundo trabalho profissional como argumentista da Marvel, Peter David é hoje um autor prolífico e premiado, com mais de meia centena de romances publicados. Entre os rios de prosa com que continua a irrigar a imaginação de milhões de leitores em todo o mundo, o maior destaque vai para as novelas de Star Trek, sendo mesmo considerado o melhor escritor da franquia. Na banda desenhada, deixou a sua impressão digital em títulos como Aquaman, Supergirl, X-Factor, Spider-Man 2099 e The Incredible Hulk. Neste último assinou uma das melhores fases de sempre do Gigante Verde, pela qual foi distinguindo, em 1993, com um Prémio Will Eisner. Com vasta experiência em cinema e televisão, David escreveu também vários episódios de Babylon 5 e enredos de filmes produzidos pela Full Moon Entertainment; 

Uma das muitas aventuras literárias de Star Trek 
saídas da pena de Peter David.

*Peter David trouxe de volta o Devorador de Pecados em Spectacular Spider-Man #134-136 (janeiro-março de 1988). Informalmente conhecida como o Retorno do Devorador de Pecados, a sequência, ambientada cerca de um ano após os eventos de A Morte de Jean DeWolff, explorava simultaneamente a origem do vilão e a sua fracassada tentativa de reabilitação. Mesmo depois de sair da prisão sem vestígios das drogas da SHIELD no seu organismo, Stan Carter continua a ser roído pelo remorso devido ao baralho de iniquidades perpetradas pelo seu alter ego. Sucumbindo por fim à loucura, Stan volta a vestir a fantasia de Devorador de Pecados e, armado com uma espingarda descarregada, incita a polícia a abrir fogo contra ele. Peter David considera que, apesar de violento, este foi um final misericordioso para o personagem;
*O Devorador de Pecados foi responsável indireto pelo surgimento de Venom. Em The Amazing Spider-Man #300 (maio de 1988), Eddie Brock, ex-repórter do Daily Globe, recorda como expôs publicamente Emil Gregg como sendo o Devorador de Pecados. Quando Stan Carter foi desmascarado pelo Homem-Aranha, Brock foi demitido e, preso numa espiral autodestrutiva, acabou abandonado pela esposa. Brock preferiu, ao invés, culpar o Escalador de Paredes pelo seu infortúnio e, em busca de vingança, aceitou ser o novo hospedeiro do simbionte alienígena.

Porque vale a pena ler?

Peter Parker bem podia ser a personificação da desdita. Nunca conheceu os pais, mortos quando ele ainda nem gatinhava. Na adolescência, perdeu o Tio Ben, o homem que o criara como filho. A este rosário de desgraças a idade adulta encarregou-se de acrescentar outra conta: a morte de Gwen Stacy, o primeiro grande amor de Peter.
Desde tenra idade que Peter sofre tragédias na periferia da vida. Perder entes queridos tem sido uma dolorosa rotina. Seria, portanto, de esperar que Peter já estivesse calejado, mas a morte de Jean DeWolff provou o contrário.
Por muito tempo, a capitã DeWolff foi a única aliada do Homem-Aranha no Departamento de Polícia de Nova Iorque que lhe era tradicionalmente hostil. Era também uma amiga que o ajudou em momentos difíceis. Cumplicidades antigas que fizeram do assassinato de DeWolff, não apenas um crime hediondo, mas um assunto pessoal para o Escalador de Paredes.

Tal como a inocência nas histórias de super-heróis,
Jean DeWolff foi marcada para morrer,

Com esta premissa, Peter David compôs uma trama tensa e envolvente, cujo suspense invoca os melhores contos policiais. Ao contrapor as personalidades de Matt Murdock e Peter Parker, David reacende, também, o velho debate entre justiça e vingança. Tantas vezes caricaturada como um espasmo de moralidade mesquinha, esta última é encarada pelo Homem-Aranha como a alternativa à impunidade proporcionada pelas falhas do sistema judicial. Aquele em que o Demolidor, mesmo operando na orla da Lei, deposita uma fé cega. Cabendo-lhe, por isso, ser a consciência moral de um Homem-Aranha tomado pelas emoções mais primárias.
A construção psicológica das personagens, incluindo do Devorador de Pecados, é minuciosa. Mesmo não sendo o mais carismático dos vilões, o seu apelo reside precisamente na sua simplicidade marcial. Se a motivação religiosa do Devorador de Pecados é um tanto unidimensional, essa falta de profundidade é compensada pela violência gráfica com que ele é representado. De uma crueldade (quase) sem precedentes nas histórias de super-heróis, o assassinato de Jean DeWolff faz revirar as entranhas do leitor. 
Apesar da grande quantidade de coadjuvantes, Peter David não abre mão do controlo narrativo, dando peso a cada morte retratada ao longo da trama. A arte de Rich Buckler, por sua vez, potencia a dramaticidade do enredo, fazendo uso de enquadramentos cuidadosamente escolhidos para manter a tensão e o sentimento de urgência.
Do mesmo modo que a verve de David expõe a alma de Peter Parker à contraluz, a narrativa visual de Buckler põe a nu as mazelas de uma Nova Iorque em ponto de ebulição. A violência quotidiana não ceifa apenas vidas, decapita também a esperança.
Não sendo necessariamente atemporal, A Morte de Jean DeWolff é, inquestionavelmente, uma das mais importantes histórias do Homem-Aranha. O conflito interno do herói, refletido pelo Demolidor, é o que  realmente a faz perdurar. 
Produzida numa das melhores décadas dos comics americanos, A Morte de Jean DeWolff quebrou alguns conceitos até então normativos. A sua crueza e complexidade traçou uma bissetriz nas histórias do Cabeça de Teia, desbravando caminho, nos anos imediatos, para outras fábulas sombrias como A Última Caçada de Kraven.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Resenha de A Última Caçada de Kraven disponível para leitura complementar.




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05 fevereiro 2024

RETROSPETIVA: «MULHER-MARAVILHA»



  Para acabar com a mãe de todas as guerras instigada por Ares, a princesa guerreira das Amazonas troca o seu paraíso secreto pelo caótico Mundo dos Homens. Ao mesmo tempo que ilumina corações e mentes com o esplendor da Verdade, Diana terá de dissipar as sombras que ocultam o seu destino.

Título original: Wonder Woman
Ano: 2017
País: Estados Unidos da América
Duração: 141 minutos
Género: Drama / Ação / Fantasia / Super-heróis
Produção: Warner Bros. Pictures, DC Films e Atlas Entertainment
Realização: Patty Jenkins
Argumento: Allan Heinberg, Jason Fuchs e Zack Snyder
Distribuição: Warner Bros. Pictures
Elenco: Gal Gadot (Diana Prince / Mulher-Maravilha); Chris Pine (Steve Trevor); Robin Wright (Antíope); Danny Huston (General Erich Ludendorff); David Thewlis ( Patrick Morgan / Ares); Connie Nielsen (Rainha Hipólita); Elena Anaya (Doutora Isabel Maru); Lucy Davis (Etta Candy);Ewen Bremner (Charlie); Eugene Brave Rock (Chefe); Saïd Taghmaoui (Sameer)
Orçamento: 149 milhões de dólares
Receitas globais: 824 milhões de dólares

Anatomia de um épico pós-feminista

Malgrado a sua magna importância na mitologia da DC, a Mulher-Maravilha foi a última integrante da Trindade a transitar para o celuloide. Enquanto Batman e Super-Homem acumulavam décadas de acertos e fracassos no segmento audiovisual, a Princesa Amazona só ganhou visibilidade em 1975, com a série televisiva estrelada pela ex-Miss América Lynda Carter.
Inúmeras tentativas frustradas de adaptar a Mulher-Maravilha ao cinema deixaram muitos fãs conformados com a ideia de que esse seria um daqueles filmes sempre prestes a ser feito, mas que nunca sairia da gaveta. Habituada a superar as mais duras provações na banda desenhada, Diana fez também o caminho das pedras para chegar ao grade ecrã.
Com muitos avanços e recuos à mistura, o desenvolvimento da primeira longa-metragem da Mulher-Maravilha demorou mais de uma década. Os primeiros planos nesse sentido remontam a 1996, quando Ivan Reitman - cineasta eslovaco celebrizado por Ghostbusters - foi contratado como produtor e possível realizador.
Deixado a aboborar durante meia dúzia de anos, em 2001 o projeto passou para as mãos do produtor Joel Silver. Na esperança de ter Sandra Bullock no papel principal, Silver incumbiu Todd Alcott de escrever o argumento. Lucy Lawless, a atriz neozelandesa que por aqueles dias emprestava o corpo a outra princesa guerreira (Xena), também foi considerada.

Sandra Bullock confirmou os contactos - e o interesse -
para dar vida à Mulher-Maravilha no cinema.

Já sem Reitman a bordo, em março de 2005 a Warner Bros. subiu ao leme determinada em levar o projeto a bom porto. Patty Jenkins, que, dois anos antes, conquistara o público e a crítica com Monster - a produção independente que valeu o Óscar a Charlize Theron - foi a realizadora escolhida. Uma inesperada gravidez impediu-a, porém, de abraçar esse novo desafio.
Joss Whedon, que acabara de dirigir o seu primeiro filme (Serenity), tornou-se o novo timoneiro de uma nau à deriva. O enredo proposto por Whedon incluía Steve Trevor como narrador e uma violenta escaramuça entre Diana e a Rainha Hipólita, motivada pela decisão da princesa de trocar Temiscira pelo Mundo dos Homens. Apesar de nenhuma atriz ter sido oficialmente escalada para o papel, Kate Beckinsale e Angelina Jolie encabeçavam a lista de favoritas do estúdio.
Nas vésperas de Whedon abandonar o projeto, na primavera de 2007, a Warner Bros. e a Silver Pictures compraram um argumento escrito a meias por Matthew Jennison e Brent Strickland. Ambientada na II Guerra Mundial, a trama impressionou os executivos da Silver, ainda que, na verdade, tudo não tenha passado de um expediente para conservar os direitos da Mulher-Maravilha.
Quase em simultâneo, a Warner Bros. deu luz verde ao desenvolvimento de uma película baseada na Liga da Justiça. Justice League Mortal seria dirigido por George Miller (Mad Max) e contaria com a participação da Mulher-Maravilha, interpretada pela modelo australiana Megan Gale. Atrasos na produção e preocupações orçamentais ditaram, todavia, o seu cancelamento.

Fotos promocionais de Megan Cale como Mulher-Maravilha em Justice League Mortal.

Novamente em ponto morto, o filme da Mulher-Maravilha teve, por fim, ordem para avançar em 2010. Em resposta ao sucesso da recente franquia cinemática da Marvel, a Warner Bros. anunciou que a Princesa Amazona era, em conjunto com Flash e Aquaman, uma das três personagens da DC sinalizadas como prioritárias para uma adaptação ao grande ecrã.
À procura de uma visão feminina para o projeto, a Warner sondou várias realizadoras, incidindo a escolha sobre ninguém menos do que Patty Jenkins - que assim se tornaria a primeira mulher a dirigir o filme de uma super-heroína. Funcionando como uma prequela da participação da Mulher-Maravilha em Batman versus Superman: Dawn of Justice (2016), o enredo teria a I Guerra Mundial como pano de fundo e referenciaria tanto as histórias clássicas da autoria de William Moulton Marston como a aclamada fase pós-Crise de George Pérez.
Gal Gadot, ex-Miss Israel cuja carreira na representação começara com Fast & Furious (2009), foi a escolha pessoal - e muito contestada - de Zack Snyder para Mulher-Maravilha. Desde que fora confirmada a participação de Diana em Batman versus Superman que muitos fãs sonhavam ver Alexandra Daddario como princesa das Amazonas. Ao recusar explicar o motivo da sua escolha, Snyder endossou teorias conspiratórias que atribuíram a escalação de Gadot à influência do poderoso lóbi judaico.

Gal Gadot, Miss Israel 2004, foi a eleita para interpretar a Princesa Amazona.

A fotografia principal do filme começou a 21 de novembro de 2015, com as filmagens realizadas em França, Itália e Inglaterra a ficarem concluídas em 9 de maio de 2016, data de nascimento de William Moulton Marston.
Wonder Woman fez a sua antestreia no Pantages Theatre de Los Angeles a 26 de maio de 2017, uma semana antes de chegar às salas de cinema de todo o mundo. Apesar do rotundo sucesso de bilheteira (encerrou o Top 10 das produções mais lucrativas daquele ano) e das loas da crítica (eleito o melhor filme de 2017 pelo American Film Institute), não escapou à controvérsia.
Seguindo o exemplo libanês, vários países árabes, como a Argélia e a Tunísia, boicotaram a exibição de Wonder Woman, em protesto contra a escolha de uma ex-soldado israelita para protagonista. Em 2014, Gal Gadot declarara publicamente o seu apoio às ações militares de Israel na Faixa de Gaza, sendo acusada de sionismo pelos partidários da causa palestiniana.
Na frente doméstica, a polémica foi aditivada pelas sessões exclusivas para mulheres, organizadas em Austin, a capital texana. A chuva de protestos contra a discriminação dos homens sequer salpicou, porém, um épico pós-feminista em que a heroicidade e a vilania são unissexo.

Foi longa e árdua a jornada de Diana até chegar às salas de cinema.


Enredo

A trabalhar como restauradora de obras de arte no Museu do Louvre, em Paris, Diana é surpreendida pela entrega de uma fotografia antiga enviada por Bruce Wayne. O retrato desbotado em que ela posa entre um grupo de homens durante a I Guerra Mundial é o seu passaporte para uma viagem ao passado.
Muitos séculos atrás, Diana, a irrequieta filha da Rainha Hipólita, cresce alegremente na ilha escondida de Temiscira, lar das Amazonas. Essa raça de ferozes guerreiras foi criada pelos deuses olimpianos para proteger a Humanidade.
Certa noite, Hipólita deixa a pequena Diana fascinada com a história de como Ares, o deus da guerra, sentia ciúmes dos humanos e orquestrou a sua destruição. Quando os outros deuses porfiaram esforços para impedi-lo, Ares matou-os sem dó nem piedade. Também ele mortalmente ferido, Zeus usou o último resquício do seu imenso poder para derrotar Ares. Antes de perecer, Zeus preparou as Amazonas para o inevitável regresso do seu vingativo filho, e agraciou-as com uma arma infalível chamada Matadora de Deuses.
Pressionada pela sua irmã Antíope, Hipólita concorda relutantemente que Diana seja treinada para ser uma guerreira. As Amazonas depressa percebem o extraordinário potencial da sua princesa, enquanto esta se questiona sobre qual será o seu verdadeiro destino.

À medida que Diana cresce, a ilha vai-lhe ficando estreita.

Avançando para 1918, Diana salva o Capitão Steve Trevor de morrer afogado quando este, aos comandos de um avião roubado aos alemães, se despenha na costa de Temiscira. Ato contínuo, a ilha é invadida pelos marinheiros alemães que perseguiam Steve.
Na sangrenta batalha que se segue, as Amazonas, mesmo sofrendo pesadas baixas, desbaratam os invasores. Antíope, por sua vez, sacrifica-se para salvar Diana de uma bala perdida.
Mais tarde, atado pelo Laço de Héstia, que compele qualquer um a falar verdade, Steve Trevor revela que uma grande guerra devasta o mundo exterior e que ele é um espião Aliado. Na sua posse tem um caderno de anotações roubado à química-chefe dos alemães. Sob as ordens do General Erich Ludendorff, a Doutora Maru desenvolveu uma fórmula mais letal do gás mostarda, capaz de dissolver as máscaras antigás.
O horripilante relato de Steve deixa Diana profundamente angustiada. Convicta de que Ares está por trás da carnificina, a princesa das Amazonas, desafiando a vontade materna, parte para o Mundo dos Homens, acompanhada por Steve e armada com a espada Matadora de Deuses. Seja qual for o seu desfecho, mãe e filha sabem que aquela será uma viagem sem retorno.

Steve Trevor foi o primeiro homem a pisar Temiscira.

Em Londres, Diana e Steve entregam o caderno de Maru ao Conselho Supremo da Guerra, onde Sir Patrick Morgan, um ardoroso pacifista, tenta sem sucesso negociar um armistício com a Alemanha. Ao traduzir os apontamentos de Maru, Diana descobre que os alemães planeiam soltar o novo gás mostarda na Frente Ocidental.
Ao arrepio das ordens diretas do seu comandante e com o financiamento secreto de Sir Patrick, Steve recruta o espião argelino Sameer, o atirador escocês Charlie e o Chefe Napi, um contrabandista blackfoot. Juntamente com Diana, formam o grupo de desajustados que irá auxiliar Steve na sua arriscada missão de sabotagem no laboratório do terror de Maru.
Chegado à Bélgica, o grupo é impedido de prosseguir a sua jornada devido ao intenso fogo alemão. Num ímpeto, Diana avança sozinha pela Terra de Ninguém e, para assombro de todos, destrói a trincheira inimiga.
Depois de libertarem Veld, uma pequena vila ocupada pelos alemães, o grupo comemora brevemente, sendo o momento eternizado numa chapa fotográfica. Nessa mesma noite, enquanto dançam sob uma chuva de minúsculos flocos de neve, Diana e Steve apaixonam-se.

Retrato para a posteridade.

No dia seguinte, Steve é informado do baile de gala que se irá realizar no Alto Comando Alemão, a poucos quilómetros da vila. Steve e Diana infiltram-se separadamente na festa, com objetivos diferentes. Diana pretende matar Ludendorff, mas é impedida por Steve, receoso de que isso comprometa a sua missão primária: localizar e destruir o gás.
Ludendorff escapa em meio à confusão e ordena a libertação do gás sobre Veld, matando todos os seus habitantes. Culpando Steve pelo massacre, Diana persegue Ludendorff até ao aeródromo onde um bombardeiro alemão com destino a Londres está ser carregado com o gás.
Diana encurrala Ludendorff, mas fica confusa quando a morte do general não põe fim à guerra. Sir Patrick entra em cena e revela ser o disfarce humano de Ares. O deus da guerra admite ter influenciado subtilmente os homens, mas foram eles que, mercê da sua natureza corrupta e violenta, decidiram matar-se uns aos outros.
Diana golpeia Ares com a Matadora de Deuses, mas o vilão quebra a lâmina sem esforço. Divertido com a perplexidade de Diana, Ares revela que, como filha de Zeus e Hipólita, é ela, e não a espada, a verdadeira Matadora de Deuses.

Ares regressou da morte e trouxe o Inferno com ele.

Ao mesmo tempo que Diana e Ares retomam a sua contenda, Steve e a sua equipa destroem o laboratório de Maru. Depois de sequestrar o bombardeiro com a carga mortífera, Steve fá-lo explodir a uma altitude segura. No solo, Diana testemunha, impotente, o martírio do homem que ama.
Ares procura manipular a raiva e a dor de Diana, instigando-a a matar Maru, mas a Princesa Amazona já passou tempo suficiente no Mundo dos Homens para saber que existe bondade no coração humano. Poupando a vida a Maru, Diana redireciona o raio de Ares, matando-o para sempre. Mais tarde nessa noite, soldados e civis comemoram em conjunto o fim da mãe de todas as guerras.
De volta ao presente, Diana envia um email a Bruce Wayne, agradecendo-lhe a fotografia. O espectro da guerra volta a pairar sobre o Mundo dos Homens, mas a princesa das Amazonas será sempre uma Embaixadora da Paz.

Trailer

Curiosidades

*A grande batalha na praia que opõe as Amazonas aos marinheiros alemães no encalço de Steve Trevor demorou duas semanas a ser rodada e envolveu duas unidades de filmagem equipadas com seis câmaras. As tomadas de cena eram composições digitais de dois locais distintos: um com grandes falésias brancas, outro com um areal extenso o suficiente para acomodar a ação. Matthew Jensen, o diretor de fotografia, afirmou que, além de filmar um cenário visual tão complexo devido à profusão de câmaras, atores e figurantes, o maior desafio passou por manter a iluminação consistente ao longo de tantos dias, e com várias alterações meteorológicas à mistura;
*Interpretadas por supermodelos e atletas de alta competição de diversas nacionalidades (nenhuma delas grega), algumas das Amazonas usam um tecido cor de pele sobre um dos lados do peito. Trata-se de uma referência à forma como essa lendária casta de guerreiras era tradicionalmente retratada na arte clássica. Fontes antigas afirmam que as Amazonas amputavam ou queimavam o seio do lado dominante, de modo a melhorar o seu desempenho em combate, especialmente quando usavam arco e flechas. O seu nome deriva, aliás, do vocábulo grego "a-mazos", que significa "sem peito";

Brooke Ence, referência mundial de Crossfit,
deu corpo a uma Amazona.

*Após ser salvo dos alemães por Diana e suas irmãs de armas, Steve Trevor refere-se sarcasticamente ao lar das Amazonas como Ilha Paraíso. Era esse o nome original da ilha na banda desenhada e, também, na série televisiva da Mulher-Maravilha. No pós-Crise, quando George Pérez recontou a origem da Princesa Amazona, a Ilha Paraíso foi rebatizada de Temiscira, em tributo à mitologia helénica;
*O General Erich Ludendorff foi uma personagem real e de má memória para os soldados inimigos. Valendo-se da sua condição de comandante supremo das forças alemãs durante a I Guerra Mundial, autorizou o uso do famigerado gás mostarda, um agente corrosivo capaz de derreter tecidos moles e que, dependendo do grau de exposição, podia causar cegueira temporária ou permanente, danos duradouros nos pulmões e, no limite, uma morte excruciante. Após o Armistício, Ludendorff, como tantos outros ex-combatentes germânicos, sentiu-se traído pela classe política e apoiou o golpe fracassado de Adolf Hitler em Munique, mas distanciou-se do futuro chanceler muito antes do Partido Nazi alcançar o poder;
*O relógio que Steve Trevor usa é um relógio de bolso adaptado com um estojo de couro para ser usado no pulso. Geralmente presos numa corrente, os relógios de bolso eram os mais comuns na época, mas provaram-se impraticáveis na linha da frente. Uma vez que o tempo era fundamental para coordenar ações em grande escala, como ataques de infantaria apoiados por barragens de artilharia, os soldados passaram a usar os relógios nos pulsos. No final da guerra, a moda espalhou-se entre os civis, tornando os relógios de bolso acessórios obsoletos;
*A escolha da atriz espanhola Elena Anaya para interpretar a Doutora Maru (uma mulher desfigurada que esconde as cicatrizes com uma prótese plástica) foi uma homenagem de Patty Jenkins à sua atuação em A Pele Onde Eu Vivo (2011), de Pedro Almodóvar. Uma das mais antigas adversárias da Mulher-Maravilha na banda desenhada, Maru surgiu no início de 1942, no rescaldo do ataque a Pearl Harbor, como uma princesa japonesa que chefiava o departamento de armas químicas dos nazis, sendo por isso alcunhada de Doutora Veneno;

Doutora Veneno é uma das mais antigas 
adversárias da Mulher-Maravilha.

*Melhor amiga e companheira de aventuras da Mulher-Maravilha, Etta Candy foi criada, tal como a própria Diana, por William Moulton Marston e H.G. Peter. Apesar de ter sido várias vezes reinventada desde a Idade de Ouro, foi quase sempre retratada como uma mulher alegre, anafada e afoita. Descontando a mudança de nacionalidade (de americana passou a inglesa), a sua congénere cinematográfica evoca a aparência e maneirismos da personagem original;
*Patty Jenkins, uma grande admiradora da série televisiva da Mulher-Maravilha, convidou Lynda Carter e Lyle Wagoner (o Steve Trevor original) a participarem no filme, mas ambos foram impedidos de aceder ao pedido da realizadora, devido aos seus compromissos profissionais. Ignora-se que papéis teria Jenkins em mente, mas muitos fãs sonhavam com uma Rainha Hipólita interpretada por Lynda Carter;
*Sucedendo no papel a Cathy Lee Crosby e Lynda Carter, Gal Gadot foi a terceira atriz (e a primeira não americana) a emprestar corpo à Mulher-Maravilha. Apesar do treino intensivo a que se sujeitou durante nove meses e que lhe acrescentou quase oito quilos de massa muscular, Gal não mereceu a aprovação de muitos fãs, desagradados com o seu corpo demasiado esguio. Quando foram necessárias refilmagens, Gal, grávida do seu segundo filho, insistiu em fazer ela própria as cenas mais arriscadas;

Cathy Lee Crosby (1974) e Lynda Carter (1975-79) foram
as primeiras Mulheres-Maravilha de carne e osso.

*No início de 2021, Zack Snyder compartilhou na suas redes sociais uma imagem conceptual que mostrava Diana durante a Guerra da Crimeia (1853-1856).  A Princesa Amazona surgia rodeada por um grupo de guerreiros de diferentes origens e segurando três cabeças decapitadas como se troféus de caça se tratassem. Elementos que sugerem que a história idealizada por Snyder teria sido muito mais sombria e violenta do que aquela que foi mostrada na película dirigida por Patty Jenkins.
Além de ter sido o primeiro conflito bélico a ser fotografado (e um dos primeiros a ser telegrafado), a Guerra da Crimeia foi, pela sua escala continental, uma espécie de prelúdio da I Guerra Mundial;

Outra guerra, outros guerreiros.

*Na cena extra incluída na versão DVD e Blu-ray, Etta Candy, Sameer, Charlie e o Chefe voltam a reunir-se logo após o Armistício, com vista à preparação de uma missão secreta envolvendo uma Caixa Materna. A cadeia de eventos por eles colocada em marcha culminaria, séculos mais tarde, na formação da Liga da Justiça para impedir a invasão da Terra pelas hordas de Darkseid;
*Perto do final do filme, Diana descobre, enfim, a sua verdadeira origem e propósito. A princesa das Amazonas é o fruto da união transgressora da Rainha Hipólita com Zeus, fazendo de Ares seu meio-irmão. Esta relação familiar remete para a versão moderna da Mulher-Maravilha apresentada na fase Novos 52, mas sem qualquer substrato comum com a mitologia grega. Na história clássica, Hipólita era filha de Ares e, portanto, neta de Zeus (sendo Diana sua bisneta).


Veredito: 80%

Não era de estranhar o ambiente de receosa expectativa que rodeava a estreia da primeira longa-metragem da Mulher-Maravilha. O fogo cerrado da crítica sobre Batman versus Superman e Esquadrão Suicida parecia ter ferido de morte a incipiente franquia cinematográfica da DC. Como Atlas, Diana foi, pois, chamada a carregar nos ombros o peso, não do mundo, mas de todo um universo expandido.
Ciente da enormidade da tarefa, a realizadora Patty Jenkins tomou a decisão sensata de optar por um caminho simples. Mulher-Maravilha é uma história clássica de origem, estruturada para apresentar ao grande público a campeã da Verdade e do feminismo criada por William Moulton Marston, no já distante ano de 1941.
Na sua narrativa leve e divertida, intercalada por empolgantes cenas de ação, são óbvias as influências de Superman (1978). Acresce ainda um bónus raro nas atuais produções do género: apesar da referência inicial a Batman versus Superman, não é necessário ter assistido aos filmes anteriores da franquia para compreender a história.
Essa combinação - simplicidade narrativa e apelo emocional - confere à película uma aura de cinema antigo, que se distancia do tom sombrio dos seus antecessores, resgatando graciosamente o Universo Estendido da DC da pátina do cinismo e da desesperança.
No cômputo geral, Mulher-Maravilha é uma obra bem balanceada. Até as cenas de luta, que geralmente se estendem por longos e fastidiosos minutos de CGI e câmara lenta, acontecem no tempo certo. Em vez de ser a atração principal, a pirotecnia digital serve apenas como uma ferramenta.
Embora coberto de virtudes, o filme tem também os seus pecadilhos, desde logo a caracterização dos vilões. Ares é o gatilho para a transformação de Diana em Mulher-Maravilha, mas a sua revelação ocorre tardiamente e não surpreende (quase) ninguém. Rasos como pires, o General Ludendorff e a Doutora Maru são praticamente caricaturas vilanescas. Esta última podia perfeitamente ter sido substituída por um cientista genérico, já que a sua função na trama se resume a criar o gás.
Apesar dos pesares, Mulher-Maravilha é o filme que a DC precisava, que os fãs pediam e que Diana merecia. A sua mensagem simples, calorosa e universal, relembra-nos que os heróis e heroínas servem para nos inspirar, não para deprimir-nos. Para isso já basta o mundo contingente dos homens e mulheres comuns.

A Mulher-Maravilha reergueu sozinha o Universo Estendido da DC.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre William Moulton Marston e a fase de George Pérez disponíveis para leitura complementar.












20 setembro 2023

ETERNOS: BOB KANE (1915-1998)

 
  Imortalizou-se como autor único do Batman mantendo o seu parceiro criativo perpetuamente na penumbra. Apesar da sua imensurável importância para a cultura popular, tem o seu legado contestado. Visionário ou charlatão, o criador plástico do Maior Detetive do Mundo é ainda um enigma por resolver.

Desde a sua estreia, já lá vão quase 85 anos, Batman conquistou os corações e as mentes de sucessivas gerações, sendo a sua popularidade transversal a todas elas. Surgido nos anos terminais da Grande Depressão, o Cruzado Encapuzado foi a resposta ao desejo de justiça de todos quantos sofriam com a dor da perda.
Do cinema aos jogos de vídeo, Batman foi adaptado a todos os segmentos culturais, tornando-se um ícone global e uma das franquias mais lucrativas de sempre. Muitos consideram, no entanto, que o maior vilão da história do Cavaleiro das Trevas não é o Joker, tão-pouco Ra's al Ghul, mas sim o seu próprio criador.
Apesar de ter dado ao mundo um dos seus maiores heróis, Bob Kane teve uma relação difícil com a verdade e com a ética. Colecionou polémicas aguerridas e recusou sempre dividir os louros da sua maior criação, tornando-se assim uma das figuras mais incompreendidas da 9ª Arte. Alguns dos seus detratores vão ainda mais longe, colando-lhe o selo pesado de fraude.
Essa perceção negativa relativamente a um dos maiores titãs da indústria dos comics assenta, parcialmente, em equívocos e ideias feitas. Todas as histórias têm dois lados, e esta não foge à regra. Importa, por isso, reexaminar o legado de Bob Kane com a lupa da objetividade. Exatamente como faria o Maior Detetive do Mundo: um delicado exercício de arqueologia forense que permita à História julgar um indivíduo e não a sua caricatura.
Nova-iorquino de gema, Bob Kane nasceu no Bronx a 24 de outubro de 1915, Mas esse não era o seu nome batismal. Primogénito de um casal de imigrantes judeus asquenazes originários da Europa Oriental, na sua certidão de nascimento começou por constar Robert Khan.
O salário do pai, tipógrafo no jornal New York Daily News, proporcionava uma vida confortável à família. Ao contrário de muitas crianças daquela época, Bob teve, por isso, uma infância tranquila e sem privações.
Ainda petiz, Bob descobriu o fascínio pelo desenho e, ao longo de toda a vida, descrever-se-ia como uma rabiscador. Inseparável dos seus lápis de carvão, gostava de desenhar em folhas de papel, panfletos e até em caixas de cereais.
Com apenas dez anos, Bob encontrou a sua vocação profissional: queria ser cartunista. O pai, que conhecia bem a realidade desse ofício, trazia para casa os suplementos dominicais do jornal, para que o filho pudesse decalcar as tiras e outras ilustrações.

Os suplementos dominicais do New York Daily News
levaram Bob Kane a querer ser cartunista.

Sempre encorajado pelos pais, o pequeno Bob continuou afincadamente a aperfeiçoar o seu talento. Sonhava poder, um dia, ganhar a vida a rabiscar. Mal sabia ele que um desses rabiscos o imortalizaria no imaginário popular.
Por vezes, o pai de Bob levava, também, alguns dos desenhos do filho para os cartunistas do jornal avaliarem. Os artistas davam opiniões, dicas e, sobretudo, incentivos. Todos lhe auguravam uma carreira promissora a trabalhar com o lápis.
Mais ainda depois de Bob ter ficado em segundo lugar num campeonato interestadual de desenho. O objetivo da competição era descobrir quem desenhava melhor as tiras Just Kids, da autoria de Gene Byrne. Bob tinha então quinze anos e, pouco tempo depois, começou a vender as suas próprias bandas desenhadas. Uma delas rendeu-lhe os primeiros cinco dólares - quantia apreciável para a época - da imensa fortuna que acumularia ao longo da vida.
Por essa altura já Bob estudava no DeWitt Clinton - o maior liceu dos EUA, famoso pelo seu edifício em forma de H -, onde contraiu estreita amizade com outra futura luminária da 9ª Arte: Will Eisner. Seria, aliás, pela mão do criador de Spirit que Bob daria, anos mais tarde, os primeiros passos na indústria dos comics.
A par do desenho, Bob tinha no cinema outra das suas paixões. Influenciado por ambas, decidiu que queria, afinal, trabalhar no campo da animação. Em 1934, logo após ter concluído o ensino  secundário, Bob foi estagiar para os Estúdios Max Fleischer, que tinham em Betty Boop e Popeye os seus ativos mais valiosos. 

Bob Kane conseguiu o primeiro emprego nos Estúdios Fleischer,
os mesmos que, em 1943, produziram a primeira animação do Super-Homem.

Nos dois anos imediatos, a vida correu-lhe de feição: ao emprego de sonho Bob somou uma bolsa de estudo. Foi graças a ela que pôde estudar Arte na Cooper Union, uma prestigiada universidade privada de Manhattan, conhecida por privilegiar a criatividade dos seus alunos em detrimento da técnica. Ironicamente, Bob Kane ganharia reputação de ser mestre na técnica de se apropriar de ideias de outrem...
Pensando em reforçar a sua imagem como artista, tão-logo atingiu a maioridade Bob contratou um advogado para alterar legalmente o seu nome. O exótico Robert Khan deu assim lugar ao mais familiar Bob Kane. Essa mudança de identidade denota, por outro lado, o pouco apego de Bob à sua herança judaica - de resto, raramente mencionada na sua autobiografia.
Bob Kane ingressou no mundo dos quadradinhos em 1936. Como ilustrador freelancer da Fiction House, ainda nesse ano teve a sua primeira arte publicada, no terceiro número da revista Wow, What a Magazine!. Embora tenha colaborado em outros projetos, o seu maior contributo para a editora de Sheena, a Rainha da Selva foi Hiram Hick, série cómica por ele desenhada e arte-finalizada.

Hiram Hick foi o primeiro trabalho profissional de Bob Kane.

Quando, em 1937, Will Eisner se associou a Jerry Iger para fundar um dos primeiros estúdios que forneciam material às editoras que se aventuravam a publicar histórias aos quadradinhos, Bob Kane aceitou de bom grado o convite do amigo para reforçar a equipa de artistas residentes.
Durante essa fase, o seu trabalho mais notável foi Peter Pupp. Não obstante ser apenas mais uma série protagonizada por animais antropomórficos, destacava-se das demais pelo tom sombrio. Ao serviço da Eisner & Iger, Bob produziu também material para as duas empresas que dariam origem à DC Comics.
Paralelamente a tudo isto, Bob tinha uma vida social muito preenchida. Era habitué em festas, e foi numa delas que conheceu Bill Finger, seu futuro parceiro criativo. Apesar das personalidades contrastantes dos dois jovens (Bob era extrovertido, Bill ensimesmado), unia-os a paixão pelos quadradinhos e pelos filmes.
Finger era, por aqueles dias, um vendedor de sapatos com aspirações literárias, ao passo que Bob era o eterno rabiscador que precisava de alguém que lhe escrevesse as histórias. Os dois tornaram-se amigos e Bob prometeu a Bill um emprego como argumentista. Do casamento criativo de ambos nasceria um dos maiores totens da cultura popular do século XX. Mas, também, uma controvérsia que ainda hoje faz correr rios de prosa.

Em Bill Finger Bob Kane encontrou
 o seu parceiro criativo de excelência. Juntos, criariam um ícone global.
Mas apenas um ficaria para a História

Em 1939, o editor-chefe da National Comics Publications, Vincent Sullivan, procurava uma nova personagem capaz de reproduzir o grandioso sucesso comercial alcançado pelo Super-Homem no ano anterior. Bob Kane chamou a si a difícil missão de, durante um fim de semana, criar outro justiceiro fantasiado capaz de alavancar as vendas da editora.
Depois de passar a noite acordado a rabiscar freneticamente, Bob criou o Bat-Man (era esta a grafia original), muito diferente, contudo, do Homem-Morcego que todos conhecemos. Em vez do traje cinzento com capa e capuz negros, o Bat-Man vestia de vermelho, usava uma mascarilha e tinha um par de asas rígidas acopladas às costas. Este último elemento estético referenciava o ornitóptero de Leonardo da Vinci. Nesse momento primordial, Bob ponderou crismar a sua criação de Birdman (Homem-Pássaro), mas depois teve uma ideia melhor.
Apesar de os morcegos o deixarem apavorado, Bob era fascinado por eles. O medo que esses animais noctívagos habitualmente despertam nas pessoas inspirou-o a criar uma personagem capaz de intimidar criminosos com a sua silhueta ameaçadora.

O Bat-Man de Bob Kane era muito diferente do Batman que todos conhecemos.

Bob intuiu, porém, que o seu Bat-Man era ainda uma pedra bruta, à espera de ser burilada. Nada melhor, portanto, do que pedir sugestões ao seu amigo Bill Finger - que, entretanto, começara a trabalhar como seu escritor-fantasma.
Influenciado, fundamentalmente, pelo Zorro de Douglas Fairbanks e pelo filme mudo The Bat (1926), Finger reformulou por completo o visual do Batman. De uma penada, transformou-o num detetive científico como Sherlock Holmes, descartando o vigilante alado idealizado por Bob Kane. Finger deu ainda ao Homem-Morcego uma identidade civil e uma cidade para morar - Bruce Wayne e Gotham City, respetivamente.
Sucede que, além de o Batman ser uma espécie de monstro de Frankenstein costurado quase inteiramente a partir de ideias preexistentes, a sua primeira aventura é um despudorado plágio. Publicado em Detective Comics #27, de maio de 1939, O Caso da Sociedade Química, saído da pena de Bill Finger, foi decalcado de Partners of Peril, um conto do Sombra dado ao prelo três anos antes. Ambas as histórias acompanham a investigação motivada pelas misteriosas mortes de poderosas figuras da indústria química.
Ao parecer estético contemporâneo, tal cópia renderia um processo judicial com vitória garantida para os detentores dos direitos do plagiado. Mas, para sorte dos plagiadores, isso nunca aconteceu. Talvez porque, em bom rigor, o Batman foi, depois do Besouro Verde e do Detetive Fantasma, o último espécime de uma série de imitadores do Sombra. 


A primeira história do Batman foi tirada a papel química de um conto do Sombra.

De todo o modo percebe-se o que levou Bob Kane e Bill Finger a lançarem mão de tal subterfúgio: precisavam de uma história que vendesse o Batman. Condicionado na sua criatividade pelo prazo apertado, Finger reescreveu uma história bem-sucedida,  ajustando-a à medida do seu novo protagonista. Nem Bob nem Bill, parceiros neste crime quase perfeito, alguma vez negaram o plágio - que, por sinal, não foi caso único no percurso editorial do Cavaleiro das Trevas.
Com efeito, também a origem do Batman, revelada em Detective Comics #33 (novembro de 1939), teve muitos dos quadros e painéis retirados do livro infantil Junior G-Men, ilustrado por Henry Vallely. Até o morcego que entra repentinamente pela janela da mansão Wayne imita uma cena de Popular Detective #2 (dezembro de 1934). Por sua vez, a imagem de encerramento foi decalcada de um desenho de Tarzan feito por Hal Foster.
Como se tudo isso não bastasse, o juramento de Bruce Wayne reproduz, quase ipsis verbis, o juramento solene do Fantasma. Enquanto a personagem que Lee Falk idealizou em 1936 jurava, sobre o crânio do assassino do seu pai, dedicar a vida à aniquilação da pirataria, da cobiça e da crueldade em todas as suas formas, Batman jurava vingar a morte dos pais dedicando o resto da vida a combater o crime.
Como se sabe, nada disto impediu que o Batman se tornasse a nova mina de ouro da DC, passando inclusivamente a disputar ao Super-Homem o estatuto de figura de proa da editora. Menos de um ano volvido sobre a sua estreia em Detective Comics, o Cruzado Encapuzado ganhou revista própria e um ajudante adolescente. Robin, o Menino Prodígio, serviu para expandir a audiência das histórias do Batman, cativando as crianças que não se identificavam com o taciturno guardião de Gotham City.

Depois do Super-Homem, Batman foi o segundo super-herói a ter a sua própria revista.
Robin ajudou-o a caçar bandidos e a prender leitores de palmo e meio.

Animado pelo crescente sucesso da sua personagem, Bob Kane foi um dos raríssimos profissionais dos quadradinhos a ter a clarividência de, assessorado pelo advogado do pai, negociar um contrato que lhe renderia fama e fortuna. Além de bastante lucrativo, o acordo incluía uma cláusula que o consagrava, a título perpétuo, como autor único do Batman.
Como foi isto possível? A resposta é simples. Bob Kane nunca encarou Bill Finger como um sócio, mas sim como um empregado. Era igualmente essa a perceção da DC, que sempre tivera em Bob o seu único interlocutor em todo o processo negocial. Finger, ademais, preferiu ficar na penumbra a ter de voltar a vender sapatos para ganhar a vida.
Assim sendo, quando a DC começou a requisitar mais histórias do Batman do que Kane conseguia desenhar, a solução passou pela contratação de artistas fantasmas. A partir de um estúdio instalado no edifício do New York Times, Dick Sprang, George Roussos, Jerry Robinson e tantos outros emprestavam secretamente o seu traço ao Homem-Morcego. Nenhum deles foi no entanto alguma vez creditado, levando os leitores a acreditar ser Bob Kane a única pessoa por detrás do seu herói favorito.
A partir de 1943, Bob Kane passou a dedicar-se por inteiro às tiras do Batman. Apesar disso, era a sua assinatura estilizada que continuava a surgir em todas as histórias do Cruzado Encapuzado publicadas nas revistas da DC. Situação impensável nos dias que correm, mas importa lembrar que, naquela época, as regras era muito diferentes. Direitos de autor e vínculos contratuais eram conceitos estranhos numa indústria dominada por gente pouco recomendável. A própria DC, por exemplo, foi fundada por ex-contrabandistas de álcool durante a Lei Seca...
Acresce ainda o facto de que, para todos os efeitos, os artistas fantasmas de Bob Kane eram seus funcionários. Em razão dessa circunstância, Kane pôde continuar a colher todos os louros, ao ponto de se tornar quase tão famoso como o próprio Batman.
A ética profissional de Bob Kane voltaria, entretanto, a ser colocada em xeque num episódio que envolveu os criadores do Super-Homem. Na viragem da década de 40, quando Jerry Siegel e Joe Shuster resolveram processar a DC na esperança de recuperarem os direitos da sua personagem, convidaram Kane a juntar-se a eles. Em vez disso, ele usou essa informação para renegociar o seu próprio contrato com a Editora das Lendas.
Perante a renitência da DC em aceitar os novos termos, Bob Kane alegou ter assinado o contrato original quando ainda era menor de idade. Apesar de se tratar de uma absoluta falsidade (em 1939 Kane tinha 24 anos), contou com a cumplicidade dos pais e com o misterioso sumiço da sua certidão de nascimento para lograr os seus intentos.
Ainda hoje considerado um dos melhores contratos do setor, o novo acordo celebrado por Bob Kane garantia-lhe direitos de revisão e uma melhor percentagem dos lucros decorrentes do licenciamento do Batman. Foi graças a esta audaciosa jogada que, nas décadas seguintes, Kane acumulou uma fortuna estimada em dez milhões de dólares.

Uma modelo fantasiada de Mulher-Gato posa para Bob Kane.
Para o mundo, ele era o único criador do Batman.

A pantomima perdurou até 1965, quando Bill Finger, na qualidade de orador convidado numa das primeiras convenções de quadradinhos, revelou publicamente as suas múltiplas contribuições para a conceção do Batman e respetiva mitologia. Bob Kane, que até aí tinha tido por hábito resguardar-se das críticas sob um manto de fleuma, reagiu com inesperada violência.
Numa carta aberta com várias páginas, reafirmou ser ele o único criador do Batman e, carregando nas tintas, acusou Bill Finger de mentir. Mas nada seria como dantes. Nos bastidores editoriais, a surdina foi ficando cada vez mais ruidosa, com muitos profissionais dos quadradinhos a corroborarem as palavras de Finger.
Quando a polémica estalou, já Bob Kane tinha trocado, há vários anos, Nova Iorque por Los Angeles, e os quadradinhos pela televisão. Em 1965, aceitara colaborar com a série em ação real do Batman. Apesar de se tratar de um programa cómico, Kane apreciava genuinamente o formato porque sempre considerou ridículo o conceito de super-herói.
Na Cidade dos Anjos, Bob Kane conseguiu realizar também o sue velho sonho de criar um desenho animado. Courageous Cat and Minute Mouse - um gato e um rato antropomórficos que, juntos, combatiam  o crime - parodiavam as aventuras do Duo Dinâmico. À boleia do sucesso desse seu primeiro projeto televisivo, Kane criou outra série animada intitulada Cool McCool, a qual acompanhava as trapalhadas de um agente secreto inepto.
Bon vivant, Kane apreciava os prazeres mundanos e a companhia de celebridades, como Sammy Davis Jr. ou Muhammad Ali. Sentia-se como peixe na água nas glamorosas festas de Hollywood e não parecia sentir saudades de Nova Iorque ou da sua vida anterior.

Entre 1960 e 1962, foram para o ar 130 episódios de Courageous Cat and Minute Mouse,
 paródias de Batman e Robin.

A partir do final da década de 60, quando a DC reviu por fim a sua linha editorial, creditando os verdadeiros artistas das histórias do Batman, Bob Kane passou a ser apenas discretamente mencionado como criador da personagem,
Mercê desse novo status quo, Bob Kane atravessou a década seguinte em relativo ostracismo. Dedicando-se agora às Belas Artes, expunha os seus quadros em galerias e museus da Costa Oeste. Apesar de visualmente apelativas, parte dessas obras foram na verdade pintadas por artistas fantasmas. Por causa disso, alguns dos críticos que escrutinaram o trabalho de Kane não hesitaram em expô-lo como charlatão.
A reputação de Bob Kane foi ainda mais beliscada pela morte de Bill Finger na mais abjeta pobreza. Acusado de ter negligenciado o amigo e parceiro criativo, Kane, então com 59 anos, antecipou a reforma e saiu de cena. Mas nem por isso caiu nos alçapões da História para onde atirou tantos dos que com ele colaboraram.
Bob Kane voltou a atrair os holofotes mediáticos em 1989. No ano em que se celebrava o cinquentenário do Cruzado Encapuzado, Kane lançou (com a ajuda, está bem de ver, de um escritor fantasma) a sua autobiografia sugestivamente intitulada Batman and Me. Numa das entrevistas em que se desdobrou para promover a obra, teve um rebate de consciência e reconheceu, urbi et orbi, a tremenda injustiça a que sujeitara Bill Finger. Um pequeno atro de contrição que os mais cínicos interpretaram como um golpe de marketing.

Em 1989, Bob Kane lançou o primeiro volume da sua autobiografia.
O segundo, intitulado Batman and Me - The Saga Continues, seria lançado em 1996.

Ainda em 1989, Bob Kane colaborou como consultor no filme Batman, de Tim Burton. Problemas de saúde impediram-no de fazer a pequena participação prevista na película, mas é da sua autoria o desenho do morcego gigante que o cartunista do Gotham Gazette mostra a Alexander Knox. 
Reabilitado perante os seus pares, nos últimos anos de vida Bob Kane foi por eles cumulado de honrarias. Depois de ter sido introduzido no Jack Kirby Hall of Fame em 1994, dois anos mais tarde passou a figurar também no Will Eisner Comic Book Hall of Fame.
Bob Kane faleceu, de causas naturais, no dia 3 de novembro de 1998, menos de um mês depois de ter completado 83 anos. Foi sepultado num cemitério de Hollywood Hills e a sua lápide perpetua-o como autor único do Batman. 
Visionário aos olhos de alguns, charlatão aos olhos de muitos, Bob Kane continua a ser uma figura controversa. Não por acaso, o único vilão do Batman que ele comprovadamente criou sozinho foi o Duas-Caras. Dificilmente haverá  melhor alegoria para a ambiguidade moral daquele que, mesmo com o legado maculado pelo oportunismo e falta de escrúpulos, foi um dos maiores vultos da 9ª Arte.

Na lápide de Bob Kane pode ler-se que Batman foi uma criação da "mão de Deus".
Onde foi que já ouvimos isto?



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Textos sobre Bill Finger, Jerry Robinson, Dick Sprang, Joker e Robin disponíveis para leitura complementar.






  



 













 











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