17 dezembro 2021

HERÓIS EM AÇÃO: CAPITÃO AMÉRICA


   Em 1941, num mundo a preto e branco, o Sentinela da Liberdade vestiu a bandeira tricolor numa cruzada moral contra a hidra fascista e seu cortejo de horrores. Deslocado numa época matizada de cinzento, luta com igual ardor para manter vivo o Sonho Americano de cores cada vez mais esbatidas.

Denominação original: Captain America
Editoras: Timely Comics (1941-1949); Atlas Comics (1953-1954); Marvel Comics (desde 1964)
Criadores: Joe Simon e Jack Kirby
Estreia: Captain America Comics #1 (março de 1941)
Identidade civil: Steven "Steve" Grant Rogers
Espécie: Humano quimicamente aprimorado
Local de nascimento: Lower East Side, Manhattan (Nova Iorque)
Parentes conhecidos:  Joseph e Sarah Rogers (pais, falecidos)
Ocupação: Ex-soldado do Exército dos EUA; ex-oficial de ligação entre a S.H.I.E.L.D. e os Vingadores; aventureiro e artista freelancer
Base operacional: Nova Iorque
Afiliações: Ex-parceiro de Bucky Barnes e do Falcão; membro fundador e ex-líder do Esquadrão Vitorioso e dos Invasores; ex-operacional da S.H.I.E.L.D.; comandante de campo dos Vingadores.
Némesis: Caveira Vermelha
Poderes e parafernália: Steve Rogers é uma espécie de semideus criado em laboratório. Graças ao Soro do Supersoldado que lhe corre nas veias, representa o auge do potencial humano. É mais forte, mais rápido e mais ágil do que os melhores atletas olímpicos, cujos recordes pulverizaria sem esforço.
Além de lhe permitir levantar mais de 350 kg, correr a mais de 90 km/h e executar acrobacias impossíveis, o soro inibe também a produção das toxinas responsáveis pela fadiga muscular. Em tese, o Capitão América nunca sucumbe ao cansaço. Do mesmo modo que dificilmente adoecerá, visto ser imune a todos os vírus e bacilos terrestres. Os seus ossos são também mais densos do que os de um homem comum, permitindo-lhe, por exemplo, sair ileso de quedas de grande altura. Por mais do que uma vez, o Sentinela da Liberdade foi visto a saltar de um avião sem paraquedas.
Dono de um estilo de luta ímpar, combinando boxe e diferentes artes marciais, o Capitão América é considerado um dos melhores combatentes corpo a corpo do Universo Marvel, limitado apenas pelo seu físico humano. Mesmo diante de adversários de nível cósmico, como Thanos, o Sentinela da Liberdade não se intimida e prontifica-se a lutar até ao último fôlego. Tamanha galhardia granjeou-lhe o respeito da comunidade heroica e deixou impressionado o próprio Titã Insano.

O Sentinela da Liberdade não recua perante ninguém. 
Nem mesmo perante titãs cósmicos como Thanos.

O treino militar e a vastíssima experiência em diferentes teatros de guerra fazem do Capitão América um especialista em tática e um comandante de campo sem igual. Durante as primeiras Guerras Secretas, foi ele o escolhido para comandar a contraofensiva dos heróis no planeta de Beyonder - apesar da presença de outros líderes experimentados, como Ciclope e Senhor Fantástico. Habituado a testemunhar de perto a bravura do seu colega Vingador, Thor orgulha-se de lutar ao lado do Capitão América e assume que o seguiria para lá dos portões de Hades.
Como qualquer bom soldado, o Capitão América é inseparável da sua arma. Consistindo esta num escudo indestrutível de formato circular (originalmente triangular), feito de uma liga metálica única composta por aço e vibranium (à qual foi retroativamente acrescentado protoadamantium). Igualmente eficaz em manobras defensivas e ofensivas, foi projetado pelo Dr. Myron McClain, cientista contratado na II Guerra Mundial pelo Presidente Roosevelt para criar uma blindagem impenetrável para os tanques americanos. Contudo, provavelmente devido à ausência de um catalisador adequado, todas as tentativas subsequentes para reproduzir a liga foram malsucedidas, pelo que o escudo do Capitão América (tal como o próprio) é exemplar único em todo o mundo.
Décadas de prática e uma aerodinâmica perfeita possibilitam que o Capitão América arremesse o seu escudo com precisão quase infalível. Numa espetacular demonstração de destreza, consegue atingir sucessivamente múltiplos alvos com um único lançamento antes de o escudo retornar à sua mão, como se de um bumerangue se tratasse.

O Capitão América recebeu o seu escudo das mãos do Presidente Roosevelt.


O escudo do Capitão América pode imitar um bumerangue.

Confecionado com um tecido retardador de fogo, o uniforme do Capitão América é forrado com uma fina cota de malha metálica que lhe proporciona proteção adicional contra objetos perfurantes ou disparos de baixo calibre. Originalmente, a máscara era uma peça independente que, além de lhe deixar o pescoço exposto, podia ser facilmente arrancada. Para evirar que o herói tivesse a sua identidade civil comprometida, esse pormenor depressa foi retificado.
Quando não está ao serviço dos Vingadores, o Sentinela da Liberdade faz-se habitualmente transportar numa potente Harley Davidson modificada pelo departamento de engenharia mecânica da S.H.I.E.L.D. É também um piloto exímio de aeronaves, especificamente do sofisticado jato dos Vingadores.
O Soro do Supersoldado não aperfeiçoou apenas o metabolismo de Steve Rogers; exacerbou também os seus predicados. A sua coragem, integridade e altruísmo fazem dele o reverso virtuoso do Caveira Vermelha (o supersoldado nazi que o precedeu) e uma fonte de inspiração para outros heróis.
É esse aliás o maior dom do Sentinela da Liberdade: o de manter acesa a chama imortal da esperança  quando o espírito humano é entenebrecido pelo desespero. Desde os seus tempos de meninice, Steve Rogers sempre se ergueu em defesa de outros fracos e oprimidos. Um dos motivos porque, segundo Hércules, até os deuses do Olimpo admiram o mais valente dos homens nascidos na Terra dos Bravos.

O Supersoldado em ação.

Fraquezas: A despeito de todos os aprimoramentos físicos concedidos pelo Soro do Supersoldado, Steve Rogers possui praticamente todas as vulnerabilidades inerentes à sua condição de simples humano. Não é à prova de bala (embora os seus reflexos lhe permitam desviar-se de disparos), tampouco dispõe de um fator de cura acelerada (conquanto o seu processo de cicatrização seja mais rápido). Podendo, portanto, ser ferido - ou até morto - com relativa facilidade, se atingido por explosões, rajadas energéticas ou impactos violentos. Ademais, a sua longevidade é um efeito colateral da fórmula milagrosa que o transformou no soldado supremo. Se esta for drenada da sua corrente sanguínea, Rogers envelhecerá décadas em poucos dias. Processo que o debilitará profundamente e que, no limite, lhe será fatal.
Tantas vezes explorada por velhos inimigos, como o Caveira Vermelha ou o Barão Zemo, a maior fraqueza do Capitão América radica, paradoxalmente, na força das suas convicções. Steve Rogers é um homem fora do tempo, cidadão mental de uma época em que o mundo era um quadro a preto e branco e de contornos bem definidos. Mas, como ele aprendeu a duras penas, o mundo mudou sem recuo. Começando pelos próprios EUA, que durante as décadas em que Rogers permaneceu em animação suspensa viveram alguns dos capítulos mais negros da sua história.
O Sonho Americano definha no cinismo da classe política, na amoralidade da elite financeira e na apatia da juventude. Os nobres ideais pelos quais Rogers sempre se bateu são constantemente colocados em xeque. Os inimigos de ontem são os aliados de hoje (e vice-versa). Ideologias outrora repudiadas são agora ensinadas nas universidades. O patriotismo passou de moda e os americanos estão descrentes do futuro. O próprio Capitão América é conotado com o imperialismo ianque. Em face de tudo isto, Steve Rogers já mal reconhece o seu país. 
De tão idealizado que foi o seu legado ao longo dos anos. Rogers teme por vezes não estar à altura dos complexos desafios do mundo moderno, onde parece não haver lugar para aquilo que ele simboliza. Essas crises de confiança, ainda que passageiras, levam-no a questionar o seu verdadeiro papel numa época tão diferente daquela que lhe definiu o caráter.
Pode ser pesado o fardo de uma lenda viva. Especialmente quando não se tem ninguém para ajudar a suportá-lo. Todos os entes queridos de Rogers partiram há muito; fantasmas de um passado tão trágico quanto glorioso. Apesar do seu estatuto de relíquia museológica, o Capitão América sofre de um mal do século XXI: a solidão em si mesmo.

Lágrimas de uma lenda viva.


Primus inter pares

No final de 1940, com a Europa sitiada pela blitzkrieg alemã e a guerra a rondar os noticiários internacionais, a opinião pública americana dividia-se entre o intervencionismo e o isolacionismo. Apesar da prevalência deste último, o presidente-executivo da Timely Comics, Martin Goodman, tinha a firme convicção de que a entrada dos EUA no conflito era uma inevitabilidade. Nesse sentido, encarregou o seu editor-chefe e o seu diretor artístico - respetivamente, Joe Simon e Jack Kirby (ambos recém-contratados à Fox Comics) - de criarem um herói patriótico capaz de traduzir esse dever moral dos sobrinhos do Tio Sam.
Filhos de imigrantes judaicos fugidos às perseguições no Velho Continente, Simon e Kirby repudiavam o antissemitismo de Hitler com o mesmo denodo com que celebravam o Sonho Americano que permitira aos seus pais terem vidas condignas. Enquadrados por esses sentimentos díspares, decidiram fazer uma declaração política a favor do intervencionismo americano, numa fase em que essa corrente de pensamento carecia de um porta-voz forte.
Simon começou por batizar o neófito de Super-American. Mas, dada a profusão de supers por aqueles dias, depressa o renomeou Capitão América. No entanto, não foi ele o primeiro herói de inspiração patriótica da história dos comics. Essa honra pertenceu ao Escudo (The Shield, no original), lançado em janeiro de 1940 pela MLJ/Archie Comics. 

O Escudo (MLJ/Archie Comics) foi o primeiro herói patriótico
 da história dos quadradinhos americanos.

Precedendo em nove meses a entrada dos EUA na II Guerra Mundial, o Capitão América fez a sua estreia em Captain America Comics #1 (março de 1941). A circunstância de isso ter acontecido num título próprio - e não num qualquer almanaque, como era da praxe - sinalizava a confiança que a Timely tinha no valor do seu novo ativo.
Logo nessa primeira história, Simon e Kirby atribuíram ao Capitão América as idiossincrasias que o diferenciavam dos super-heróis mais populares e o tornariam tão apelativo aos leitores. Ao contrário do Super-Homem e do Batman, Steve Rogers não nasceu com poderes divinos nem herdou uma fortuna imensa. Era, ao invés, um jovem franzino cuja fragilidade física contrastava com o vigor dos seus ideais. Alguém inconformado com o avanço da tirania e disposto a morrer pela liberdade.
Apesar de o Capitão América ter superado todas as expectativas comerciais, nem todos se reviam na mensagem que ele transmitia. Nas semanas seguintes ao lançamento da sua revista, Simon e Kirby receberam ameaças de morte enquanto grupos isolacionistas protestavam ruidosamente diante do edifício da Timely. Temendo pela segurança dos autores, o mayor La Guardia - apoiante confesso do intervencionismo - atribuiu-lhes uma escolta policial.
A esses protestos somou-se uma acusação de plágio por parte da MLJ, que descortinara evidentes semelhanças entre o escudo triangular do Capitão América e o traje do seu Escudo. Em consequência disso, o Sentinela da Liberdade passou a portar um disco côncavo a partir de Captain America Comics #2. Por sugestão de Stan Lee, o novo escudo seria convertido em arma de arremesso na edição seguinte.

O Sentinela da Liberdade esmurra Hitler
 na polémica capa de Captain America Comics #1 (março de 1941).

Após a entrada dos EUA na guerra, o Capitão América consolidou o seu estatuto de campeão de vendas da Timely, com a sua revista mensal a alcançar uma tiragem média de um milhão de exemplares. Apesar de isso indiciar uma audiência mais abrangente, as crianças constituíam a maior parte dos seus leitores. Para muitas delas, Steve Rogers representava os seus entes queridos destacados para o exterior. Cientes disso, Simon e Kirby criaram um clube de fãs (os Sentinelas da Liberdade) e atribuíram um adjunto juvenil ao Capitão América. Tal como o Menino-Prodígio da Distinta Concorrente, Bucky Barnes (homenagem de Simon ao ex-capitão da equipa de basquetebol da sua escola) depressa se tornou um ídolo para os mais novos. 
A enorme popularidade do Capitão América pavimentou caminho para um regimento de epígonos que marchavam sob os estandartes da liberdade e do oportunismo. Captain Freedom (Harvey Comics), Uncle Sam (Quality Comics) e The Flag (Ace Magazines) foram alguns dos muitos concorrentes que disputaram ao Sentinela da Liberdade o título de patriota supremo. Mas o Capitão América provou ser primus inter pares, ofuscando os rivais com o brilho dos seus ideais.
Com o declínio dos super-heróis no pós-guerra, o Capitão América resistiu até 1949, ano em que a sua revista - renomeada Captain America Weird Tales nos seus números finais - foi cancelada. Como tantos outros heróis da Idade de Ouro, o Sentinela da Liberdade parecia condenado a desaparecer nos alçapões da História. Até que em 1953, à boleia do sucesso da série televisiva do Homem de Aço, a Atlas Comics (sucessora da Timely e antecessora da Marvel) reviveu brevemente o Capitão América. 
Nos alvores da Guerra Fria e do macarthismo, o redivivo herói embarcou numa feroz cruzada contra o comunismo. Porém, a fraquíssima adesão dos leitores a este novo alinhamento ideológico ditou novo cancelamento da série ao fim de apenas três edições. 

Sob o selo da Atlas Comics, o Capitão América
 ganhou o epíteto de Commie Smasher (Esmagador de Comunas).

Após uma década longe da vista e do coração, o Capitão América seria novamente revivido, desta feita por Stan Lee e Jack Kirby. Agora sob o selo da Marvel Comics,  Avengers #4 (março de 1964) marcou o regresso definitivo da Lenda Viva.
Agora um homem fora do tempo, Steve Rogers procurava ajustar-se a um mundo muito diferente daquele que conhecera, ao mesmo tempo que aprendia a lidar com os sentimentos de culpa em relação à morte de Bucky. Ingredientes dramáticos que lhe permitiram recuperar o seu lugar de direito no panteão da Marvel. De figura anacrónica, passou a herói intemporal.
A evolução do Capitão América reflete, com efeito, a transformação da sociedade americana desde a II Guerra Mundial. Antes dos EUA entrarem no conflito, ele foi símbolo do intervencionismo numa nação fechada sobre si mesma. Nos anos da guerra, foi instrumento de propaganda nacionalista e militarista num mundo a preto e branco. A escala de cinzentos do pós-guerra forçou-o a despir a pele de cruzado moral. Independentemente de tudo isso, o Capitão América chega aos nossos dias com o seu prestígio incólume. O que significa que as notícias sobre a morte do Sonho Americano são manifestamente exageradas.

80 anos ao serviço da Liberdade, da Justiça e do Modo Americano.


Nascido a 4 de Julho

Único filho de um humilde casal de imigrantes irlandeses, Steve Rogers nasceu a 4 de julho de 1920 (ou 1922, dependendo da fonte consultada), no Lower East Side, bairro operário na parte sudeste de Nova Iorque que também serviu de berço aos seus autores. O facto de ter vindo ao mundo no dia em que os EUA celebram a sua independência só pode ser interpretado como um sinal daquilo que os astros lhe haviam reservado.
No entanto, nada fazia prever que aquele menino de saúde frágil viria a ser o soldado supremo e o símbolo de toda uma nação. Pouco mais se sabe sobre a sua infância, além do seu gosto por desenhar e de ter ficado órfão de pai antes de completar o seu sexto aniversário.
Enquanto crescia com as agruras da Grande Depressão, Steve interiorizava os valores que a sua mãe lhe inculcava: honra, patriotismo, espírito de sacrifício em prol do bem maior. Quando Sarah Rogers sucumbiu a uma pneumonia, Steve, na ponta final da puberdade, ficou sozinho e desamparado num mundo que caminhava em passo estugado para a guerra.
Horrorizado com as notícias acerca das atrocidades cometidas pelos nazis na Europa e pelos japoneses na Ásia, Steve sentiu que tinha de fazer algo e tentou alistar-se no Exército. No entanto, devido ao seu extenso catálogo de enfermidades (asma, raquitismo, arritmia cardíaca, etc.), foi classificado como inapto para o serviço militar.

Steve Rogers foi rejeitado pelo Exército,
 devido à sua fraqueza física e à sua saúde precária.

Inconsolável, Steve implorou para que o deixassem lutar pelo seu país, captando assim a atenção do general Chester Phillips. Foi pela mão dele que participou no Projeto Renascimento, um programa científico ultrassecreto que objetivava a criação de um exército de supersoldados capazes de travar as imparáveis hordas nazis que já haviam conquistado metade do Velho Continente. 
Num laboratório subterrâneo em Washington D.C., Steve foi apresentado ao Professor Joseph Reinstein e inoculado com o seu Soro do Supersoldado. Em seguida, foi bombardeado com raios vita, combinação de diferentes tipos de radiação projetada para acelerar e estabilizar os efeitos do composto químico no seu organismo.
Concluída a experiência, Steve estava irreconhecível. O jovem atrofiado dera lugar a um espécime apolíneo. Os festejos foram no entanto interrompidos pelos disparos de um espião nazi, que assim cumpriu a sua missão de assassinar o Professor Reinstein. 


O Soro do Supersoldado transformou o frágil Steve Rogers num Adónis.

Com a morte de Reinstein e a sua fórmula incompleta, Steve tornou-se o único supersoldado do Exército americano. Depois de submetido a um programa de treino intensivo no plano físico e no plano tático, o Capitão América recebeu o seu icónico escudo e a sua primeira missão: confrontar o seu homólogo nazi, o sinistro Caveira Vermelha.
Nos intervalos entre missões, o Capitão América fazia-se passar por um bisonho recruta de Infantaria, em Camp Lehigh (Virgínia). Foi lá que contraiu estreita amizade com Bucky Barnes, um jovem órfão que era a mascote do regimento.  Bucky ofereceu-se para lutar ao lado do Capitão América, depois de descobrir que ele e Steve Rogers eram a mesma pessoa.
Além de Bucky, o Capitão América travou incontáveis batalhas ao lado do Esquadrão Vitorioso e dos Invasores. As suas façanhas tornaram-se lendárias nos quatro cantos do mundo e foram decisivas para a vitória aliada na II Guerra Mundial. Porém, glória e tragédia andam quase sempre de mãos dadas.
Em abril de 1945, nas vésperas da derrocada do III Reich, o Capitão América e Bucky foram dados como mortos. Quando tentavam desativar uma bomba instalada num avião projetado pelo Barão Zemo, Bucky foi apanhado pela explosão do engenho e o Capitão América despencou nas águas geladas do Atlântico Norte.

O Capitão América foi a resposta dos EUA
 ao Caveira Vermelha, o supersoldado nazi.

Uma vez mais, porém, o destino tinha outros planos para Steve Rogers. Durante as duas décadas seguintes, permaneceu em animação suspensa, aprisionado num bloco de gelo arrastado pelas fortes correntezas. Até ser acidentalmente descongelado pelo seu ex-aliado Namor e resgatado pelos incrédulos Vingadores - que logo passaria a comandar.
De volta ao mundo dos vivos, o Capitão América passou a enfrentar novas e velhas ameaças. Muitos dos seus antagonistas recorrentes corporizam ideologias contrárias aos valores americanos em defesa dos quais o herói continua a erguer bem alto o seu escudo: Caveira Vermelha (nazismo), IMA (fascismo tecnocrático), Corporação Roxxon (capitalismo amoral), Apátrida (antipatriotismo) e Hydra (terrorismo internacional). Ontem como hoje, o Sentinela da Liberdade mantém-se vigilante e pronto a sacrificar-se pelo seu país.

Guardião espiritual do Sonho Americano.


Miscelânea

*Além de Sentinela da Liberdade, o Capitão América é também cognominado Lenda Viva, Supersoldado, Homem Fora do Tempo, Flagelo de Todo o Mal, Cabeça Alada e Porta-Bandeira;
*Apesar de ter sido o primeiro Capitão América, Steve Rogers não foi o único a portar o escudo e a fazer da Stars and Stripes a sua segunda pele. William Naslund ( vulgo Independente), Jeffrey Mace (Patriota) William Burnside, John Walker (Superpatriota) e, mais recentemente, Bucky Barnes e Sam Wilson (Falcão) foram alguns dos homens que assumiram o legado do Sentinela da Liberdade durante a sua ausência. Infelizmente, nem todos estiveram à altura dele;

Alguns dos homens que já assumiram o legado do Sentinela da Liberdade.

*Steve Rogers é um dos raríssimos humanos dignos de empunharem o Mjolnir. A primeira vez que tal aconteceu foi em Mighty Thor #390 (abril de 1988), durante a invasão de Seth e seus seguidores à Mansão dos Vingadores. Ironicamente, Rogers havia sido pouco tempo antes exautorados pelo Governo americano, tendo sido obrigado a criar um novo alter ego, passando a atender simplesmente por Capitão. Na sequência desses eventos, o Deus do Trovão expressou a sua vontade de que, em caso de morte, o seu martelo encantado deveria ser confiado a Rogers;
*Antes de ser recrutado para o Projeto Renascimento, Steve Rogers era um promissor artista gráfico. Após o seu descongelamento, trabalhou durante algum tempo para a Marvel Comics como ilustrador freelancer. Uma das personagens a quem emprestou o seu traço foi o próprio Capitão América. Ocasionalmente, Rogers criticava os argumentistas por falharem em compreender aquilo que o herói representava;
*Agastados com o revivalismo da sua criação pela Atlas Comics no ano anterior, em 1954 Joe Simon e Jack Kirby criaram uma paródia do Capitão América. Fighting American começou por ser apadrinhado pela Prize Comics antes de, a meio da década seguinte, se transferir para a Harvey Comics, onde encerrou a sua meteórica carreira editorial na Idade de Prata. Impregnadas de subtexto político e humor mordaz, as histórias de Fighting American satirizavam a paranoia anticomunista fomentada pelo macarthismo, à qual o Capitão América dava corpo naquela época;

Fighting American parodiava o Capitão América.

*Em 1966, Joe Simon moveu uma ação legal contra a Marvel Comics, declarando-se o legítimo detentor dos direitos autorais do Capitão América. A despeito do entendimento alcançado entre as duas partes nesse mesmo ano, o diferendo só ficaria definitivamente resolvido em 2003. No âmbito de um acordo extrajudicial, a Marvel, mesmo considerando improcedentes as reivindicações de Simon, concordou em pagar-lhe royalties referentes à venda de merchandising e ao licenciamento da personagem;
*Steve Rogers é incapaz de embriagar-se. Acelerado pelo Soro do Supersoldado, o seu metabolismo neutraliza, quase instantaneamente, os efeitos do álcool ou de qualquer outra substância psicotrópica por ele consumida;
*Não obstante o duelo entre o Capitão América e o Batman - apresentado em Marvel vs DC (1996) - ter terminado empatado, no mesmo crossover o Sentinela da Liberdade levou a melhor sobre Bane, o vilão que deixara Bruce Wayne paralítico, em Knightfall (1994). Em face dessa proeza, Batman reconhece que, apesar de as habilidade de combate de ambos se equivalerem, o Capitão América seria capaz de derrotá-lo devido às vantagens físicas conferidas pelo Soro do Supersoldado;
*No Universo Amálgama, o Capitão América foi fundido com duas personagens da DC: Super-Homem e Capitão Marvel Jr. Desse processo resultaram, respetivamente, Supersoldado e Capitão América Jr.; 

Clark Kent, o Supersoldado do Universo Amálgama.

*Em resposta ao recrudescimento das tensões raciais nos EUA, em 1969 a Marvel emparelhou o Capitão América com o seu primeiro herói afrodescendente. Falcão seria o  parceiro mais duradouro do Sentinela da Liberdade na sua cruzada em defesa do Sonho Americano;
*No início dos ano 90, a banda de rock escocesa Eugenius, sob ameaça de um processo interposto pela Marvel, foi obrigada a mudar de nome, depois de ter lançado um par de álbuns como Captain America;
*Em fevereiro de 2007, no rescaldo da Guerra Civil, o Capitão América foi alvejado na escadaria do Capitólio, a caminho do seu julgamento. A sua morte (entretanto revertida) causou enorme choque e comoção tanto no Universo Marvel como no mundo real. O New York Times, por exemplo, fez manchete do sucedido, retratando Steve Rogers como expressão e signo do ideal americano;
*A estreia do Capitão América em Terras Tupiniquins remonta a junho de 1943, no 73º número de O Guri, suplemento juvenil do Diário da Noite - o primeiro a ser editado no mesmo formato dos comic books americanos;
*Na lista dos cem melhores super-heróis de todos os tempos, divulgada em 2011 pelo portal de entretenimento IGN, o Capitão América surge em 6º lugar. Dentre os seus congéneres da Casa das Ideias, apenas Homem-Aranha (3º) e Wolverine (4º) conseguiram melhor classificação;
*O Capitão América foi o primeiro herói da Marvel a fazer a transição para o celuloide. Em 1944, Dick Purcell tornou-se o primeiro ator a interpretar o Sentinela da Liberdade em Captain America, série cinematográfica em 15 capítulos produzida pela Republic Pictures - e com assinaláveis diferenças relativamente ao cânone. Antes de se tornar o porta-bandeira do MCU - onde, de 2011 a 2019, foi encarnado por Chris Evans - o Sentinela da Liberdade teve direito a dois telefilmes - Captain America e Captain America: Death Too Soon (ambos de 1979 e estrelados por Reb Brown) - e, em 1990, o filme Captain America (com Matt Salinger como protagonista) foi lançado diretamente em vídeo. O impressionante lastro mediático do Capitão América, refletindo a sua importância no imaginário coletivo, abrange igualmente dezenas de animações, jogos de vídeo e até novelas literárias.

Dick Purcell, Reb Brown, Matt Salinger e Chris Evans encarnaram a Lenda Viva.




*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Artigos sobre Joe Simon, Timely Comics e Caveira Vermelha disponíveis para leitura complementar.







12 novembro 2021

ETERNOS: CURT SWAN


  Durante mais de três décadas, o seu lápis esculpiu laboriosamente um dos maiores totens da cultura popular. Considerado o artista definitivo do Super-Homem, o seu monumental legado continua a ser reverenciado por pares e fãs nostálgicos. Via-se, porém, a si mesmo como operário de uma indústria ingrata.

Na esteira de Joe Shuster, foram dezenas os artistas que, ao longo de mais de 80 anos, emprestaram o seu traço ao Homem de Aço. Nessa multidão intermutável de talentos sobressaem nomes como Wayne Boring, John Byrne ou Dan Jurgens. Sem desprimor para os demais, a cada um deles correspondeu uma era de intenso fulgor. Mas nenhum deixou uma marca tão profunda no primeiro dos super-heróis como Curt Swan.
Existe um antes e um depois de Curt Swan na mitologia do Super-Homem. O seu percurso profissional confunde-se com a carreira editorial do herói nas Idades de Prata e de Bronze. Nenhum outro artista desenhou tantas  vezes ( e por tanto tempo) o Homem do Amanhã. Entre capas, tiras e páginas interiores, terão sido, por junto, mais de 19 mil as artes assinadas por Curt Swan durante o seu longo consulado nos títulos da Superfamília.
Tão importante como a quantidade era, outrossim, a qualidade do trabalho de Swan. Que, a despeito do seu inegável virtuosismo, sempre se viu a si mesmo como um humilde proletário de uma indústria em que todos são descartáveis. Um zangão incansável dentro de uma colmeia fervilhante, destinado a morrer depois de cumprir o seu propósito.
Swan definiu a aparência do Super-Homem não para uma, mas para duas gerações. Sob o seu lápis sensível, o Último Filho de Krypton humanizou-se. O estranho visitante de outro planeta passou a absorver mais do nosso afeto e simpatia. Swan chancelou também vários dos momentos capitais do cânone do Homem de Aço, como o primeiro encontro deste com  Batman ou o seu casamento com Lois Lane. Com Otto Binder, outro zangão, criou Krypto, o cão de estimação do Superboy e um dos elementos mais acarinhados da Superfamília. Apenas uma das muitas adições da sua coautoria à mitologia da personagem que o alcandorou ao panteão da 9ª Arte.
Por tudo isto, Curt Swan é geralmente apontado como o artista definitivo do Super-Homem. Mas por trás da lenda existiu um homem. Um homem decente na sua simplicidade, cuja vida e obra, um quarto de século volvido sobre o seu desaparecimento, vale a pena revisitar. Por imperativo de memória numa época fértil em revisionismos históricos.

Curt Swan criou a imagem do Super-Homem que se tornou ícone popular.
(Montagem executada por Emerson Andrade,
a quem deixo aqui o meu agradecimento muito especial).

Curt Swan nasceu Douglas Curtis Swan a 17 de fevereiro de 1920. Teve como berço Wilmar, cidadezinha agrícola do Minnesota ufana do seu estatuto de maior produtora de perus do estado. Seria no entanto outra a ave a defini-lo. Em finais do século XIX, a sua avó paterna, imigrante sueca instalada no Canadá, abreviara o apelido familiar de Swanson para Swan (cisne). No Oriente, o cisne simboliza, entre outras coisas, a coragem, a nobreza e a elegância. Predicados que, ao longo da sua vida, Swan demonstrou ter em comum com o Último Filho de Krypton.
O mais novo dos cinco filhos de um casal da classe trabalhadora - o pai ferroviário, a mãe auxiliar no hospital local -, Swan cresceu a admirar as histórias ilustradas dadas à estampa pela Collier's e outras revistas da época. Cedo demonstrou também talento para desenhar, vendendo o seu primeiro trabalho - um tira rudimentar desenhada na parte de trás de um calendário de mesa - a um colega da sua turma do 6º ano. A sua habilidade com o lápis também não passou despercebida aos professores, que frequentemente a requisitavam para as suas aulas ou em atividades extracurriculares. Ganhar a vida a rabiscar era, todavia, algo com que o pequeno Swan nem se atrevia a sonhar.
Nos anos de chumbo da Grande Depressão, Swan, ainda adolescente, conseguiu emprego num armazém para ajudar a equilibrar o magro orçamento familiar. Desenhar continuava a ser um passatempo que o ajudava a suportar as agruras de um dia a dia pautado pela incerteza.
Quando atingiu a maioridade, Swan alistou-se na Guarda Nacional do Minnesota e, dois anos mais tarde, foi incorporado nas fileiras do Exército. Em 1941, após breve passagem por Forte Dix (Nova Jérsia), o seu regimento de Infantaria foi destacado para a Irlanda do Norte. Foi já com as divisas de sargento cosidas na farda que Swan teve a sua primeira oportunidade como artista.
Enquanto desenhava um mural no Clube da Cruz Vermelha de Fintona - pequena vila rural a cerca de uma centena de quilómetros de Belfast - Swan travou conhecimento com Dick Wingert. Um daqueles obséquios do acaso que lhe mudaria as agulhas da vida. Wingert trabalhava como cartunista no jornal oficial do Exército - o Stars and Stripes - e, impressionado com o talento de Swan, sugeriu-lhe que contactasse o coronel que dirigia a publicação.

Foi no jornal castrense Stars and Stripes que Swan
 deu os seus primeiros passos no campo da ilustração.

Sem saber exatamente que tipo de função poderia desempenhar no jornal, e sem grande jeito com as palavras, Swan pediu a um colega que lhe redigisse uma breve nota de apresentação que juntou a algumas ilustrações da sua autoria enviadas por correio. Foi quanto bastou para, logo depois, ser transferido para Londres, onde reforçou o staff artístico do Stars and Stripes.
Longe das frentes de batalha onde alguns dos seus ex-camaradas de armas perderam a vida, Swan especializou-se no desenho de mapas que mostravam a progressão das tropas aliadas no terreno. Ilustrar reportagens de guerra e tiras humorísticas eram outras das suas incumbências. Durante a sua passagem pelo Stars and Stripes, Swan cunhou amizade para a vida com o escritor da DC France Herron. Anos mais tarde, seria pela mão dele que daria os primeiros passos na Editora das Lendas.
Nos últimos meses de 1943, Swan foi transferido para Paris e alugou um modesto apartamento perto da Torre Eiffel. A viver o sonho de qualquer artista, passava longas horas a desenhar junto às margens do Sena. Pedir em casamento a sua musa de sempre pareceu-lhe, por isso, o passo lógico seguinte. Helene Brickley era uma funcionária da Cruz Vermelha Americana destacada para a capital francesa. Os caminhos de ambos tinham-se cruzado pela primeira vez quando Swan estava aquartelado em Fort Dix. O amor floresceu e, após algum tempo separado pela guerra, o casal trocou alianças no verão de 1944, na Cidade Luz.
De regresso à vida civil e a terras do Tio Sam, Curt Swan acalentava a esperança de encontrar trabalho na área da ilustração. O passatempo de infância poderia, afinal, servir para pôr comida na mesa. Após uma breve estadia em Minneapolis (erroneamente indicada em biografias avulsas como a sua cidade natal), Swan mudou-se de armas e bagagens com a mulher para Nova Iorque.
Na Grande Maçã já se encontravam vários ex-colaboradores do Stars and Stripes, incluindo France Herron, que, nesse emmeio, recuperara o seu posto na  Editora das Lendas. Por sugestão deste, Swan fez chegar algumas amostras do seu trabalho a Whitney Ellsworth, um dos mais influentes editores da DC. Ellsworth ficou agradado com o que viu e Swan foi prontamente contratado para desenhar Boy Commandos, série originalmente desenvolvida por Joe Simon e Jack Kirby.

Boy Commandos #16 (julho de 1946) foi
 o primeiro trabalho de Swan para a DC.

Radiante com a perspetiva de receber 18 dólares (maquia apreciável na época) por cada página desenhada, Swan acreditava, contudo, que, quando muito, aquele seria um emprego para um par de anos. Com o declínio das vendas no pós-guerra, ele intuía que a indústria dos comics teria os dias contados. Nem imaginava que trabalharia nela pelo resto da vida.
À parte um trimestre de aulas noturnas no Instituto Pratt (instituição privada com forte tradição nas artes), ao abrigo de um programa de reinserção social de veteranos da II Guerra Mundial patrocinado pelo governo federal, Curt Swan era um autodidata. Por conseguinte, embora o salário auferido na DC fosse atrativo, depressa descobriu o ror de tempo necessário para desenhar uma página. Como era apanágio de muitos artistas novatos, Swan colocava demasiados detalhes no seu trabalho, ficando desapontado com a sua reduzida capacidade de produção.
Graças às preciosas dicas de Steve Brodie, um dos mais experientes artes-finalistas da DC, Swan aprendeu a acelerar o lápis e logo passou a produzir 3 a 4 páginas por dia. Para embolsar a pequena fortuna de 10 mil dólares anuais, Swan trabalhava 14 a 16 horas por dia, sete dias por semana. Quando não estava sentado diante do estirador, Swan, pai de três filhos, gostava de passar o seu tempo livre em família ou em ocasionais partidas de golfe.
Na viragem da década de 50, o azafamado Curt Swan tinha assumido a arte de três séries periódicas (a Boys Commandos, somara Tommy Tomorrow e Gangbusters), datando também dessa época as primeiras capas de Superboy da sua autoria. Começava assim a sua vetusta relação com os títulos do Último Filho de Krypton. Estes tinham como editor Mort Weisinger, notório pelo seu temperamento explosivo e por ser mais papista do que o Papa. Qualquer ligeiro desvio ao padrão visual do Super-Homem fazia-o torcer-se de furor. Swan foi alvo recorrente do bullying editorial de Weisinger, ao ponto de começar a sofrer de dores de cabeça insuportáveis.
Em 1951, Swan atingiu o limiar crítico da sua paciência. Depois de constatar que a pressão profissional lhe estava a prejudicar a saúde e a vida familiar, trocou a DC por uma pequena agência publicitária especializada na promoção de brinquedos.

Superboy foi o primeiro membro da Superfamília desenhado por Swan.

Embora apreciasse sobremaneira o ritmo mais tranquilo do seu novo emprego, o rendimento mensal de Swan encolheu para menos de metade. Regressou, por isso, à DC no mês seguinte, tendo sido recebido de braços abertos por todos - inclusive pelo próprio Weisinger. Que, no entanto, continuava a não poupá-lo às suas diatribes. Novamente acometido de enxaquecas, Swan encheu-se de brios e, de pé firme, enfrentou Weisinger. Para sua surpresa, o mais temido dos editores passou a respeitá-lo e, como por magia, as dores de cabeça desapareceram.
Indicar com precisão qual foi o primeiro trabalho de Curt Swan com o Super-Homem afigura-se tarefa complicada. Até meados dos anos 50, nem todos os autores de cada edição eram devidamente creditados. Era também comum o recurso a "artistas fantasmas", que encontravam maneiras engenhosas de esconder as suas iniciais no material que produziam. Segundo alguns investigadores da 9ª Arte, Swan preferia outro artifício: desenhar personagens com os dedos do meio das mãos unidos. Razão pela qual algumas fontes sinalizam Superman #51 (março de 1948) como a primeira vez em que o lápis de Swan substituiu o de Wayne Boring na série mensal do Homem de Aço. 
Certo é que, em 1953, Swan foi o eleito (em detrimento de Boring e Al Plastino) para ilustrar Three-Dimension Adventures Superman, edição especial em 3D lançada à boleia da popularidade de que os filmes nesse formato gozavam na altura. Esse projeto marcou a estreia oficial de Curt Swan como artista do Super-Homem.

Nesta edição especial de 1953,
Swan foi creditado pela primeira vez como artista do Homem de Aço. 

Dois anos mais tarde, em 1955, Swan foi chamado por Weisinger a render Wayne Boring em Superman. Como já vinha ilustrando Superboy e Superman's Pal Jimmy Olsen desde o ano anterior, Swan encarou isso como uma extensão natural do seu trabalho.
A pedido de Weisinger, Swan retocou o visual do Homem de Aço. Começando pelo queixo quadrado que, durante o longo consulado de Boring, se tinha tornado imagem de marca do herói. Como forma de torná-lo mais poderoso e menos caricatural, Swan acentuou-lhe também os músculos.
Swan desenhava como ninguém expressões faciais. Por meio delas conseguia reproduzir os diferentes estados de alma do Último Filho de Krypton, cujo voo adquiriu igualmente maior graciosidade. Foi essa elegância e humanidade que Swan trouxe à personagem. Para esse efeito, tomou como modelos John Weissmuller (o mítico Tarzan cinematográfico dos anos 30 e 40) e George Reeves (que viveu o Super-Homem na não menos lendária série televisiva da década de 1950).
Nos anos 60, o traço de Curt Swan era ubíquo na linha de títulos da Superfamília: Action Comics, Superman, Adventure Comics, Superboy, Superman's Pal Jimmy Olsen, Superman's Girl Friend Lois Lane e World's Finest. Era difícil encontrar naquela época uma história do Homem de Aço desenhada por outro artista. A obsessão de Swan pelo realismo, inspirada nos ilustradores clássicos, e a sua predileção por temas genuinamente americanos faziam dele o Norman Rockwell dos quadradinhos. Essa influência era patente, em particular, nas histórias do Superboy, onde as paisagens de Smallville invocavam os óleos bucólicos de Rockwell.
Um facto muitas vezes omisso no impressionante currículo de Curt Swan é que, além de fazer o pleno nos títulos da Superfamília, ele desenhava ainda as tiras diárias do Super-Homem. Em 1954, Swan vira ser rejeitada por diversos jornais uma tira da sua autoria (Yellow Hair contava a história de um menino branco adotado por índios), mas o Homem de Aço permitiu-lhe trabalhar com esse tipo de material.

Yellow Hair, a tira inédita de Curt Swan.

Nessa era de absoluto esplendor, Swan não foi apenas o criador da imagem arquetípica do mais arquetípico dos super-heróis, mas também o melhor expoente do estilo gráfico característico da DC naquela época: figuras bem proporcionadas, traços definidos e simétricos, vestuário impecável e, claro, mulheres lindas de morrer. Também as crianças desenhadas por Swan pareciam crianças, ao invés de adultos em miniatura. Não admira, por isso, que a Marvel o tenha assediado sem, contudo, conseguir enfraquecer a sua lealdade à sua editora de sempre.
Em agosto de 1967, Swan associou o seu nome a outro momento histórico do cânone da DC: a primeira corrida entre o Super-Homem e o Flash. Publicada em Superman #199, a arte cinética de Swan ainda hoje serve de referência aos profissionais do lápis chamados a recriar a alucinante competição para encontrar o homem mais rápido do mundo.

A arte vibrante de Swan na corrida do século.

Embora sempre tenha preferido desenhar o Homem de Aço, o trabalho realizado por Curt Swan na Legião dos Super-Heróis foi tudo menos despiciendo.  A sua versatilidade e o seu estilo elegante incutiram um novo apelo às histórias do grupo nas quais Superboy era um habitué. Computo e Imperatriz Esmeralda, arqui-inimigos da Legião, foram duas das suas criações mais importantes para a série.
À medida que os comics evoluíam durante a chamada Idade de Bronze, o mesmo acontecia com o Super-Homem de Swan. Sob cujo traço o Último Filho de Krypton se tornou uma figura mais graciosa e inspiracional com o toque dramático que os padrões da época impunham. Uma das razões pelas quais Christopher Reeve foi a escolha perfeita para encarnar Kal-El no cinema foi porque ele parecia ter sido recortado de um qualquer painel desenhado por Swan. Superman, The Movie foi uma carta de amor à Idade de Prata, apresentando o mesmo herói imponente e compassivo que Swan esculpira laboriosamente.


Christopher Reeve foi a versão de carne e osso do Super-Homem de Curt Swan.

Depois de, em 1985, ter visto o seu nome incluído em Fifty Who Made DC Great, no ano seguinte Curt Swan foi inopinadamente afastado dos títulos do Super-Homem. Longe dos seus tempos de glória, o Último Filho de Krypton era agora considerado antiquado. E o mesmo se aplicava à arte de Swan. De um dia para o outro, o artista que redefinira o Homem de Aço fazendo dele um imbatível campeão de vendas teve os seus serviços dispensados. Sem pompa nem circunstância, sem uma palavra de reconhecimento. Derrubado do pedestal por quem lhe devia carregar o andor. Apesar de nunca a ter verbalizado, a mágoa daí resultante acompanharia Swan pelo resto da vida. 
Escrita por Alan Moore, O que aconteceu ao Homem do Amanhã? (já aqui esmiuçada) assinalou, a um só tempo, o fim da Idade de Prata e a despedida de Curt Swan enquanto artista regular do Super-Homem. Foi o cintilante culminar de uma era que teve em Swan um dos seus mais diligentes obreiros.
Nos anos seguintes, Curt Swan, apesar de reformado, continuou envolvido em projetos menores da DC, incluindo a arte de uma das mais raras edições do Super-Homem. This Island Bradman foi uma banda desenhada personalizada encomendada em 1988 por Godfrey Bradman, magnata do imobiliário, como presente para o Bar Mitzvah do seu filho. Fora da sua zona de conforto, Swan ilustrou ainda Swamp Thing, Teen Titans e uma minissérie de Aquaman

This Island Bradman (1988).
Uma das maiores raridades do Super-Homem com assinatura de Curt Swan.

Curt Swan ganhou o seu primeiro prémio apenas em 1984,
ano em que lhe foi atribuído o Inkpot Award para melhor desenhador.

A exemplo de muitos dos seus pares, Curt não acautelara financeiramente o seu futuro, pelo que se viu obrigado a continuar a trabalhar, em prol tanto da sua sanidade mental como da sua sobrevivência. Com o tempo, porém, as suas colaborações com a DC foram-se tornando cada vez mais escassas. O seu canto do cisne foram as cinco páginas publicadas postumamente em Superman: The Wedding Album (dezembro de 1996). Numa amarga ironia, o casamento de Swan com Helene Brickley tinha chegado ao fim pouco tempo antes.
Curt Swan partiu durante o sono no seu apartamento em Wilton (Connecticut), a 17 de junho de 1996. Um fim sereno para um discreto mestre da Arte Sequencial; cisne branco transformado em patinho feio pelos caprichos de uma indústria sem escrúpulos em triturar quem a engrandeceu. 
Swan transcendeu gerações, dedicou-se de alma e coração à sua personagem de sempre e, acima de tudo, abriu caminho. Embora não tenha sido o primeiro a chegar, ele introduziu estilos, recursos e elementos que serviram de referências para as gerações posteriores de artistas a quem foi concedido o privilégio de desenhar o maior herói de todos os tempos. 
À sua maneira, Curt Swan foi ele próprio um herói.  Quando questionado sobre qual havia sido o prémio mais importante da sua carreira, ele respondeu simplesmente: "O sorriso de uma criança ao ler uma história do Super-Homem desenhada por mim." Ao meu bom amigo Emerson Andrade, assim como a tantos fãs nostálgicos por esse mundo afora, Swan arrancou incontáveis sorrisos. Esta foi a maneira que ele encontrou para os retribuir. 





*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.







     



 








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14 outubro 2021

RETROSPETIVA: «WATCHMEN - OS GUARDIÕES»



  Na sua hora mais negra, uma pandilha de vigilantes amorais desvenda a terrível verdade por detrás de uma conspiração que poderá mudar o curso da História. Com as doze badaladas prestes a soarem no Relógio do Apocalipse, até onde estarão eles dispostos a ir para salvar a Humanidade de si mesma?

Título original: Watchmen
Ano: 2009
País: Estados Unidos da América
Duração: 163 minutos
Género: Ação / Mistério / Fantasia / Super-heróis
Produção:  Warner Bros. Pictures e Legendary Pictures 
Realização: Zack Snyder
Argumento: David Hayter & Alex Tse (baseado na história original de Alan Moore)
Distribuição: Warner Bros. (apenas na América do Norte) e Paramount Pictures (resto do mundo)
Elenco: Billy Crudup (John Osterman / Doutor Manhattan); Jackie Earle Haley (Walter Kovacs / Rorschach); Patrick Wilson (Daniel Dreiberg / Coruja II); Matthew Goode (Adrian Veidt / Ozymandias); Malin Akerman (Laurie Jupiter / Espectral II); Jeffrey Dean Morgan (Edward Blake / Comediante); Carla Gugino (Sally Jupiter / Espectral); Matt Frewer (Edgar Jacob / Moloch)
Orçamento: 130 milhões de dólares
Receitas globais: 185,3 milhões de dólares

Anatomia de um épico 

Pioneira na desconstrução das convenções do género heroico, em 1986 Watchmen, dos britânicos Alan Moore e Dave Gibbons, revolucionou os meandros dos quadradinhos americanos e colocou a DC na vanguarda de uma nova era. Nesse mesmo ano, os produtores Lawrence Gordon e Joel Silver adquiriram os direitos da saga para a 20th Century Fox. Depressa se tornou porém evidente que a transição para o celuloide daquela que é uma das sagas mais cultuadas da história da 9ª Arte seria missão espinhosa.
A primeira contrariedade surgiu quando Alan Moore se recusou a escrever um argumento baseado na sua história. Moore sempre se demarcou das adaptações audiovisuais das suas obras e, como tantos outros, considerava que Watchmen era um filme impossível de ser feito. O longo caminho das pedras que o projeto teve de percorrer parecia dar-lhes razão.

Há um antes e um depois de Watchmen na história da 9ªArte.

Face à recusa de Moore, a Fox contratou Sam Hamm (argumentista de Batman) para escrever um enredo que condensasse os doze capítulos da saga original num único filme. Partiu dele a ideia de alterar o rebuscado final da história de Moore (que envolvia uma lula gigante), substituindo-o pelo assassinato do eu passado do Doutor Manhattan, originando um paradoxo temporal. 
Já depois de o projeto ter passado para as mãos da Warner Bros., em 1991 o ex-Monty Phyton Terry Gilliam (12 Macacos) foi o primeiro nome escolhido para ocupar a cadeira de realizador. Com um orçamento estimado em 100 milhões de dólares, os produtores conseguiram apenas angariar um quarto desse valor. Muito por causa da reputação despesista de Gilliam que, logo depois, bateria com a porta, taxando Watchmen de inadaptável. A malapata de Moore fazia a sua primeira vítima.
Depois de uma década a marinar, em 2001, à boleia do estrepitoso sucesso de O Senhor dos Anéis: A Irmandade do Anel, Watchmen ganhou novo fôlego. Em outubro desse ano, Lawrence Gordon firmou uma parceria com Lloyd Levin e a Universal Pictures, contratando David Hayter (argumentista de X-Men) para escrever e dirigir a película. Aproveitando a carta de alforria recebida, Hayter transferiu a trama para a atualidade, descontextualizando-a da Guerra Fria.
Quando diferenças criativas ditaram o fim prematuro da parceria com a Universal, os produtores ensaiaram uma tentativa falhada de colocar o projeto sob os auspícios da Revolution Studios. Mesmo os que não são dados a superstições não tinham como negar o enguiço. Watchmen voltava, uma vez mais, à estaca zero.
Até que, em julho de 2004, a Paramount Pictures, ao abrigo de um acordo extrajudicial com os produtores (que acusava de violação contratual), anunciou que teria a seu cargo a distribuição internacional do filme. Michael Bay (Transformers), Tim Burton (Batman) e Darren Aronofsky (Cisne Negro) foram alguns dos cineastas sondados para capitanear o projeto, No entanto, por um motivo ou por outro, todos acabariam por se descartar.
Impressionada com o brilhante trabalho de Zack Snyder em 300 (adaptação da saga homónima da autoria de Frank Miller), a Warner Bros. ofereceu-lhe a cadeira vaga de realizador. Snyder não se fez rogado e, à semelhança do que fizera em 300, usou a saga original como storyboard. Entretanto, o argumento de Hayter foi revisto por Alex Tse que, de uma penada, devolveu a história ao contexto original da Guerra Fria e alterou uma vez mais o respetivo desfecho. Adicionalmente, as cenas de luta foram estendidas e uma trama secundária sobre recursos energéticos foi incluída para tornar o filme menos datado.

Zack Snyder fez o que muitos
 duvidam que pudesse ser feito.

Recebida a luz verde por parte da Warner Bros., as filmagens decorreram entre setembro de 2007 e fevereiro de 2008, em Vancouver. A escolha desta cidade canadiana para fazer as vezes de Nova Iorque deveu-se à insistência de Snyder em privilegiar cenários reais, reservando as telas verdes para as sequências em Marte e na Antártida. A complexidade dos efeitos visuais requereu a contratação de uma dezena de empresas do ramo e Dave Gibbons aceitou ser consultor artístico do projeto, tendo inclusivamente desenhado um dos cartazes promocionais de Watchmen.
À meia-noite em ponto de 23 de fevereiro de 2009, Watchmen fez a sua estreia mundial no Odeon Leicester Square, um dos cinemas mais emblemáticos da capital britânica. Apesar das receitas de bilheteira terem ficado aquém do esperado (55 milhões de dólares arrecadados no primeiro fim de semana em cartaz) e de ter polarizado opiniões, Watchmen demorou menos de uma década a tornar-se um filme de culto (que Alan Moore se gaba de nunca ter visto).


Quem vigia os vigilantes?


Enredo

A trama desenrola-se numa linha temporal alternativa na qual vigilantes mascarados são reais e vêm lutando, há longos anos, contra o crime em terras do Tio Sam. Fenómeno surgido na viragem da década de 1930, em resposta aos métodos cada vez mais violentos das quadrilhas tradicionais e ao crescente número de bandidos fantasiados.
Durante a II Guerra Mundial, alguns desses vigilantes - entre os quais o Comediante e a primeira Espectral - formaram um grupo apelidado de Minutemen, para fazerem aquilo que a Lei não conseguia. Dos oito membros fundadores, três foram mortos em ação, um desapareceu sem deixar vestígios e outro foi internado num manicómio. De permeio, o Comediante fora expulso da equipa, depois de uma tentativa de violação a Espectral.

Os Minutemen.

Décadas mais tarde, uma segunda geração de justiceiros fantasiados, inspirados pelos Minutemen, fundaram uma nova equipa chamada Watchmen. Em consequência das suas ações, vários eventos históricos, como o assassinato de John F. Kennedy e a Guerra do Vietname, foram alterados. A vitória americana no Vietname, alcançada graças à interferência do omnipotente Doutor Manhattan (o único Watchman com superpoderes), prolongou a estadia de Richard Nixon na Casa Branca, possibilitada pela prévia revogação da lei que limitava os mandatos presidenciais. 
No final dos anos 70, um forte sentimento antivigilante instalou-se no país, levando o Congresso americano a proibir os heróis fantasiados, daí resultando a dissolução dos Watchmen. Paralelamente, a Guerra Fria ficou ao rubro com uma escalada de tensão entre os EUA e a URSS pontuada pela ameaça cada vez menos teórica de um holocausto nuclear. A cada dia que passava, o ponteiro do Relógio do Apocalipse deslizava perigosamente para a meia-noite e a Humanidade parecia ter os minutos contados.
Em 1985, apenas três Watchmen permanecem no ativo: o Comediante e o Dr. Manhattan (ambos agentes do Governo) e Rorschach, que opera na clandestinidade. Ao investigar o assassinato de Edward Blake, Rorschach descobre que ele era na verdade o Comediante e conclui que os Watchmen poderão estar na mira de alguém determinado em eliminar aqueles que costumavam ser os defensores da sociedade.

A  morte do Comediante coloca a nu uma tenebrosa conspiração.

Rorschach apressa-se a alertar os seus antigos aliados, começando pelo seu ex-parceiro Daniel Dreiberg (o segundo Coruja). Embora cético, Dreiberg transmite as inquietações de Rorschach a Adrian Veidt, outrora conhecido como Ozymandias e agora um dos homens mais ricos e inteligentes do mundo. Veidt descarta prontamente a teoria conspirativa de Rorschach, que também não recebe crédito por parte do Dr. Manhattan nem de Laurie Jupiter, a segunda Espectral (filha da original).
Após o funeral de Blake, o Dr. Manhattan é acusado de ter causado cancro à sua ex-namorada e a outras pessoas que com ele privaram desde o acidente científico que transformou John Osterman num deus vivo. Temendo pela segurança daqueles que o rodeiam, em particular de Laurie (de quem se vinha distanciando cada vez mais), Manhattan parte para o exílio em Marte. A sua ausência desfalca o poderio americano e dá aos soviéticos a confiança necessária para invadirem o Afeganistão. E assim a contagem decrescente para o Juízo Final acelera um pouco mais.
Dias mais tarde, é a vez de Adrian Veidt escapar por pouco a um atentado levado a cabo por desconhecidos. Mas nem todos os Watchmen têm a mesma sorte. 
Quando interrogava Moloch, ex-némesis do Comediante e principal suspeito da sua morte, Rorschach cai numa cilada e acaba incriminado pela morte do vilão. Condenado a uma pesada pena de prisão, Rorschach tem o seu verdadeiro rosto exposto pela primeira vez. Resta-lhe o consolo de saber que a sua paranoia era real e que os Watchmen são, efetivamente, alvos a abater.
Agora um casal, Laurie Jupiter e Daniel Dreiberg regressam ao ativo como Espectral e Coruja para resgatarem Rorschach da prisão. Mesmo a anos-luz de distância, o Dr. Manhattan continua a acompanhar a evolução dos acontecimentos e teletransporta a ex-amante para o Planeta Vermelho. Espectral implora a Manhattan que salve o mundo, mas ele limita-se a expressar-lhe a sua indiferença relativamente ao destino da Humanidade. 

Espectral e Coruja resgatam Rorschach da prisão.

Contudo, ao sondar as memórias da jovem, Manhattan descobre que ela é, afinal, filha do Comediante. Apesar da agressão sexual, ele e a mãe de Espectral tinham-se apaixonado e mantido uma relação em segredo. Fascinado com aquela sequência improvável de acontecimentos, Manhattan concorda em retornar à Terra. A Humanidade é uma espécie sui generis que talvez valha a pena preservar.
Rorschach e Coruja desvendam, entretanto, a terrível verdade acerca da conspiração que quase desbaratou os Watchmen: Ozymandias está por trás de tudo. Antes de viajarem para a Antártida para confrontarem o ex-colega de equipa na sua fortaleza, Rorschach regista os factos no seu diário, enviando-o em seguida para a redação de um jornal nova-iorquino.
Ozymandias confirma, sem rebuço, ser ele o cérebro da operação que resultou na morte do Comediante, no exílio do Dr. Manhattan e na prisão de Rorschach. Para se colocar acima de qualquer suspeita, encenou também um atentado contra si mesmo. 
Perante a incredulidade dos seus ex-camaradas, Ozymandias explica que o seu plano consiste em unir as duas superpotências contra uma ameaça comum, prevenindo dessa forma a III Guerra Mundial. Para concretizar este desígnio, Ozymandias sabotou vários reatores nucleares que, a pretexto de fornecer energia gratuita à Humanidade, convencera o Dr. Manhattan a construir. Da explosão dos reatores resultará a destruição das principais metrópoles e a incriminação de Manhattan, cuja assinatura energética está por todo o lado.
Enquanto Rorschach e Coruja tentam desesperadamente impedir Ozymandias, este informa-os da marcha avançada do seu maquiavélico plano. Naquele preciso momento, em diferentes pontos do globo, há reatores a serem detonados numa sincronia mortífera.
Longe dali, entre as ruínas radioativas de Nova Iorque, o Dr. Manhattan e Espectral deduzem que a hecatombe será obra de Ozymandias e teletransportam-se para a sua fortaleza na Antártida. Ozymandias atrai Manhattan para uma máquina idêntica àquela que o criou e que, aparentemente, o atomiza. No entanto, Manhattan não pode ser morto e ressurge na forma de um gigante.

Nem o todo-poderoso Dr. Manhattan consegue travar a engrenagem do Apocalipse.

Prestes a ser vaporizado por Manhattan, Ozymandias mostra aos restantes Watchmen a comunicação ao país que o Presidente Nixon faz naquele preciso momento na TV. Em resposta ao ataque atribuído a Manhattan, americanos e soviéticos aliaram-se contra o inimigo comum e comprometem-se a defender a Humanidade. 
Todos compreendem então que revelar a verdade serviria apenas para perturbar a paz mundial. Apenas Rorschach não deseja permanecer em silêncio e, a seu pedido, é morto por Manhattan. Impassível, este anuncia em seguida a sua intenção de viajar para uma galáxia menos complicada.
Também o Coruja rejeita a ideia de que o sacrifício de milhões de vidas humanas foi um pequeno preço a pagar pela paz mundial e, antes de partir com Espectral, insta Ozymandias a refletir sobre a enormidade dos seus atos.
Semanas depois, o editor do New Frontiersman, um jornal de ultradireita, reclama da ausência de notícias, agora que a Guerra Fria acabou e o mundo vive em harmonia. À falta de melhor ideia, manda um estagiário esquadrinhar a correspondência enviada pelos leitores, entre a qual repousa o diário de Rorschach...

Trailer


Curiosidades

*"Who watches the Watchmen?" ("Quem vigia os vigilantes?") é uma frase da autoria de Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C.). Foi originalmente proferida no contexto de um debate com Platão para contestar a sua proposta de criação dos filakes (guardiões) como autoridade máxima e infalível das cidades-estado gregas. Apesar de servir de bordão ao filme, a frase nunca é totalmente visível na saga original, surgindo ora incompleta ora parcialmente coberta;
*Múltiplas referências históricas e culturais, ligeiramente alteradas, foram incorporadas no introito da película. Silhouette, ocupando o lugar do marujo na célebre fotografia tirada por Alfred Eisenstaedt no dia da vitória aliada na II Guerra Mundial, beija uma enfermeira em plena Times Square; a festa de despedida da primeira Espectral recria a pintura "A Última Ceia", de Leonardo Da Vinci; a foto do Comediante a apertar a mão de Nixon é baseada naquela que, no mundo real, o ex-Presidente dos EUA tirou com Elvis Presley no final do encontro entre ambos na Casa Branca; a imagem de uma jovem manifestante pacifista a enfiar uma flor branca no cano da espingarda de um soldado americano referencia "Flower Power", a icónica fotografia captada por Bernie Boston em 1967, no auge dos protestos estudantis contra a Guerra do Vietname; 

A festa de despedida de Espectral I recria A Última Ceia.

*Divulgado aquando da estreia de O Cavaleiro das Trevas, em julho de 2008, o primeiro trailer de Watchmen despertou enorme interesse, ao ponto de devolver a saga homónima à lista dos mais vendidos. Para responder à intensa procura, a DC reimprimiu mais de um milhão de exemplares nos meses imediatos. Além do fundo musical dos Smashing Pumpkins, as únicas frases percetíveis no trailer saem da boca do Comediante e de Rorschach, as duas personagens que morrem no filme;
*Todas as bandeiras dos EUA presentes no filme incluem 51 estrelas porque, nessa realidade alternativa, o Vietname tornou-se o 51º estado da União, após a vitória americana no conflito militar travado nesse país do sudeste asiático;
*Entre o elenco principal, apenas Jackie Earle Haley - que fez ativamente campanha para obter o papel de Rorschach - conhecia a saga original. Apesar de ser cinturão negro em Kenpo, Haley optou por não se valer dessas habilidades nas suas cenas de luta, por considerar que a sua personagem teria um estilo mais indisciplinado; 
*Em conjunto com o guião, todos os atores receberam uma cópia de Watchmen, que estavam autorizados a levar para o set. A ideia era que eles sugerissem alterações aos respetivos diálogos, por forma a que estes fossem mais fluidos e mais fiéis à história original;
*Quando lhe foi oferecido o papel de Coruja II, Patrick Wilson consultou um amigo especialista em comics antes de tomar uma decisão. A conselho deste, o ator - que atraíra a atenção de Zack Snyder com a sua prestação em Pecados Íntimos (2006) - aceitou encarnar a personagem, cujo excesso de peso o obrigou a ganhar 11 quilos. Em sinal de apreço pelo conselho do amigo, Wilson convidou-o a assistir à gravação da cena da fuga de Rorschach da prisão; 
*Zack Snyder debateu-se com algumas dificuldades no processo de seleção do ator que vestiria a pele do Comediante. Snyder procurava alguém tão carismático e rabugento como a personagem, encontrando em Jeffrey Dean Morgan o candidato perfeito. Durante a entrevista com o realizador, Morgan - que começara por rejeitar o papel, mudando de ideias por influência do seu agente - mostrou-se particularmente mal-humorado, o que foi determinante para o seu escalonamento;
*Também Ozymandias provou ser um papel difícil de preencher, uma vez que requeria um ator simultaneamente atraente, atlético e com uma expressão blasé. Atributos que, aos olhos de Zack Snyder, só o britânico Matthew Goode reunia. Muito diferente do visual do seu congénere canónico, o figurino do Ozymandias cinematográfico parodiava a infame armadura com mamilos usada por George Clooney em Batman & Robin (1997);

O figurino de Ozymandias parodia
os Bat-mamilos de George Clooney.

*Para evitar um processo de gravação demorado e dispendioso, envolvendo duas tomadas por cada cena do Doutor Manhattan, Billy Crudup usou um traje especial de captura de movimento com 2500 LED incrustados e marcadores no rosto. Dessa forma, o brilho azulado do Dr. Manhattan seguia mais de perto os seus movimentos do que um projetor instalado no set, obtendo, de caminho, um efeito mais convincente do que qualquer CGI;
*Watchmen foi o primeiro filme de super-heróis a incluir nudez frontal. Na Tailândia, a genitália do Dr. Manhattan foi censurada com recurso à pixelização; 
*Apenas sete anos separam Carla Gugino de Malin Akerman que, no filme, interpretam, respetivamente, mãe e filha;
*Por junto, Watchmen arrecadou quatro prémios, incluindo o Saturn Award para melhor filme de fantasia. Integrou ainda a lista de pré-nomeados ao Óscar de Melhores Efeitos Visuais, mas não passou à fase seguinte;
*A banda sonora oficial do filme inclui três canções da autoria de Bob Dylan- Desolation Row, All Along the Watchtower e The Times They Are a-Changin' -, mas apenas esta última é interpretada pelo próprio, ao passo que a primeira não é referenciada na saga original.

A banda sonora oficial de Watchmen
 inclui 3 temas da autoria de Bob Dylan.


Veredito: 90%

Rareiam as adaptações cinematográficas de grandes sagas da 9ª Arte que justificam o uso de F maiúsculo no requisito da fidelidade. Watchmen é uma dessas honrosas exceções e, só por isso, merece ser celebrada. 
À direção de Snyder preside um impressionante cuidado estético. Patente, desde logo, na recriação milimétrica das vinhetas mais impactantes de Dave Gibbons na BD original. Dando mostras de um zelo quase apostólico, o realizador vai ainda mais longe ao reproduzir, ipsis verbis, praticamente todos os diálogos de Alan Moore.
Pautada por flashbacks e longas sequências concentradas no passado dos protagonistas, a narrativa segue um modelo invulgar para uma longa-metragem deste género. Apesar dos riscos inerentes, Snyder seguiu rigorosamente o ritmo explorado na história de Moore. Sem conseguir evitar alguns desequilíbrios, Snyder logrou ainda assim a proeza de condensar os doze capítulos da saga em pouco mais de duas horas e meia de projeção. 
Em virtude dessa duração extensa, Snyder enfatizou inteligentemente a ação. Embora nem sempre consentâneas com o realismo da saga original, o filme possui cenas empolgantes como a luta do Comediante com o seu misterioso assassino, a violenta rixa no beco em que o Coruja e Espectral se vêm envolvidos ou a espetacular fuga de Rorschach da prisão. Se Watchmen é, em última análise, um thriller psicológico, a sua versão cinemática é, inquestionavelmente, um filme de ação temperado com muito suspense.
Imunes às grosseiras descaracterizações que deixam tantas vezes irreconhecíveis as personagens adaptadas, todos os Watchmen estão, tanto a nível físico como moral, perfeitamente representados. A começar pela excelente prestação de Jackie Earle Haley, absorvido pela obsessão maníaca de Rorschach e com uma voz rouca tão incómoda como as verdades por ele gritadas na cara da sociedade.
O sempre competente Patrick Wilson oferece-nos um Coruja profundamente humano e convincente no seu drama de impotência face à magnitude dos eventos. Billy Crudup, por sua vez, aborda muito bem o desacoplamento moral do Doutor Manhattan, que se vê como um deus entre insetos. Jeffrey Dean Morgan, apesar do pouco tempo de ecrã, é a encarnação perfeita do sarcasmo e sadismo do Comediante, contrastando com a ocasional inexpressividade e falta de carisma de Malin Akerman (o elo mais fraco do elenco) como Espectral. Por fim, Matthew Goode apresenta-nos um Ozymandias diferente do original, mas tão maquiavélico como este.
Além de uma obra-prima no capítulo visual, Watchmen beneficiou ainda da escolha inspirada da sua banda sonora, pecando apenas pela ausência de uma partitura épica como aquela que John Williams compôs para Superman, The Movie. Destaque para a atemporal The Times They Are A-Changin', de Bob Dylan, que acompanha uma das melhores sequências de abertura de todos os tempos. Atendendo à atmosfera lúgubre do filme, até o alívio cómico proporcionado por Hallelujah, de Leonard Cohen, à cena de sexo entre o Coruja e Espectral é bem-vindo. 
Tecnicamente sublime, com um estilo distinto e emocionalmente poderoso, Watchmen é uma mescla de realidade e fantasia que verga os limites da imaginação. Mas é, também, tão imperfeito como os seus protagonistas. Que, apesar das suas boas intenções e dos seus conceitos distorcidos de justiça, não passam de simples humanos (ou ex-humanos) a tentarem proteger a sociedade de si mesma. Exatamente aquilo que Snyder procura fazer em relação à essência da obra adaptada.
Watchmen pode não ter sido um campeão de bilheteira nem nunca vir a agradar aos puristas, mas é certamente a adaptação possível de uma saga que muitos consideravam impossível de transpor ao cinema, e um dos melhores filmes de super-heróis alguma vez feitos.






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