24 maio 2019

ETERNOS: BILL FINGER (1914-1974)


  Sem o seu contributo o Batman seria muito diferente ou poderia nem existir. Sempre na sombra de Bob Kane, foi arquiteto e obreiro da mitologia daquele que é um dos mais icónicos super-heróis de todos os tempos. Nem a morte lhe escancarou, porém, os portões do Olimpo da 9ª Arte.

Enquanto o Sol se punha devagar numa praia deserta do Oregon, na Costa Oeste dos EUA, uma figura solitária executava um estranho ritual. Na areia molhada onde momentos antes espalhara cuidadosamente o montículo de cinzas transportado numa simples caixa de sapatos, desenhava agora, com dedos trémulos, a forma de um morcego. Em seguida, envolta num silêncio solene e de olhos fixos no horizonte incandescente, aguardou que o oceano reclamasse aquela pequena oferenda. Estava cumprida a derradeira vontade de Bill Finger, o autor secreto do Batman.
Quem naquele frio final de tarde por ali passasse, jamais imaginaria serem os restos mortais de um gigante da banda desenhada que as fortes correntes do Pacífico levavam para longe. Ou que a criação do Cavaleiro das Trevas configura uma das maiores traições à verdade inscritas na história da 9ª Arte.
Quando, há precisamente 80 anos, em maio de 1939, o Batman fez a sua primeira aparição em Detective Comics nº27, Bob Kane foi o único autor creditado, apesar de não o ser.
De fora ficou Bill Finger, velho amigo e fiel colaborador de Bob Kane desde os alvores da Idade de Ouro dos quadradinhos. E cujos contributos foram fundamentais para fazer do Cavaleiro das Trevas (cognome também cunhado por Finger) aquilo que ele é hoje: um dos três pilares do Universo DC (juntamente com o Super-Homem e a Mulher-Maravilha), um ícone cultural à escala planetária e, por inerência, um filão virtualmente inesgotável para os detentores dos seus direitos. Como, de resto, testifica a miríade de bandas desenhadas, filmes, séries televisivas e videojogos nele baseados.

Imagem relacionada
Detective Comics nº27 (1939) apresentou Batman ao mundo
 e Bob Kane (em baixo) como seu único autor.

Imagem relacionada

A despeito de o verdadeiro papel de Bill Finger na conceção do Batman e no desenvolvimento da sua mitologia ser um dos maiores segredos de Polichinelo da indústria dos quadradinhos, a verdade só este século começou a ser reposta. Finger continua, ainda assim, a ser um ilustre desconhecido para muitos fãs do taciturno guardião de Gotham City, que ignoram por completo a dimensão e a importância da sua obra.
Como se perceberá, Finger, conquanto inextrincavelmente ligado ao imaginário do Homem-Morcego, enriqueceu de diferentes formas o panteão da Editora das Lendas. No qual tem também lugar cativo desde que, em 1985, o seu nome foi incluído em Fifty Who Made DC Great, o livro de ouro lançado pela DC por ocasião do seu 50º aniversário, e que imortalizava as cinquenta personalidades que mais contribuíram para o sucesso da companhia.
Mas quem era, afinal, esse segundo homem por detrás da criação do Batman? E como foi possível ter permanecido na obscuridade durante tanto tempo? Era Bob Kane um oportunista sem ética ou limitou-se, ao invés, a tirar partido das regras viciadas de uma indústria particularmente iníqua?
No mês em que o Batman, fenómeno de popularidade e de longevidade (vem sendo ininterruptamente publicado desde 1939), ingressa no restrito escol de super-heróis octogenários, importa verter alguma luz sobre os segredos da sua criação e assegurar um módico de justiça ao seu criador secreto.
Um dos mais prolíficos - e menosprezados - escribas da sua geração, Milton "Bill" Finger nasceu a 8 de fevereiro de 1914, em Denver (Colorado), a jovem casal judaico de raízes humildes. Louis Finger, o pai, trocara, ainda adolescente, a sua Áustria natal pelos EUA, na senda do Sonho Americano que a Grande Depressão haveria de reduzir a pó. Foi, pois, em terras do Tio Sam que conheceu Tessie, a discreta nova-iorquina que haveria de desposar logo depois. Do enlace resultaram, além de Bill, duas filhas, Emily e Gilda. Em 1933, a família rumaria a Nova Iorque, depois de a míngua de fregueses ter ditado o encerramento da alfaiataria de que Louis retirava o sustento de todos.
Na Grande Maçã, o clã Finger assentou arraiais no Bronx. Foi nas ruas desse pitoresco bairro nova-iorquino que Bill Finger se fez homem enquanto frequentava o DeWitt Clinton, o mesmo liceu onde, num daqueles obséquios do acaso, Bob Kane estudava também. Kane era apenas um ano mais velho do que Finger e os passos de ambos acabaram inevitavelmente por cruzar-se nos corredores da escola. Apesar das personalidades dissonantes (Kane era conhecido pela sua lábia; Finger pela sua timidez), floresceu uma amizade entre ambos. Terminados os estudos, os dois seguiram, porém, caminhos muito diferentes.

Bill Finger na juventude.
Enquanto Bill Finger, um aspirante a escritor, trabalhava a tempo parcial numa sapataria, Bob Kane optou por ganhar dinheiro a fazer aquilo de que mais gostava: desenhar. Os dois mantiveram contacto e, em 1938, Bob Kane convidou o amigo a trocar a sapataria pelo seu recém-fundado estúdio. Cansado de um emprego que mal lhe permitia pagar as contas, Finger aceitou de bom grado o convite e a sua primeira colaboração consistiu em escrever Clip Carson e Rusty and his pals, tiras vendidas por Bob Kane à National Comics (uma das antecessoras da DC). Apesar de Kane não ter escrito uma só palavra das que acompanhavam as suas ilustrações, apenas a sua assinatura surgia nas tiras. Finger tornava-se assim o primeiro de uma legião de escritores-fantasma que no rolar das décadas coadjuvariam secretamente Kane.

Imagem relacionada
Bill Finger foi o escritor-fantasma de Bob Kane em Rusty and his pals.
Após o estrepitoso sucesso do Super-Homem no ano anterior, em 1939 a National Comics, na pessoa do seu editor-chefe Vin Sullivan, incumbiu Bob Kane de criar um novo herói fantasiado capaz de fazer disparar ainda mais as vendas da companhia. Era véspera de fim de semana e Kane comprometeu-se a apresentar o seu protótipo na segunda-feira seguinte. Essa seria, aliás, uma das poucas promessas que honraria em toda a sua vida.
Durante o fim de semana, Kane afadigou-se na criação da nova personagem, que batizou de Bat-Man (era esta a grafia original) antes de submetê-la à apreciação de Bill Finger. Este ficou agradado com o nome mas propôs várias modificações ao visual, conforme recordaria em diferentes entrevistas concedidas em vida: "Bob mostrou-me alguns esboços do seu Bat-Man. Gostei do conceito, mas a aparência fazia lembrar demasiado a do Super-Homem. Recordo-me que vestia um uniforme vermelho, sem luvas e com um par de asas rígidas acopladas nas costas. Tinha a face parcialmente coberta por uma mascarilha e baloiçava-se numa corda suspensa. Sugeri a Bob que fizesse algumas alterações e ele acolheu as minhas ideias."
As alterações propostas por Bill Finger deixaram quase irreconhecível o conceito original. Num ápice, o uniforme do Batman adquiriu tonalidades escuras, as asas deram lugar a uma capa e a mascarilha foi substituída por um capuz. A influência de Finger repercutiu-se igualmente na têmpera do herói.
Kane não tinha ainda definido a identidade secreta do Batman, e partiu de Finger a ideia de lhe atribuir um insuspeito playboy milionário como alter ego. Foi também ele quem o crismou de Bruce Wayne, combinação dos nomes de duas figuras históricas: Robert the Bruce (rei dos escoceses que, no século XIV, liderou o seu povo na primeira guerra pela independência face a Inglaterra) e Anthony Wayne, general notabilizado pelas suas façanhas militares durante a Revolução Americana. Anos mais tarde, o próprio Kane reconheceria ter concebido o Batman para ser um vigilante mascarado, tendo sido Finger a transformá-lo numa espécie de detetive científico notoriamente inspirado em Sherlock Holmes.

Imagem relacionada
O Bat-Man de Bob Kane.
Alheio a tudo isto, Vin Sullivan, o mandachuva da National, apressou-se a adquirir os direitos da personagem que Bob Kane, como prometido, lhe apresentou em tempo recorde. Sem nunca mencionar Bill Finger, Kane, entre outras contrapartidas, exigiu ser creditado como o único autor de Batman em todas as histórias e adaptações vindouras. Cláusula contratual inédita que destoava daquela que era então a prática consagrada na incipiente indústria dos comics. Raramente os criadores eram creditados ou conservavam os direitos das sua criações. Sendo o caso mais dramático o de Jerry Siegel e Joe Shuster, os desafortunados autores do Super-Homem cujos perfis se encontram disponíveis neste blogue.
Porquanto era o nome de Bob Kane o único que figurava no contrato celebrado com a National, somente ele receberia os futuros proventos do negócio. Apesar de Kane se ter comprometido informalmente a dividi-los com Finger, a verdade é que este nunca recebeu um cêntimo dos milhões de dólares gerados pelo Homem-Morcego nos diferentes segmentos culturais.
Não obstante, foi da pena de Finger que saiu a primeira história do Batman publicada em Detective Comics nº27, ficando a arte a cargo de Bob Kane. Mas apenas este foi creditado nessa edição e em todas as que foram dadas à estampa nas duas décadas subsequentes. Coincidindo esse período com a expansão da mitologia do Homem-Morcego.
Sempre na sombra de Kane, da imaginação de Finger saíram personagens-chave, como o mordomo Alfred Pennyworth, o Comissário James Gordon, a Mulher-Gato ou o Charada. Finger participou ainda na criação de Joker e Robin (respetivamente, némesis mortal e fiel escudeiro do Cavaleiro das Trevas), e deu nome à opressiva metrópole (Gotham City) que servia de habitat a toda esta exótica fauna. A Bat-Caverna e o Bat-Móvel foram outros dos conceitos icónicos introduzidos por Finger, normalizando dessa forma a aplicação do prefixo "Bat" a todo e qualquer acessório utilizado pelo herói que escolheu o morcego como símbolo.
Outra das marcas distintivas de Finger enquanto argumentista do Batman era a utilização recorrente de adereços gigantes - por norma, objetos do quotidiano como máquinas de costura ou de escrever. Um bom exemplo dessa tendência é a moeda gigante guardada na sala de troféus da Bat-Caverna, e que reporta originalmente a uma história da Idade de Ouro da autoria de Finger.

Imagem relacionada

Resultado de imagem para batman giant penny
Mulher-Gato e a moeda gigante com a efígie de Abraham Lincoln:
duas criações icónicas de Bill Finger na Idade de Ouro.
Arte-finalista das primeiras histórias do Batman, o saudoso George Roussos assinalava a minúcia de Finger como uma das suas características mais ambivalentes. Segundo ele, Finger facilitava consideravelmente o trabalho dos desenhistas ao fornecer-lhes referências fotográficas (normalmente retiradas da National Geographic) de prédios ou infraestruturas, como fábricas ou estações ferroviárias. Essas pesquisas exaustivas atrasavam, porém, o processo de escrita. Finger sentia sempre grande dificuldade em cumprir prazos, contingência que, em meados dos anos 1940, ditou a sua substituição temporária por Gardner Fox. Não sem antes ter assinado a história de origem do Homem-Morcego que, a despeito das múltiplas revisitações, se mantém praticamente inalterada até hoje.
Com o tempo Bill Finger começou a trabalhar diretamente para a DC. Superman e Superboy foram dois títulos em que deixou marca. Foi ele quem, por exemplo, incorporou a kryptonita (conceito apresentado anos antes num folhetim radiofónico) no cânone do Homem de Aço. Já o Superboy foi presenteado com um interesse amoroso: ninguém menos do que Lana Lang. Pelo meio, Finger foi creditado como coautor do primeiro Lanterna Verde e do Pantera (Wildcat, no original). No caso do Gladiador Esmeralda esse reconhecimento decorreu do simples facto de ter escrito a primeira história do herói, para cuja conceção em nada contribuiu.
Numa época marcada pela itinerância dos profissionais da 9ª Arte, Bill Finger colaborou igualmente com editoras concorrentes da DC. Quality Comics, Fawcett Comics e Timely Comics foram algumas das que requisitaram os seus préstimos. Para esta última, em 1946, ajudou a criar, em resposta ao êxito da Sociedade da Justiça da América (DC), o Esquadrão Vitorioso (All-Winners Squad), a primeira equipa de super-heróis dessa antepassada da Marvel.

Imagem relacionada
Resultado de imagem para dc comics classic lana lang
Alan Scott, o primeiro Lanterna Verde, e Lana Lang.
Outras das criações emblemáticas de Bill Finger.
Em 1961, numa conjuntura de renascimento dos super-heróis, Bill Finger abandonou quase por completo a indústria dos quadradinhos para abraçar uma nova carreira como argumentista no cinema e na TV. Foi nessa qualidade que, cinco anos depois, escreveu dois episódios da série televisiva do Batman estrelada por Adam West. Tendo sido essa a primeira vez que recebeu crédito por uma história do herói que ajudara a criar. Algo que certamente não terá agradado a Bob Kane.
Por essa altura a relação entre ambos já se deteriora em consequência de uma controvérsia relacionada, precisamente, com a criação do Homem-Morcego. Em 1965, na edição inaugural da Comic Con de Nova Iorque, Bill Finger participou num painel composto por autores de banda desenhada. Questionado sobre o seu papel na criação do Batman, Finger revelou a verdadeira dimensão do seu contributo para a definição do herói.
A resposta de Bob Kane não se fez esperar e foi tudo menos polida. Numa contundente missiva publicada no fanzine Batmania, apelidou de fraude o seu ex-associado, sonegando-lhe uma vez mais o direito a ser reconhecido como coautor do Cavaleiro das Trevas.
No que poderá ser interpretado como uma expressão de atroz cinismo ou um tardio rebate de consciência, na sua autobiografia lançada em 1989 (na verdade, um panegírico escrito a meias com Tom Andrea), Bob Kane escreveu: "Agora que o meu velho amigo Bill Finger nos deixou, devo admitir que ele nunca obteve a fama e o reconhecimento merecidos. Ele foi a força motriz do desenvolvimento do Batman. Foi um herói anónimo." Diga-se, no entanto, que Kane tudo fez para garantir esse anonimato.
Traído pelo seu coração, Bill Finger foi encontrado morto no seu apartamento num condomínio de Manhattan a poucos dias de completar 60 anos, e quando o movimento pela defesa dos direitos autorais ainda gatinhava. Corria o ano de 1974 e durante muito tempo especulou-se que o seu corpo teria sido sepultado numa campa anónima. A verdade, porém, é que foi cremado e as suas cinzas espalhadas pelo seu único filho, Frederick (era ele a misteriosa figura no início do texto), numa praia do Oregon. E esse poderia ter sido o epílogo desta apaixonante história se, em 2012, Marc Tyler Nobleman, um estudioso da 9ª Arte, não tivesse lançado Bill the Boy Wonder (Bill, o Menino-Prodígio), uma biografia ilustrada que exumou verdades incómodas.

Resultado de imagem para bill the boy wonder
Em 2012, a biografia ilustrada de Bill Finger
 abriu caminho para o seu reconhecimento público.
A aturada investigação levada a cabo por Nobleman possibilitou a descoberta da única herdeira viva de Bill Finger: a sua neta Athena, nascida dois anos após a morte do avô. No corolário de uma árdua disputa judicial travada por Athena, em 2015 a DC consagrou por fim Bill Finger como cocriador do Batman. Mesmo a tempo da estreia do filme Batman versus Superman: O Despertar da Justiça. Pela primeira vez surgiu no grande ecrã a inscrição "Batman criado por Bob Kane com Bill Finger".
Num mundo perfeito, ler-se-ia "Batman criado por Bob Kane e Bill Finger". Num mundo perfeito, Bill Finger, há muito reconhecido pelos seus pares que até criaram um prémio com o seu nome, teria reclamado em vida o lugar no Olimpo da 9º Arte que é seu por direito. Mas este não é um mundo perfeito e nem sempre a amizade prevalece.
Desde dezembro de 2017 que uma esquina do Bronx tem o nome de Bill Finger. Uma homenagem toponímica que nada teve de aleatória. A esquina em questão dista poucos metros do Poe Park, local onde tantas vezes dois jovens amigos se encontraram para trocar ideias sobre a personagem que os haveria de imortalizar, mas também separar.

moviescreen-grab.jpg
Em Batman vs Superman, Bill Finger foi creditado
 pela primeira vez como coautor do Cavaleiro das Trevas.
Athena Finger na inauguração da esquina com o nome do avô:
 uma via para a eternidade.