10 dezembro 2018

FÁBRICAS DE MITOS: FOX COMICS


  Apesar dos delírios de grandeza do seu excêntrico fundador - o autoproclamado Rei dos Quadradinhos - teria sido nota de rodapé na história da 9ª Arte se não tivesse sido a primeira editora a plagiar o Homem de Aço. Antes do naufrágio anunciado navegou em águas turvas e teve no Besouro Azul a sua figura de proa.

Façanhas de um flibusteiro

Também conhecida como Fox Feature Syndicate ou Fox Publications (e sem qualquer relação com a 20th Century Fox ou o canal FOX), a Fox Comics, fundada no início de 1939, foi uma das primeiras editoras de banda desenhada surgidas nesse período transcendente que foi a Idade de Ouro. Como em tantos outros casos, a sua história confunde-se com a do seu fundador. Sucede que este, mercê das suas inúmeras tropelias, foi uma personagem mais interessante do que qualquer uma das que foram publicadas pela sua empresa. Ou não tivesse ele sido uma espécie de flibusteiro dos tempos modernos com sonhos de grandeza e os predicados morais do animal a que pediu emprestado o nome.
Na raiz de todas as lendas estão antecedentes obscuros e notáveis façanhas, ambos abundantes na esconsa biografia do autoproclamado Rei dos Quadradinhos, cujo reinado, estribado em toda a sorte de trafulhices, merece ser revisitado.
De seu nome completo Samuel Victor Joseph Fox, o controverso fundador da Fox Comics viu a primeira luz do dia a 3 de julho de 1893 no condado de Nottinghamshire, no coração da Velha Albion. Quarto dos seis filhos nascidos a casal de russos emigrados em terras de Sua Majestade, contava apenas cinco anos de idade quando acompanhou a família numa viagem para o Novo Mundo à conquista do sonho americano.
Após duas décadas hospedado em Fall River, no Massachusetts, em 1917 o clã Fox mudou-se de armas e bagagens para Nova Iorque, onde Joseph, o patriarca, abriu uma boutique de roupa feminina.
Quase nada se sabe acerca desses primeiros anos de Victor S. Fox (como se perceberá, o S poderia muito bem ser de "salafrário"), na cidade que nunca dorme. No entanto, levando em conta o que dele se conhece, é pouco crível que, durante essa fase da sua vida, se tenha conseguido manter longe de sarilhos.
De todo o modo, em 1929, ano do crash bolsista que, de uma penada, arruinou a economia estadunidense e milhares de vidas, alguém com o mesmo nome foi indiciado por fraude postal e comercialização ilegal de ações.  Fox, que à data ganhava efetivamente a vida como corretor bolsista, sempre negou ser ele o visado no processo. Do qual acabaria, aliás, por não decorrer qualquer acusação formal.

Victor Fox, o autointitulado Rei dos Quadradinhos.
A despeito disso, essa não seria a única vez que Victor Fox (ou um seu sósia) se veria a contas com a Justiça. Em 1944, surgiu novamente identificado nos autos de um processo por corrupção como associado de uma empresa de construção naval chamada Cornwall Shipbuilding Company. Sabendo-se apenas que foi arrolado como testemunha no julgamento de um oficial do Exército acusado de ter recebido subornos para favorecer a referida companhia nos contratos celebrados com esse ramo das forças armadas norte-americanas. Tratando-se, ou não, da mesma pessoa, certo é que Victor Fox voltou a escapar incólume.
Não excluindo, obviamente, a possibilidade de, mais uma vez, estarmos perante uma infeliz coincidência nominal, um par de anos volvidos, em 1946, o mesmo Victor S. Fox surgiria referenciado num artigo do New York Times sobre especulação imobiliária como um editor de revistas sediado - pasme-se! - no mesmo edifício nova-iorquino que servia de quartel-general à Fox Comics.

Raposa matreira 

Mas recuemos um pouco no tempo para melhor perceber a ascensão e queda do Rei dos Quadradinhos. Mais precisamente até 1933, pois foi nesse ano que os chamados comic books emergiram no panorama cultural norte-americano tolhido pelos efeitos da Grande Depressão. Apesar da sua modesta prestação comercial nos anos imediatos, tudo mudaria naquele mágico dia de junho de 1938 em que Action Comics nº1 chegou às bancas e escaparates. Ao mesmo tempo que apresentava o Super-Homem ao mundo, essa edição histórica plantava as sementes para o que viria a ser uma indústria florescente.

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Nada seria igual após a estreia do Super-Homem.
Da noite para o dia, o formato que servira, essencialmente, para reaproveitar tiras anteriormente publicadas em jornais transformou-se num fenómeno de vendas, abrindo caminho para um negócio deveras lucrativo. Que, não raro, atraiu indivíduos de reputação duvidosa. De antigos editores de literatura de cordel a contrabandistas à procura de investimentos legítimos, passando por simples arrivistas (laia a que pertencia Victor Fox), todos desejavam explorar o recém-descoberto filão.
Afinal de contas, qualquer um com um módico de capital disponível poderia contratar, a troco de quase nada, artistas - ou aspirantes a artistas - para desenharem histórias aos quadradinhos. Recrutada essa mão-de-obra barata, os donos das editoras que iam despontando como cogumelos apenas teriam, em seguida, de negociar com uma gráfica e com um distribuidor para porem o seu negócio em marcha acelerada.
Enquanto escritores e ilustradores, pagos à peça, laboravam em condições que pouco diferiam da linha de montagem de uma fábrica, os editores, esses, enriqueciam sem grande esforço. Era, no fundo, a quintessência do capitalismo, irresistível para alguém com a natureza rapace de Victor Fox.
Ainda que essa informação seja posta em causa por alguns historiadores - porém testificada por várias pessoas da privança do fundador da Fox Comics - reza a lenda que Victor Fox foi, durante brevíssimos minutos, contabilista da National Publications, uma das empresas antepassadas da atual DC Comics.
Na versão mais comum dos acontecimentos, Fox terá chegado aos escritórios da National por volta das dez horas da manhã e, após examinar os gráficos de vendas estratosféricas de Action Comics, apresentou demissão menos de uma hora depois, passando o resto do dia a negociar o aluguer de um escritório no mesmo edifício onde o Super-Homem pendurava a capa - embora num piso superior.
Ao final da tarde desse mesmo dia, Fox havia já requisitado uma revista de 64 páginas ao Eisner & Iger, o mais afamado dos estúdios que, nos primórdios da indústria dos quadradinhos, providenciavam matéria-prima às editoras que, na sua larga maioria, não dispunham de staff próprio.
Existe, no entanto, uma versão alternativa desta história. À falta de documentação que comprove que, em algum momento da sua vida, Victor Fox terá sido, de facto, contabilista da National Publications, o historiador Christopher Irving sustenta que ele terá, em vez disso, obtido informação privilegiada através de um distribuidor comum quando se aventurou na publicação de uma revista de astrologia. Apresentados os cenários, fica ao critério de cada um acreditar naquele que mais lhe aprouver.

Rei sem coroa 

Julgando, porventura, ter tido uma epifania ou um vislumbre do futuro, Victor Fox acreditava que, uma vez lançada a sua própria editora, poderia vergar a concorrência e ditar as regras no incipiente negócio dos comic books.
Como sempre acontece com os megalómanos, a cabeça de Fox começou a girar de forma preocupante e ele começou a ver-se como o Rei dos Quadradinhos. Porém, o seu "reinado" começou atribulado e só por sorte não foi prontamente deposto.
Na primavera de 1939, a recém-fundada Fox Comics lançou aquele que deveria ter sido o seu primeiro título de super-heróis. Contudo, tão-logo Wonder Comics chegou às bancas, o seu protagonista, Wonder Man, foi chamado ao banco dos réus acusado de ser um pastiche mal disfarçado do Super-Homem. Inaugurando, assim, o apreciável rol de processos por plágio interpostos pela National Publications, sempre muito ciosa da sua galinha dos ovos de ouro.
Na véspera de ir prestar depoimento ajuramentado em tribunal, Will Eisner, que concebera Wonder Man segundo as especificações de Victor Fox, foi convocado para uma reunião no escritório deste. Sem meias palavras, Fox tratou logo de dizer o que pretendia: Eisner - que, no ano seguinte, criaria The Spirit, tornando-se um dos grandes vultos da 9ª Arte - deveria admitir perante o juiz ter partido dele a ideia de criar um Super-Homem genérico.
Recusando cometer perjúrio, no dia seguinte, em plena sala de audiências, Eisner disse, em alto e bom som, a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade: que fora a pedido expresso do dono da Fox Comics que havia criado Wonder Man para concorrer diretamente com o campeão de vendas da National Publications.
Gorada qualquer hipótese de defesa, Wonder Man foi retirado de cena e a Fox Comics sentenciada ao pagamento de avultada indemnização à rival. Em represália por este desfecho desfavorável, Victor Fox recusaria pagar os 3 mil dólares (uma pequena fortuna para os padrões da época) em dívida ao Eisner & Iger.

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O único número editado de Wonder Comics.
Consta, ademais, que, na sequência deste desaire, Victor Fox terá adquirido o repugnante hábito de, a caminho do seu escritório, parar o elevador no piso onde estava instalada a sede da National Publications apenas para poder escarrar no chão.
Vencido mas não convencido, Victor Fox não perdeu tempo a lançar novos títulos estrelados por personagens heroicas que alegava serem da sua autoria. Do reforçado repertório da Fox Comics faziam parte, entre outros, Fantastic Comics, Weird Comics e WonderWorld Comics. Acrescendo ainda material inacabado adquirido ao Eisner & Iger antes da rutura motivada por Wonder Man. Para finalizá-lo, Victor Fox contratava ao desbarato jovens ilustradores (muitos deles ainda a frequentar a escola de Artes) ou recorria a freelancers.
As capas das revistas eram, todavia, desenhadas por profissionais mais experientes, pelo que a sua arte era quase sempre superior à das páginas interiores. A Fox Comics era, de resto, conhecida no meio como a editora com as melhores capas e as piores histórias. Alterações de títulos e supressões sem aviso prévio eram, a par da sensualidade e da sordidez, outras das suas imagens de marca. Um bom exemplo dessa arbitrariedade editorial foi Science Comics, cujo nº9, por razões ignoradas, nunca chegou a ser lançado.

Durante a Idade do Ouro,
Fox Comics era sinónimo de plágio e mediocridade.
Apesar da deficiente qualidade das suas publicações, em 1940 a Fox Comics vangloriava-se de ter uma circulação superior a um milhão de exemplares. Números possivelmente inflacionados pela bazófia do seu proprietário mas, ainda assim, impressionantes. Deles decorreu, também, a diversificação da oferta, que não mais se circunscreveria àquelas que haviam sido as duas maiores apostas da editora: super-heróis e humor. Assim, a meio do ano seguinte, a Fox Comics lançou Swank, um magazine direcionado para o público masculino e notoriamente inspirado na consagrada Esquire.
Em virtude deste crescente sucesso comercial, Victor Fox viu-se alcandorado pela imprensa a guru do mercado editorial. Desdobrando-se em entrevistas a rádios e a jornais, o dono da Fox Comics aproveitava para se autopromover como o Rei dos Quadradinhos, que não só ditava as tendências como as antecipava.
Segundo sustentava, os leitores procuravam histórias divertidas e emocionantes que só os comic books - e, em particular, os da Fox - podiam proporcionar. O tempo encarregar-se-ia, porém, de demonstrar que, como todas as modas e tendências, também esta seria passageira.

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Nem só de super-heróis vivia a Fox Comics.

Entre a multidão intermutável de serventuários anónimos às ordens de Victor Fox sobressaíam dois nomes que se tornariam lendários nos anais da 9ª Arte: Joe Simon e Jack Kirby. Os saudosos autores de Capitão América recordavam, contudo, de forma bem diferente a sua passagem pela Fox Comics.
Para Kirby, cuja estreia no género heroico foi apadrinhada por Victor Fox, este era uma figura castiça que jurava a pés juntos ter sido dançarino profissional e que tinha por hábito andar para trás e para frente nos escritórios da Fox enquanto fumava charuto atrás de charuto e ia balbuciando "Sou o Rei dos Quadradinhos! Sou o Rei dos Quadradinhos!".
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Joe Simon (em primeiro plano) e Jack Kirby.
Os criadores do Capitão América também passaram pela Fox Comics.
Joe Simon, por seu turno, fazia uma avaliação menos benevolente do caráter do homem que o promoveu a editor da Fox Comics. Nas palavras deste gigante esquecido dos quadradinhos, Victor Fox era o exemplo acabado do velhaco e, ainda por cima, com delírios de grandeza. Um verdadeiro rei sem coroa nem escrúpulos.
Simon recordava ainda as muitas dificuldades sentidas no desempenho das sua funções de editor numa empresa desorganizada e em que faltava quase tudo. Desde logo imaginação e criatividade, na medida em que, ao longo da sua existência, a Fox Comics se especializou em copiar produtos de sucesso lançados pela concorrência.

Sob o signo do besouro

Essencialmente composto por imitações e personagens descartáveis, o panteão da Fox Comics era um catálogo de clichés que tinha no Besouro Azul* (ele próprio inspirado no Besouro Verde) o seu principal ativo. Criação de Charles Nicholas Wojtkowski, o justiceiro mascarado com nome de inseto fez a sua primeira aparição em agosto de 1939, nas páginas de Mystery Men nº1. Entre essa data e 1950, o Besouro Azul marcaria presença em oito títulos diferentes da Fox, na dupla condição de astro principal (chegou a dispor de uma série epónima) ou de convidado especial.
Para a sua mediana popularidade contribuíram, também, duas iniciativas de curta duração: uma tira de jornal desenhada por ninguém menos que Jack Kirby (a primeira incursão do Rei no género super-heroico) e um folhetim radiofónico patrocinado pela Kooba, uma marca de refrigerantes propriedade do próprio Victor Fox. Com a sua proverbial astúcia, o Rei dos Quadradinhos promovia, de uma assentada, dois dos seus negócios.


O Besouro Azul foi o maior símbolo da Fox Comics.

Dada a mediocridade da sua arte e as histórias sofríveis, impressas em papel barato, a longevidade do Besouro Azul continua a intrigar muitos investigadores da 9ª Arte. Certo é que aquela que, para todos os efeitos, era a coqueluche da Fox Comics lhe sobreviveu - embora não isenta de modificações - até aos dias de hoje.
Depois de, em 1954, ter tido os seus direitos adquiridos pela Charlton Comics** - que o reformulou - o Besouro Azul é, desde o início da década de 1980, parte integrante do Universo DC.
Idêntico destino teve Lady Fantasma (Phantom Lady), a segunda personagem mais bem-sucedida da Fox Comics. Originalmente propriedade da Quality Comics***, migrou para o universo Fox no princípio de 1947 por lá permanecendo até aos anos terminais da editora.
Esculpida pelo virtuoso lápis de Matt Baker, um dos primeiros artistas afro-americanos de banda desenhada, Lady Fantasma tornou-se a rainha das chamadas good girls, estilo gráfico muito em voga nos anos 40 do último século e que consistia,  basicamente, em apresentar heroínas voluptuosas em trajes diminutos e em situações de perigo ou poses sensuais.
Numa daquelas deliciosas ironias em que é fértil a história da 9ª Arte, parte do espólio da Fox Comics permanece insepulto memória coletiva graças à ação da DC, erigida a ódio de estimação do seu fundador.

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Lady Fantasma em apuros.

Fim de reinado 

Vários foram os impérios que, após a Segunda Guerra Mundial, conheceram o seu ocaso. O de Victor  Fox, que já se vinha esboroando, foi um deles. Pelas contas de Will Eisner, a Fox Comics terá ido pelo menos quatro vezes à falência.
A primeira vez que isso aconteceu foi em 1942, daí resultando a alienação de apreciável número das suas personagens a outras editoras. E nem o Besouro Azul escapou, com a joia da coroa da Fox a ser vendida ao desbarato à rival Holyoke Publishing.
Quando, em 1944, Victor Fox regressou à ribalta, muitas dessas personagens tinham, pura e simplesmente, deixado de existir. Mas o Rei dos Quadradinhos não desarmou. Após resgatar o Besouro Azul, introduziu uma nova leva de heróis tão esquecíveis como a anterior. Casos, por exemplo, de Rocket Kelly (um piloto americano aos comandos de um super-avião) e de Cosmo Cat, um gato com superpoderes.
Intuindo o desvanecimento dos super-heróis trazido pelo pós-guerra e pelo advento da televisão, Victor Fox tentou, a custo, acompanhar as novas preferências dos leitores. Que agora balançavam entre as histórias de amor e os contos de terror. Perante esse novo quadro de tendências, a Fox Comics lançou títulos como My Love Memoirs ou Hunted - em bom rigor, dois títulos diferentes para uma mesma série periódica.

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Uma das últimas apostas da Fox Comics.
Igual a si próprio, mesmo quando se insinuavam os primeiros sinais de declínio, Victor Fox nunca perdeu o instinto de raposa matreira. Quando, em 1949, os estúdios MGM lançaram o épico Sansão e Dalila, o Rei dos Quadradinhos fez uma jogada de antecipação ao lançar uma espécie de adaptação oficiosa do filme antes deste chegar aos cinemas. E outra vez saiu impune porque, tal como a MGM, fora buscar inspiração à Bíblia - a obra mais plagiada de todos os tempos.
Embora imaginária, a coroa tornara-se pesada para o Rei dos Quadradinho e esse foi mesmo o seu derradeiro golpe de mestre. Depois de anos a ser bafejado pela sorte que protege os audazes, em 1952 Victor Fox declarou-se insolvente.
Chegava ao fim o seu tumultuoso reinado  e a Fox Comics depressa foi soterrada pelas areias do tempo. Com a maior parte das suas personagens relegadas para o domínio público, foi no próprio fundador que a malograda editora teve a sua estrela mais brilhante. Um vigarista sem emenda que, um dia, sonhou ser o Rei dos Quadradinhos...

*https://bdmarveldc.blogspot.com/2015/09/herois-em-acao-besouro-azul.html
**https://bdmarveldc.blogspot.com/2018/03/fabricas-de-mitos-charlton-comics.html
***https://bdmarveldc.blogspot.com/2017/06/fabrica-de-mitos-quality-comics.html

Um grande bem-haja ao meu bom e talentoso amigo Emerson Andrade. É da sua autoria a magnífica montagem que abre este artigo. 












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