09 abril 2016

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A MORTE DE GWEN STACY»





   Fustigado pelo Destino, Peter Parker perdeu para sempre o amor da sua vida numa malsinada noite em que batalhava o seu némesis. Desenlace trágico de um épico que mudaria para sempre a vida do herói, e que já foi transposto ao cinema.


Título original: The Night Gwen Stacy Died
Data: Junho-julho de 1973
Autores: Gerry Conway (história), Gil Kane (esboços) e John Romita, Sr. (arte-final)
Licenciadora: Marvel Comics
Publicado em: The Amazing Spider-Man nº121-122
Protagonistas: Peter Parker/Spider-Man (Homem-Aranha), Norman Osborn/Green Goblin (Duende Verde) e Gwen Stacy
Coadjuvantes: May Parker, Mary Jane Watson, Harry Osborn e J. Jonah Jameson
Cenários: Diferentes pontos da cidade de Nova Iorque, designadamente a ponte George Washington




Capas de The Amazing Spider-Man nº121 (acima) e 122.

 Gwen Stacy: de donzela a mártir





    Quem foi o grande amor de Peter Parker? Gwen Stacy ou Mary Jane Watson? Este é um tópico que ainda hoje motiva acaloradas discussões entre os fãs do Escalador de Paredes, sem que seja, contudo, possível chegar a um consenso.
   Controvérsias à parte, é inegável o papel fundamental que Gwen Stacy teve (e, em certa medida, continua a ter) na vida de Peter Parker. Mas o que, exatamente, sabemos sobre ela?
   De sua graça Gwendolyn Maxine "Gwen" Stacy, a loira delicodoce que arrebatou o coração de Peter começou a espalhar o seu encanto em dezembro de 1965, nas páginas de The Amazing Spider-Man nº31. Fruto da imaginação de Stan Lee* e Steve Ditko**, foi apresentada aos leitores como uma colega de Peter na Universidade Empire State. Perante a aparente indiferença do jovem aos seus subtis avanços, Gwen namorou brevemente com Flash Thompson e Harry Osborn.
   Peter, por sua vez, julgando Gwen fora do seu  alcance, viveu um romance de combustão rápida com a extrovertida Mary Jane. Conforme Peter depressa descobriu, as duas raparigas eram diferentes como a noite do dia: enquanto Gwen - uma brilhante aluna de Ciências - lhe admirava principalmente o intelecto, MJ pôs a nu a sua frivolidade e egocentrismo.
   Pouco tempo depois de Peter e Gwen deixarem os respetivos pares para começarem a namorar um com o outro, o capitão George Stacy (pai da jovem, entretanto introduzido nas histórias do Homem-Aranha, de quem era aliado) morreria atingido por destroços resultantes de uma rixa entre o herói e o Doutor Octopus.
   Recriminando o Escalador de Paredes pelo sucedido, Gwen anunciou a sua intenção de viajar para a Europa em busca de paz de espírito. Intimamente, porém, ela desejava que Peter a pedisse em casamento e a convencesse a ficar junto dele. Acabrunhado pelos remorsos, o jovem assistiu impávido à partida da sua amada para o Velho Continente.
   A separação foi, contudo, temporária. Impelida pelos fortes sentimentos que ainda nutria por Peter, Gwen regressou poucos meses depois a Nova Iorque, com o casal a logo reatar o namoro.
   De acordo com Stan Lee -  que até então escrevera todas as histórias envolvendo Gwen Stacy -, ele e os seus colaboradores sempre tiveram em mente fazer da personagem o principal interesse romântico de Peter Parker. Mas, fizessem o que fizessem, Mary Jane parecia sempre mais interessante...
    Importa ainda acrescentar que, até ao momento, foram duas as atrizes a encarnar Gwen Stacy no cinema: Bryce Dallas (Spider-Man 3) e Emma Stone (The Amazing Spider-Man 1 e 2). Contudo, apenas a segunda  protagonizou uma adaptação da história original (vide segmento Repercussões).

*/**Perfis disponíveis em http://bdmarveldc.blogspot.pt/2011/09/eternos-stan-lee.html http://bdmarveldc.blogspot.pt/2012/03/eternos-steve-ditko.html

A morte de um anjo deixa sempre o mundo mais sombrio.
 
Conceção e desenvolvimento: Antes de selarem o destino de Gwen Stacy, Gerry Conway (ver texto anterior), Roy Thomas e John Romita, Sr. consultaram Stan Lee. Em entrevista concedida em 2011, o criador da namorada de Peter Parker recordou como tudo se passou: "Lembro-me que estava a preparar-me para uma viagem de negócios à Europa. Olhando para trás, julgo que não estaria a raciocinar com clareza porque quando os três estarolas me comunicaram a sua intenção de matar Gwen Stacy, eu não vi motivos para contrariá-los. Tudo o que eu queria naquele momento era enxotá-los para fora do meu escritório, para poder continuar a arrumar em paz a minha bagagem. Quando regressei a Nova Iorque e tomei conhecimento da morte de Gwen Stacy, interroguei-me por que raio é que eles o teriam feito? Nem queria acreditar que Gerry Conway tinha escrito algo assim. Tive de ser lembrado do aval que lhe dera durante a conversa no meu escritório antes de viajar."
   Dez anos antes destas declarações do desmemoriado Papa da Marvel, Gerry Conway apresentara a sua versão dos factos em The 100 Greatest Marvels of All Time: " Peter e Gwen  formavam o casal perfeito. Mas levar o relacionamento de ambos ao próximo nível (casamento ou, pelo menos, a revelação da vida dupla de Peter) seria trair tudo o que  o Homem-Aranha representa: tragédia pessoal e uma vida cheia de angústia. Eliminar Gwen Stacy permitiu, por assim dizer, matar dois coelhos com uma cajadada: pôr fim ao conto de fadas dos pombinhos e reforçar o elemento trágico que, na minha opinião, é a força motriz do Homem-Aranha".


Peter Parker: uma vida ensombrada pela tragédia.

   Embora o enredo escrito por Gerry Conway localizasse a tragédia na ponte George Washington, a que surge desenhada em The Amazing Spider-Man nº121 é a ponte de Brooklyn. Inconsistência que deu azo a conjeturas, mas que foi assim explicada por Stan Lee: "Fiz asneira. O artista desenhou a ponte do Brooklyn e eu, como editor, identifiquei-a como sendo a George Washington. Mas o erro seria emendado em futuras republicações da história."
  Na narrativa original, a sequência da morte de Gwen Stacy incluía a onomatopeia "snap" estrategicamente colocada  junto à cabeça da rapariga no painel em que o Homem-Aranha a apanhava com a sua teia. Em republicações vindouras, esse efeito sonoro seria, contudo, removido. Sobrevindo daí as dúvidas de muitos leitores quanto às reais causas da morte de Gwen. Com o intuito de as dissipar, Roy Thomas publicou a seguinte nota na secção de cartas de The Amazing Spider-Man nº125 (outubro de 1973): "É com enorme pesar que confirmamos que Gwen Stacy morreu em resultado do efeito de chicote provocado pela teia do Homem-Aranha. Era impossível ele tê-la salvado. Nunca a alcançaria a tempo se tivesse optado por saltar para apanhá-la no ar, a ação que tomou resultou na morte da rapariga e, mesmo que não tivesse feito nada, ela acabaria por não resistir a uma queda de tão grande altura. Não havia nada a fazer."
   Tese ratificada pelo professor de Física (e colecionador de comics) James Kakalios, no seu livro The Physichs of Superheroes (A Física dos Super-Heróis): "No mundo real, o efeito de chicote causado pela teia do Homem-Aranha quebraria o pescoço de Gwen como se de um galho seco se tratasse."


A sequência original da morte de Gwen Stacy.
     

Enredo: Amnésico, Norman Osborn esquece o seu alter ego de Duende Verde e também o facto de Peter Parker e o Homem-Aranha serem a mesma pessoa. Transtornado com a descoberta de que o seu filho, Harry, é um viciado em drogas, o empresário sequestra-o na mansão familiar para o submeter a uma desintoxicação radical.
   Aliada às severas pressões financeiras, a mágoa decorrente da condição do filho desencadeia o colapso emocional de Norman. Donde resulta a reemergência da sua persona maligna e de todas as memórias reprimidas. Voltando, assim, Peter Parker e os seus entes queridos a ficarem na mira do Duende Verde.
   Gwen Stacy, namorada de Peter e amiga de Harry, é raptada pelo Duende Verde. O vilão usa a rapariga como isco para atrair o Homem-Aranha até um dos pilares da ponte George Washington.
  Segue-se uma violenta refrega entre os dois inimigos jurados, que culmina com o Duende Verde a atirar Gwen do alto da estrutura. Agindo instintivamente, o Homem-Aranha dispara uma das suas teias para tentar suster a queda desamparada da jovem para as águas turvas do rio Hudson. A teia adere ao tornozelo de Gwen, deixando-a a baloiçar no ar. Convencido de que tinha salvado a vida da sua amada, o herói fica em choque quando, ao içá-la, percebe que ela está morta.
   Mesmo sem saber ao certo se fora o efeito de chicote causado pela sua teia a quebrar o pescoço da rapariga, ou se ela já estaria morta quando o Duende Verde a deixou cair, o Homem-Aranha recrimina-se pela tragédia.
   Tolhido por uma dor indizível, o herói chora sobre o corpo inerte de Gwen, enquanto o Duende Verde voa para longe dali. Mesmo à distância, porém, o vilão consegue ouvir as juras de vingança proferidas pelo Escalador de Paredes.

Angústia e desejo de vingança toldaram o espírito do herói.

  Na segunda parte da história, o Homem-Aranha persegue o Duende Verde até a um armazém devoluto e espanca-o com violência. Impede-se, contudo, de tirar a vida ao seu adversário. Aproveitando a hesitação do herói, o Duende Verde aciona remotamente o seu planador com a intenção de usá-lo para trespassar o herói pelas costas. Alertado pelo seu sentido de aranha, o Escalador de Paredes consegue esquivar-se do ataque, acabando o vilão empalado pelo próprio aparato.
   Com a aparente morte do Duende Verde, Peter Parker procura retomar a sua vida, apesar do enorme vazio que a preenche. No regresso a casa após mais um dia de aulas, tem à sua espera Mary Jane Watson, igualmente destroçada pela perda da sua melhor amiga. Unidos no luto, os dois procuram consolar-se mutuamente. Mas ambos sentem nos ossos que nada voltará a ser como dantes.

O feitiço virou-se contra o feiticeiro e o Duende Verde pagou pelos seus crimes.


Peter e Mary Jane (re)unidos pela tragédia.

Repercussões:

* A morte de Gwen Stacy deixou a comunidade de fãs do Escalador de Paredes em choque. Até pouco tempo antes da sua publicação, seria impensável que algo tão trágico pudesse suceder com uma personagem de tamanha relevância. Importa ressaltar que, por norma, os heróis não costumavam falhar tão miseravelmente, a menos que isso fizesse parte da sua origem. Razão que leva muitos especialistas a referenciarem esta história como aquela que assinalou o fim da chamada Idade da Prata, e o consequente advento da Idade do Bronze (trazendo consigo um registo mais sombrio aos comics);
*Gwen Stacy deu o nome a uma síndrome patenteada pelo Comics Buyer's Guide, e que serve ainda hoje para designar a tendência recorrente de dar fins trágicos aos interesses românticos dos super-heróis. Alguns exemplos célebres: Elektra Natchios (ex-namorada de Matt Murdock/Demolidor), Betty Ross (ex-esposa de Bruce Banner/Hulk) e Jean Grey (ex-esposa de Scott Summers/Ciclope);
* Numa votação promovida em 2001 pela Marvel, a fim de elaborar a lista das cem melhores histórias da editora, Spider-Man nº121 e nº122, quedaram-se, respetivamente, nos 6º e 19º lugares;
* Em julho de 2013, a escritora norte-americana Sarah Bruni deu à estampa o seu romance de estreia, intitulado precisamente The Night Gwen Stacy Died. A narrativa tem como protagonistas um casal que  se refere a si mesmo como Peter Parker e Gwen Stacy;

O romance homónimo de Sarah Bruni.

* Durante a Guerra Civil, tanto o Capitão América como o Homem de Ferro citaram a morte de Gwen Stacy como argumento para as suas posições díspares relativamente à Lei do Registo de Superseres (LRS). Enquanto o primeiro sustentava que tal só acontecera em virtude do Duende Verde conhecer a verdadeira identidade do Homem-Aranha (a LRS requeria que todos os heróis revelassem as suas identidades civis), o segundo contrapunha que, na origem da tragédia, estivera a falta de treino do Escalador de Paredes (o qual seria doravante ministrado a todos os heróis registados);
* Repleta de liberdades poéticas, a primeira adaptação de The Night Gwen Stacy Died ao grande ecrã foi feita em 2002. Em Spider-Man, Mary Jane Watson fez as vezes de Gwen Stacy. No entanto, ao contrário da sua malograda antecessora no coração de Peter Parker, a fogosa ruiva acabaria salva pelo herói aracnídeo de uma queda fatal no rio Hudson. Já a subsequente morte do Duende Verde foi coreografada no filme de uma forma muito similar à da história original;
* Igualmente com diversas nuances, a imolação de Gwen Stacy foi retratada em The Amazing Spider-Man 2 (2014). Com a principal diferença a residir no cenário escolhido: nesta versão, o Duende Verde preferiu a torre de um relógio à icónica ponte George Washington para lançar a jovem para a morte. Numa sequência muito semelhante à da banda desenhada, ao tentar salvar a sua amada, o Homem-Aranha acaba acidentalmente por matá-la;

Emma Stone como Gwen Stacy em The Amazing Spider-Man 2 (2014).

Realidade alternativa: Numa história não-canónica publicada em What If nº24 (dezembro de 1980), o Homem-Aranha consegue salvar Gwen Stacy do seu destino fatídico, saltando e amparando com o corpo a queda da rapariga do alto da ponte George Washington, em vez de tentar sustê-la em pleno ar
com a sua teia. Estratégia idêntica àquela que o herói utilizaria para salvar Mary Jane no filme Spider-Man (2002).
   No seguimento desse resgate bem-sucedido, Peter Parker pede Gwen em casamento, depois de lhe revelar a sua identidade secreta. Paralelamente, Norman Osborn sucumbe uma vez mais ao seu lado insano após o seu filho, Harry, ter saído de casa receando pela própria vida.
   Apesar do amor incondicional que nutrem um pelo outro, o destino de Peter e Gwen é tudo menos risonho. Para garantir a sua vitória final, o Duende Verde envia a J. Jonah Jamenson provas relacionadas com a verdadeira identidade do Homem-Aranha. Sem pensar duas vezes, o diretor do Clarim Diário publica o material. Usando-o, de seguida, para obter um mandado de captura para Peter Parker. Circunstância que obriga o jovem a fugir à polícia meros instantes depois de ter trocado alianças com Gwen.
  Com Peter em paradeiro incerto, a história termina com uma desolada Gwen a acolher a promessa feita por Joe Robertson (editor do Clarim Diário) de tudo fazer para ajudá-la a encontrar o marido.

Capa de What If? nº24 (história publicada no Brasil em Homem-Aranha nº10, da Abril).


Edições em Português

   No Brasil, o arco de histórias apresentando a morte de Gwen Stacy teve, no decorrer dos anos, direito a várias republicações sob os auspícios de diferentes editoras. Aqui fica uma retrospetiva das mesmas:

* O Homem-Aranha nº54 (Ebal, setembro de 1973);
* Homem-Aranha nº18 (RGE, junho de 1980);
* Marvel Especial nº2 (Abril, dezembro de 1986);
* A Teia do Aranha nº61 (agosto de 1991);
* Os Maiores Clássicos do Homem-Aranha nº3 (Panini, novembro de 2004);
* Homem-Aranha: Grandes Desafios (Panini, junho de 2007);
* Coleção Histórica Marvel: Homem-Aranha nº1 (Panini, setembro de 2013)


Homem-Aranha nº18 (RGE, junho de 1980).


A Teia do Aranha nº23 (Abril, agosto de 1991).
Coleção Histórica Marvel: O Homem-Aranha nº1 (Panini, setembro de 2013).

Vale a pena ler?

   Sim, mil vezes sim! Vale a pena ler e reler esta que é uma das mais notáveis histórias do Escalador de Paredes e, convenhamos, da Marvel.
    A par do assassinato do tio Ben, a morte de Gwen Stacy foi o episódio mais marcante na vida de Peter Parker. Tragédias que esculpiram o caráter do herói e que influenciaram para sempre o seu destino. Num caso como no outro, nunca saberemos em que tipo de homem Peter se teria transformado se qualquer um desses seus entes queridos tivesse sobrevivido.
    Aqui entre nós, a relação de Peter com Gwen Stacy sempre foi uma das minhas favoritas. Como devem imaginar, emocionei-me com a morte prematura daquela que considero ter sido o grande amor da vida de Peter Parker. Que me perdoem, pois, os fãs de Mary Jane Watson mas, da forma como vejo as coisas, esse monumento vivo à lascívia e à frivolidade jamais poderia dar uma boa esposa. Mais: não tivesse sido Gwen tirada de cena, e a MJ restaria assistir de camarote à felicidade amorosa do casal.
  Inteligente, generosa e - perdoem-me a expressão - linda de morrer, Gwen era um anjo de graciosidade e uma namorada modelar que sempre demonstrou ser uma influência positiva na vida de Peter. Ela tê-lo-ia certamente inspirado a cometer proezas ainda maiores do que aquelas que ele logrou alcançar. Tanto mais que, em variadíssimas ocasiões, ficou bem patente a profunda devoção que a rapariga tinha por Peter. Com uma mulher dessas ao lado, o céu é o limite para qualquer homem.
   Não fosse, pois, pelos cruéis desígnios editoriais, o casal estaria fadado a viver um daqueles amores capazes de fazer suspirar as almas românticas. Haverá, portanto, tragédia maior do que ver a pessoa com quem imaginávamos passar o resto da vida ser-nos arrancada num abrir e fechar de olhos?
    Essa é, de resto, a grande lição a tirar da morte de Gwen Stacy: estimem as pessoas que amam, expressem-lhes o vosso afeto e apreço antes que seja tarde demais. Lembrem-se que a vida é uma vela acesa ao vento...

   
Não há amor como o primeiro...