07 janeiro 2021

ETERNOS: SY BARRY (1928 - ...)

Sy  Barry é uma lenda vida da 9ª Arte, uma inspiração para artistas de diferentes gerações e um dos últimos detentores da memória descritiva da Idade de Ouro dos comics. No decurso da sua vetusta carreira, produziu mais de 11 mil tiras do Fantasma lidas diariamente por milhões de pessoas nos quatro cantos do mundo. Parceiro criativo de Lee Falk, inúmeras histórias por ele ilustradas converteram-se em clássicos e ainda hoje são reimpressas. Em 1994, deixou um sentimento de orfandade nos fãs do Espírito-Que-anda ao abandonar a personagem a quem emprestara o traço durante mais de três décadas. 

Mesmo após tanto tempo, a sua popularidade segue em alta e a sua obra continua a ser reverenciada. Em 2005, foi galardoado com um Inkpot Award, prémio que anualmente distingue as personalidades mais influentes da cultura popular. Para os leitores mais recentes, porém, não passa de um ilustre desconhecido. Importa, por isso, dar a conhecer um pouco melhor o homem que, tal como o Espírito-Que-Anda, nasceu predestinado à imortalidade. 

Seymour "Sy" Barry veio ao mundo a 12 de março de 1928 em Nova Iorque, cidade onde passou praticamente toda a vida e onde continua a residir. Irmão mais novo de Dan Barry, artista consagrado pelo trabalho desenvolvido nas tiras diárias de Flash Gordon na década de 1950, o pequeno Sy tinha no lápis uma espécie de extensão da sua mão direita. Tanto assim que afirma não guardar memória de uma ocasião em que não estivesse a rabiscar um esboço. Com efeito, foi ainda nos tempos de meninice que o seu talento atraiu as primeiras atenções e louvores.

Quando várias escolas primárias da Grande Maçã organizaram um concurso artístico, Sy resolveu submeter um dos seus desenhos à apreciação do júri. O desenho em questão não só arrebatou o primeiro prémio como teve o privilégio de ficar em exposição, durante largas semanas, no Museu de Arte de Nova Iorque. 

No liceu, o talento inato de Sy também não passou despercebido. Um dos seus professores incentivou-o a tentar a admissão na School of Industrial Art de Nova Iorque. Sy tentou a sua sorte e fez parte do restrito lote de eleitos entre milhares de candidatos rejeitados. Corria o ano da graça de 1943 e foi nessa mui prestigiada instituição que Sy cunhou amizade para a vida com outros artistas com pedigree, como Joe Giella, Al Scaduto ou Emilio Squeglio. Representantes, todos eles, da ínclita geração de arquitetos e obreiros da Idade de Prata.

Concluídos os estudos, Sy empreendeu a sua carreira profissional como freelancer da Famous Funnies, aquela que muitos historiadores da cultura popular identificam como a primeira revista americana de banda desenhada. Nos anos imediatos, faria praticamente o pleno das principais editoras da época: Lev Gleason, Hillman Publications, Timely Comics e National Comics (estas últimas, antepassadas da Marvel e da DC, respetivamente). 

Famous Funnies acolheu os primeiros trabalhos profissionais de Sy Barry.

Em virtude dos modestos salários praticados pelas editoras, Sy, seguindo o exemplo de tantos outros oficiais do mesmo ofício, apostou na diversificação do seu portfólio. Nesse sentido, ao seu significativo aporte para o desenvolvimento da indústria dos comics somou colaborações em obras de literatura infantil e panfletos publicitários. Durante essa fase inicial da sua carreira, teve o privilégio de trabalhar com outros futuros mestres da Arte Sequencial, como Alex Toth (criador de Space Ghost), Frank Giacola (arte-finalista de Jack Kirby) ou André LeBlanc (seu futuro assistente nas tiras do Fantasma). Relações profissionais invariavelmente pautadas pela admiração mútua e que, não raro, estiveram na origem de boas amizades. 

Pouco tempo depois, Sy passaria a arte-finalizar os esboços do seu irmão nas tiras de Flash Gordon. Ainda que não tenha sido devidamente creditado, chegou mesmo a desenhar algumas histórias enquanto Dan esteve ausente na Europa. Cada vez mais requisitado, assumiu também a arte das tiras diárias do Super-Homem e do Batman, bem como de títulos emblemáticos como Action Comics (onde, em 1938, o Homem de Aço fizera a sua estreia). De histórias românticas a contos policiais, foram vários os géneros pelos quais transitou ao longo dessa sua primeira fase seminal.

Tira dominical colorida de Flash Gordon produzida pelos irmãos Dan e Sy Barry.


Em 1957, quando os afroamericanos ensaiavam os primeiros passos na sua tortuosa marcha pelos direitos civis, Sy Barry foi o artista escolhido para desenhar Martin Luther King and the Montgomery Story. Uma banda desenhada que era, simultaneamente, um manifesto político e um guia para ações de desobediência civil. Além de revisitar o boicote aos autocarros organizado, entre 1955 e 1956, pela população negra da cidade de Montgomery (Alabama) em protesto contra as leis segregacionistas, a obra incluía também uma pequena biografia de Martin Luther King. Com uma tiragem de 375 mil exemplares (um terço dos quais em espanhol), a revista foi distribuída em escolas e congregações frequentadas por afroamericanos e foi instrumento essencial para a propagação do evangelho igualitário do reverendo idealista que sonhava com uma sociedade pós-racial. Anos mais tarde, Sy declarou que esse trabalho serviu para aperfeiçoar a sua habilidade de desenhar negros, que tão útil lhe seria nas histórias do Fantasma.

A obra que associou o nome de Sy Barry à luta pelos direitos civis.

Apesar de a assinatura de Sy Barry figurar na capa da primeira edição de Martin Luther King and the Montgomery Story, em edições posteriores ela seria coberta por uma caixa de texto. Em razão disso, a identidade do desenhador foi, durante muito tempo, objeto de controvérsia e especulação. Até que, em 2008, Sy Barry confirmou ser ele - e não o irmão, como alguns suspeitavam - o legítimo dono do traço. Em 2018, um dos painéis da obra seria incluído na lista das cem páginas mais marcantes da história da banda desenhada divulgada pela revista Vulture

Sempre sob a asa do seu irmão mais velho, Sy logo passaria também a assisti-lo na tira de Tarzan. Apesar de enternecedora e profícua, a parceria entre os manos Barry tinha os dias contados. 

Quando, em 1961, Wilson McCoy sucumbiu a um fulminante ataque cardíaco, a King Features Syndicate apressou-se a encontrar novo artista para as tiras do Fantasma. A escolha inicial incidiu sobre Bill Lignate, mas o seu traço desagradava a Lee Falk. Cedendo às pressões do criador do Espírito-Que-Anda, a King Features despachou Lignate e lançou um concurso para escolher o sucessor de McCoy. Sy inscreveu-se e foi o escolhido para ilustrar aquela que era então a tira mais popular a nível global. 

Iniciava-se, assim, uma ligação de 33 anos, que faria de Sy Barry o recordista de longevidade nas histórias do Fantasma. Nenhum outro artista lhe emprestou o traço durante tanto tempo. E nenhum teve tanta influência na evolução da personagem.

Desde o início, Sy teve como principal preocupação a modernização da tira, que começava a acusar algum anquilosamento. Nesse sentido, persuadiu Lee Falk a modificar alguns elementos anacrónicos presentes no imaginário do Fantasma. No que pode ser percecionado como uma prefiguração da África pós-colonial, Bangalla (agora uma nação soberana) ganhou um presidente negro (Lamanda Luaga) e a Patrulha da Selva deixou de ter um comandante branco (o tradicional coronel Weeks foi rendido no posto pelo coronel Worubu). Apenas dois das dezenas de novos coadjuvantes que, no rolar das décadas, Sy Barry ajudaria a criar, enriquecendo ainda mais a mitologia do Espírito-Que-Anda.

Lamanda Luaga, o primeiro presidente negro de Bangalla.

Tal como os leitores, Lee Falk depressa ficou rendido ao trabalho de Sy Barry. Os seus traços sofisticados evidenciavam interpretações simplificadas e eram uma síntese harmoniosa das refinadas técnicas de Wilson McCoy com o estilo elegante do próprio Sy em Flash Gordon. Com o passar do tempo, este último acabaria por prevalecer, embora em permanente evolução. Sy chegou mesmo a utilizar referências fotográficas retiradas da revista National Geographic para imprimir um toque de maior realismo às paisagens da selva. Que, no entanto, deixou ser o único habitat do Espírito-Que-Anda.

Sob o traço de Sy Barry, a tira do Fantasma ganhou novo fôlego.

Retirar com maior frequência o Fantasma da Floresta Negra transplantando-o para a selva de betão foi outra das inovações introduzidas por Sy Barry. O seu contributo foi igualmente decisivo para o estabelecimento do visual definitivo do herói. Em 1972, essa modernização plástica traduziu-se num novo modelo de máscara que se tornou icónico: mais pequena e no formato de dois triângulos invertidos verticalmente. 

Dono de um traço expressivo e dinâmico, o estilo de Sy Barry possuía outros pontos de interesse. O intrincado sombreado da misteriosa presença do Fantasma ao fundo dos painéis ou a aglomeração imaginária de crânios flutuantes são alguns dos exemplos mais memoráveis. Quando o Espírito-Que-Anda visitava ruínas, cada folha, pedra ou sombra era meticulosamente desenhada até ao mais ínfimo pormenor. De igual modo, as simplificadas, porém elegantes, poses do Fantasma de Sy Barry serviram de referência visual a outros artistas. Também Billy Zane se inspirou nelas para a sua interpretação do herói na longa-metragem epónima de 1996.



Sy Barry é considerado o artista definitivo do Fantasma.

No auge da sua popularidade, por volta de 1966, as tiras do Fantasma, publicadas em jornais e revistas,  eram lidas diariamente por mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Muitas dessas histórias são ainda incluídas em volumes antológicos editados em países como Índia, Suécia ou Austrália. Pela mão de Sy Barry, o Espírito-Que-Anda tornou-se um fenómeno global. 

Apesar de ter sido sob o incansável lápis de Sy Barry que o Fantasma viveu os seus anos de maior esplendor, a verdade é que muitas dessas histórias foram na verdade desenhadas por um contingente de "artistas-fantasmas". Neal Adams, Fred Fredricks, André LeBlanc e George Olensen (o mais frequente) foram alguns dos desenhistas cujos esboços foram finalizados por Sy. Era ela no entanto quem definia os cenários, as angulações e demais elementos necessários para a execução gráfica da narrativa. Foi esse o expediente encontrado por Sy para fazer face aos prazos apertados (apontados, de resto, como a principal razão para a sua algo precoce saída de cena). 

Interessado em abraçar novos projetos e em passar mais tempo na companhia da família e amigos, Sy Barry abandonou a tira do Fantasma em 1994. Atualmente com 92 anos, desfruta do inverno da vida no remanso de Long Island (Nova Iorque) na companhia da esposa, ocupando a maior parte do seu tempo a aperfeiçoar as suas técnicas de pintura. Especializou-se em desenhar retratos e paisagens misturando óleo, acrílico e aguarelas. Mas o Fantasma paira ainda sobre os seus dias. 

Nos últimos anos, foram vários os esboços de Sy que serviram de capa a edições do Fantasma publicadas em diferentes pontos do globo. Foi o caso, por exemplo, da capa do número inaugural de The Phantom: Ghost Who Walks, série mensal lançada em março de 2009 pela Moonstone.

Sy Barry assinou uma das capas de The Phantom: Ghost Who Walks #1.

Sy conserva também gratas memórias dos seus encontros com fãs. Em 2001, durante a sua digressão pela Escandinávia (onde o Fantasma é um totem da cultura popular), foi recebido como uma estrela de rock. Sempre humilde e afável, apesar do seu estatuto de aristocrata da 9ª Arte, Sy retribui o carinho dos seus admiradores marcando presença em jantares e convenções anuais, onde tem por hábito presenteá-los com desenhos a lápis da sua autoria. Verdadeiros tesouros sem preço para qualquer amante da banda desenhada.

Revisitar a exuberante obra de Sy Barry, o último dos grandes mestres da Arte Sequencial, é pois um revigorante passeio pelas alamedas da memória com a encantatória presença do Espírito-Que-Anda pressentida a cada passo.

Sy Barry mantém uma relação próxima com os fãs.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.

*Artigos sobre Lee Falk e o filme do Fantasma disponíveis para leitura complementar.