20 setembro 2023

ETERNOS: BOB KANE (1915-1998)

 
  Imortalizou-se como autor único do Batman mantendo o seu parceiro criativo perpetuamente na penumbra. Apesar da sua imensurável importância para a cultura popular, tem o seu legado contestado. Visionário ou charlatão, o criador plástico do Maior Detetive do Mundo é ainda um enigma por resolver.

Desde a sua estreia, já lá vão quase 85 anos, Batman conquistou os corações e as mentes de sucessivas gerações, sendo a sua popularidade transversal a todas elas. Surgido nos anos terminais da Grande Depressão, o Cruzado Encapuzado foi a resposta ao desejo de justiça de todos quantos sofriam com a dor da perda.
Do cinema aos jogos de vídeo, Batman foi adaptado a todos os segmentos culturais, tornando-se um ícone global e uma das franquias mais lucrativas de sempre. Muitos consideram, no entanto, que o maior vilão da história do Cavaleiro das Trevas não é o Joker, tão-pouco Ra's al Ghul, mas sim o seu próprio criador.
Apesar de ter dado ao mundo um dos seus maiores heróis, Bob Kane teve uma relação difícil com a verdade e com a ética. Colecionou polémicas aguerridas e recusou sempre dividir os louros da sua maior criação, tornando-se assim uma das figuras mais incompreendidas da 9ª Arte. Alguns dos seus detratores vão ainda mais longe, colando-lhe o selo pesado de fraude.
Essa perceção negativa relativamente a um dos maiores titãs da indústria dos comics assenta, parcialmente, em equívocos e ideias feitas. Todas as histórias têm dois lados, e esta não foge à regra. Importa, por isso, reexaminar o legado de Bob Kane com a lupa da objetividade. Exatamente como faria o Maior Detetive do Mundo: um delicado exercício de arqueologia forense que permita à História julgar um indivíduo e não a sua caricatura.
Nova-iorquino de gema, Bob Kane nasceu no Bronx a 24 de outubro de 1915, Mas esse não era o seu nome batismal. Primogénito de um casal de imigrantes judeus asquenazes originários da Europa Oriental, na sua certidão de nascimento começou por constar Robert Khan.
O salário do pai, tipógrafo no jornal New York Daily News, proporcionava uma vida confortável à família. Ao contrário de muitas crianças daquela época, Bob teve, por isso, uma infância tranquila e sem privações.
Ainda petiz, Bob descobriu o fascínio pelo desenho e, ao longo de toda a vida, descrever-se-ia como uma rabiscador. Inseparável dos seus lápis de carvão, gostava de desenhar em folhas de papel, panfletos e até em caixas de cereais.
Com apenas dez anos, Bob encontrou a sua vocação profissional: queria ser cartunista. O pai, que conhecia bem a realidade desse ofício, trazia para casa os suplementos dominicais do jornal, para que o filho pudesse decalcar as tiras e outras ilustrações.

Os suplementos dominicais do New York Daily News
levaram Bob Kane a querer ser cartunista.

Sempre encorajado pelos pais, o pequeno Bob continuou afincadamente a aperfeiçoar o seu talento. Sonhava poder, um dia, ganhar a vida a rabiscar. Mal sabia ele que um desses rabiscos o imortalizaria no imaginário popular.
Por vezes, o pai de Bob levava, também, alguns dos desenhos do filho para os cartunistas do jornal avaliarem. Os artistas davam opiniões, dicas e, sobretudo, incentivos. Todos lhe auguravam uma carreira promissora a trabalhar com o lápis.
Mais ainda depois de Bob ter ficado em segundo lugar num campeonato interestadual de desenho. O objetivo da competição era descobrir quem desenhava melhor as tiras Just Kids, da autoria de Gene Byrne. Bob tinha então quinze anos e, pouco tempo depois, começou a vender as suas próprias bandas desenhadas. Uma delas rendeu-lhe os primeiros cinco dólares - quantia apreciável para a época - da imensa fortuna que acumularia ao longo da vida.
Por essa altura já Bob estudava no DeWitt Clinton - o maior liceu dos EUA, famoso pelo seu edifício em forma de H -, onde contraiu estreita amizade com outra futura luminária da 9ª Arte: Will Eisner. Seria, aliás, pela mão do criador de Spirit que Bob daria, anos mais tarde, os primeiros passos na indústria dos comics.
A par do desenho, Bob tinha no cinema outra das suas paixões. Influenciado por ambas, decidiu que queria, afinal, trabalhar no campo da animação. Em 1934, logo após ter concluído o ensino  secundário, Bob foi estagiar para os Estúdios Max Fleischer, que tinham em Betty Boop e Popeye os seus ativos mais valiosos. 

Bob Kane conseguiu o primeiro emprego nos Estúdios Fleischer,
os mesmos que, em 1943, produziram a primeira animação do Super-Homem.

Nos dois anos imediatos, a vida correu-lhe de feição: ao emprego de sonho Bob somou uma bolsa de estudo. Foi graças a ela que pôde estudar Arte na Cooper Union, uma prestigiada universidade privada de Manhattan, conhecida por privilegiar a criatividade dos seus alunos em detrimento da técnica. Ironicamente, Bob Kane ganharia reputação de ser mestre na técnica de se apropriar de ideias de outrem...
Pensando em reforçar a sua imagem como artista, tão-logo atingiu a maioridade Bob contratou um advogado para alterar legalmente o seu nome. O exótico Robert Khan deu assim lugar ao mais familiar Bob Kane. Essa mudança de identidade denota, por outro lado, o pouco apego de Bob à sua herança judaica - de resto, raramente mencionada na sua autobiografia.
Bob Kane ingressou no mundo dos quadradinhos em 1936. Como ilustrador freelancer da Fiction House, ainda nesse ano teve a sua primeira arte publicada, no terceiro número da revista Wow, What a Magazine!. Embora tenha colaborado em outros projetos, o seu maior contributo para a editora de Sheena, a Rainha da Selva foi Hiram Hick, série cómica por ele desenhada e arte-finalizada.

Hiram Hick foi o primeiro trabalho profissional de Bob Kane.

Quando, em 1937, Will Eisner se associou a Jerry Iger para fundar um dos primeiros estúdios que forneciam material às editoras que se aventuravam a publicar histórias aos quadradinhos, Bob Kane aceitou de bom grado o convite do amigo para reforçar a equipa de artistas residentes.
Durante essa fase, o seu trabalho mais notável foi Peter Pupp. Não obstante ser apenas mais uma série protagonizada por animais antropomórficos, destacava-se das demais pelo tom sombrio. Ao serviço da Eisner & Iger, Bob produziu também material para as duas empresas que dariam origem à DC Comics.
Paralelamente a tudo isto, Bob tinha uma vida social muito preenchida. Era habitué em festas, e foi numa delas que conheceu Bill Finger, seu futuro parceiro criativo. Apesar das personalidades contrastantes dos dois jovens (Bob era extrovertido, Bill ensimesmado), unia-os a paixão pelos quadradinhos e pelos filmes.
Finger era, por aqueles dias, um vendedor de sapatos com aspirações literárias, ao passo que Bob era o eterno rabiscador que precisava de alguém que lhe escrevesse as histórias. Os dois tornaram-se amigos e Bob prometeu a Bill um emprego como argumentista. Do casamento criativo de ambos nasceria um dos maiores totens da cultura popular do século XX. Mas, também, uma controvérsia que ainda hoje faz correr rios de prosa.

Em Bill Finger Bob Kane encontrou
 o seu parceiro criativo de excelência. Juntos, criariam um ícone global.
Mas apenas um ficaria para a História

Em 1939, o editor-chefe da National Comics Publications, Vincent Sullivan, procurava uma nova personagem capaz de reproduzir o grandioso sucesso comercial alcançado pelo Super-Homem no ano anterior. Bob Kane chamou a si a difícil missão de, durante um fim de semana, criar outro justiceiro fantasiado capaz de alavancar as vendas da editora.
Depois de passar a noite acordado a rabiscar freneticamente, Bob criou o Bat-Man (era esta a grafia original), muito diferente, contudo, do Homem-Morcego que todos conhecemos. Em vez do traje cinzento com capa e capuz negros, o Bat-Man vestia de vermelho, usava uma mascarilha e tinha um par de asas rígidas acopladas às costas. Este último elemento estético referenciava o ornitóptero de Leonardo da Vinci. Nesse momento primordial, Bob ponderou crismar a sua criação de Birdman (Homem-Pássaro), mas depois teve uma ideia melhor.
Apesar de os morcegos o deixarem apavorado, Bob era fascinado por eles. O medo que esses animais noctívagos habitualmente despertam nas pessoas inspirou-o a criar uma personagem capaz de intimidar criminosos com a sua silhueta ameaçadora.

O Bat-Man de Bob Kane era muito diferente do Batman que todos conhecemos.

Bob intuiu, porém, que o seu Bat-Man era ainda uma pedra bruta, à espera de ser burilada. Nada melhor, portanto, do que pedir sugestões ao seu amigo Bill Finger - que, entretanto, começara a trabalhar como seu escritor-fantasma.
Influenciado, fundamentalmente, pelo Zorro de Douglas Fairbanks e pelo filme mudo The Bat (1926), Finger reformulou por completo o visual do Batman. De uma penada, transformou-o num detetive científico como Sherlock Holmes, descartando o vigilante alado idealizado por Bob Kane. Finger deu ainda ao Homem-Morcego uma identidade civil e uma cidade para morar - Bruce Wayne e Gotham City, respetivamente.
Sucede que, além de o Batman ser uma espécie de monstro de Frankenstein costurado quase inteiramente a partir de ideias preexistentes, a sua primeira aventura é um despudorado plágio. Publicado em Detective Comics #27, de maio de 1939, O Caso da Sociedade Química, saído da pena de Bill Finger, foi decalcado de Partners of Peril, um conto do Sombra dado ao prelo três anos antes. Ambas as histórias acompanham a investigação motivada pelas misteriosas mortes de poderosas figuras da indústria química.
Ao parecer estético contemporâneo, tal cópia renderia um processo judicial com vitória garantida para os detentores dos direitos do plagiado. Mas, para sorte dos plagiadores, isso nunca aconteceu. Talvez porque, em bom rigor, o Batman foi, depois do Besouro Verde e do Detetive Fantasma, o último espécime de uma série de imitadores do Sombra. 


A primeira história do Batman foi tirada a papel química de um conto do Sombra.

De todo o modo percebe-se o que levou Bob Kane e Bill Finger a lançarem mão de tal subterfúgio: precisavam de uma história que vendesse o Batman. Condicionado na sua criatividade pelo prazo apertado, Finger reescreveu uma história bem-sucedida,  ajustando-a à medida do seu novo protagonista. Nem Bob nem Bill, parceiros neste crime quase perfeito, alguma vez negaram o plágio - que, por sinal, não foi caso único no percurso editorial do Cavaleiro das Trevas.
Com efeito, também a origem do Batman, revelada em Detective Comics #33 (novembro de 1939), teve muitos dos quadros e painéis retirados do livro infantil Junior G-Men, ilustrado por Henry Vallely. Até o morcego que entra repentinamente pela janela da mansão Wayne imita uma cena de Popular Detective #2 (dezembro de 1934). Por sua vez, a imagem de encerramento foi decalcada de um desenho de Tarzan feito por Hal Foster.
Como se tudo isso não bastasse, o juramento de Bruce Wayne reproduz, quase ipsis verbis, o juramento solene do Fantasma. Enquanto a personagem que Lee Falk idealizou em 1936 jurava, sobre o crânio do assassino do seu pai, dedicar a vida à aniquilação da pirataria, da cobiça e da crueldade em todas as suas formas, Batman jurava vingar a morte dos pais dedicando o resto da vida a combater o crime.
Como se sabe, nada disto impediu que o Batman se tornasse a nova mina de ouro da DC, passando inclusivamente a disputar ao Super-Homem o estatuto de figura de proa da editora. Menos de um ano volvido sobre a sua estreia em Detective Comics, o Cruzado Encapuzado ganhou revista própria e um ajudante adolescente. Robin, o Menino Prodígio, serviu para expandir a audiência das histórias do Batman, cativando as crianças que não se identificavam com o taciturno guardião de Gotham City.

Depois do Super-Homem, Batman foi o segundo super-herói a ter a sua própria revista.
Robin ajudou-o a caçar bandidos e a prender leitores de palmo e meio.

Animado pelo crescente sucesso da sua personagem, Bob Kane foi um dos raríssimos profissionais dos quadradinhos a ter a clarividência de, assessorado pelo advogado do pai, negociar um contrato que lhe renderia fama e fortuna. Além de bastante lucrativo, o acordo incluía uma cláusula que o consagrava, a título perpétuo, como autor único do Batman.
Como foi isto possível? A resposta é simples. Bob Kane nunca encarou Bill Finger como um sócio, mas sim como um empregado. Era igualmente essa a perceção da DC, que sempre tivera em Bob o seu único interlocutor em todo o processo negocial. Finger, ademais, preferiu ficar na penumbra a ter de voltar a vender sapatos para ganhar a vida.
Assim sendo, quando a DC começou a requisitar mais histórias do Batman do que Kane conseguia desenhar, a solução passou pela contratação de artistas fantasmas. A partir de um estúdio instalado no edifício do New York Times, Dick Sprang, George Roussos, Jerry Robinson e tantos outros emprestavam secretamente o seu traço ao Homem-Morcego. Nenhum deles foi no entanto alguma vez creditado, levando os leitores a acreditar ser Bob Kane a única pessoa por detrás do seu herói favorito.
A partir de 1943, Bob Kane passou a dedicar-se por inteiro às tiras do Batman. Apesar disso, era a sua assinatura estilizada que continuava a surgir em todas as histórias do Cruzado Encapuzado publicadas nas revistas da DC. Situação impensável nos dias que correm, mas importa lembrar que, naquela época, as regras era muito diferentes. Direitos de autor e vínculos contratuais eram conceitos estranhos numa indústria dominada por gente pouco recomendável. A própria DC, por exemplo, foi fundada por ex-contrabandistas de álcool durante a Lei Seca...
Acresce ainda o facto de que, para todos os efeitos, os artistas fantasmas de Bob Kane eram seus funcionários. Em razão dessa circunstância, Kane pôde continuar a colher todos os louros, ao ponto de se tornar quase tão famoso como o próprio Batman.
A ética profissional de Bob Kane voltaria, entretanto, a ser colocada em xeque num episódio que envolveu os criadores do Super-Homem. Na viragem da década de 40, quando Jerry Siegel e Joe Shuster resolveram processar a DC na esperança de recuperarem os direitos da sua personagem, convidaram Kane a juntar-se a eles. Em vez disso, ele usou essa informação para renegociar o seu próprio contrato com a Editora das Lendas.
Perante a renitência da DC em aceitar os novos termos, Bob Kane alegou ter assinado o contrato original quando ainda era menor de idade. Apesar de se tratar de uma absoluta falsidade (em 1939 Kane tinha 24 anos), contou com a cumplicidade dos pais e com o misterioso sumiço da sua certidão de nascimento para lograr os seus intentos.
Ainda hoje considerado um dos melhores contratos do setor, o novo acordo celebrado por Bob Kane garantia-lhe direitos de revisão e uma melhor percentagem dos lucros decorrentes do licenciamento do Batman. Foi graças a esta audaciosa jogada que, nas décadas seguintes, Kane acumulou uma fortuna estimada em dez milhões de dólares.

Uma modelo fantasiada de Mulher-Gato posa para Bob Kane.
Para o mundo, ele era o único criador do Batman.

A pantomima perdurou até 1965, quando Bill Finger, na qualidade de orador convidado numa das primeiras convenções de quadradinhos, revelou publicamente as suas múltiplas contribuições para a conceção do Batman e respetiva mitologia. Bob Kane, que até aí tinha tido por hábito resguardar-se das críticas sob um manto de fleuma, reagiu com inesperada violência.
Numa carta aberta com várias páginas, reafirmou ser ele o único criador do Batman e, carregando nas tintas, acusou Bill Finger de mentir. Mas nada seria como dantes. Nos bastidores editoriais, a surdina foi ficando cada vez mais ruidosa, com muitos profissionais dos quadradinhos a corroborarem as palavras de Finger.
Quando a polémica estalou, já Bob Kane tinha trocado, há vários anos, Nova Iorque por Los Angeles, e os quadradinhos pela televisão. Em 1965, aceitara colaborar com a série em ação real do Batman. Apesar de se tratar de um programa cómico, Kane apreciava genuinamente o formato porque sempre considerou ridículo o conceito de super-herói.
Na Cidade dos Anjos, Bob Kane conseguiu realizar também o sue velho sonho de criar um desenho animado. Courageous Cat and Minute Mouse - um gato e um rato antropomórficos que, juntos, combatiam  o crime - parodiavam as aventuras do Duo Dinâmico. À boleia do sucesso desse seu primeiro projeto televisivo, Kane criou outra série animada intitulada Cool McCool, a qual acompanhava as trapalhadas de um agente secreto inepto.
Bon vivant, Kane apreciava os prazeres mundanos e a companhia de celebridades, como Sammy Davis Jr. ou Muhammad Ali. Sentia-se como peixe na água nas glamorosas festas de Hollywood e não parecia sentir saudades de Nova Iorque ou da sua vida anterior.

Entre 1960 e 1962, foram para o ar 130 episódios de Courageous Cat and Minute Mouse,
 paródias de Batman e Robin.

A partir do final da década de 60, quando a DC reviu por fim a sua linha editorial, creditando os verdadeiros artistas das histórias do Batman, Bob Kane passou a ser apenas discretamente mencionado como criador da personagem,
Mercê desse novo status quo, Bob Kane atravessou a década seguinte em relativo ostracismo. Dedicando-se agora às Belas Artes, expunha os seus quadros em galerias e museus da Costa Oeste. Apesar de visualmente apelativas, parte dessas obras foram na verdade pintadas por artistas fantasmas. Por causa disso, alguns dos críticos que escrutinaram o trabalho de Kane não hesitaram em expô-lo como charlatão.
A reputação de Bob Kane foi ainda mais beliscada pela morte de Bill Finger na mais abjeta pobreza. Acusado de ter negligenciado o amigo e parceiro criativo, Kane, então com 59 anos, antecipou a reforma e saiu de cena. Mas nem por isso caiu nos alçapões da História para onde atirou tantos dos que com ele colaboraram.
Bob Kane voltou a atrair os holofotes mediáticos em 1989. No ano em que se celebrava o cinquentenário do Cruzado Encapuzado, Kane lançou (com a ajuda, está bem de ver, de um escritor fantasma) a sua autobiografia sugestivamente intitulada Batman and Me. Numa das entrevistas em que se desdobrou para promover a obra, teve um rebate de consciência e reconheceu, urbi et orbi, a tremenda injustiça a que sujeitara Bill Finger. Um pequeno atro de contrição que os mais cínicos interpretaram como um golpe de marketing.

Em 1989, Bob Kane lançou o primeiro volume da sua autobiografia.
O segundo, intitulado Batman and Me - The Saga Continues, seria lançado em 1996.

Ainda em 1989, Bob Kane colaborou como consultor no filme Batman, de Tim Burton. Problemas de saúde impediram-no de fazer a pequena participação prevista na película, mas é da sua autoria o desenho do morcego gigante que o cartunista do Gotham Gazette mostra a Alexander Knox. 
Reabilitado perante os seus pares, nos últimos anos de vida Bob Kane foi por eles cumulado de honrarias. Depois de ter sido introduzido no Jack Kirby Hall of Fame em 1994, dois anos mais tarde passou a figurar também no Will Eisner Comic Book Hall of Fame.
Bob Kane faleceu, de causas naturais, no dia 3 de novembro de 1998, menos de um mês depois de ter completado 83 anos. Foi sepultado num cemitério de Hollywood Hills e a sua lápide perpetua-o como autor único do Batman. 
Visionário aos olhos de alguns, charlatão aos olhos de muitos, Bob Kane continua a ser uma figura controversa. Não por acaso, o único vilão do Batman que ele comprovadamente criou sozinho foi o Duas-Caras. Dificilmente haverá  melhor alegoria para a ambiguidade moral daquele que, mesmo com o legado maculado pelo oportunismo e falta de escrúpulos, foi um dos maiores vultos da 9ª Arte.

Na lápide de Bob Kane pode ler-se que Batman foi uma criação da "mão de Deus".
Onde foi que já ouvimos isto?



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Textos sobre Bill Finger, Jerry Robinson, Dick Sprang, Joker e Robin disponíveis para leitura complementar.






  



 













 











.




.


 














23 junho 2023

HERÓIS EM AÇÃO: DOUTOR ESTRANHO


  Antes de perder tudo num golpe do destino, Stephen Strange somava fama, fortuna e soberba. O seu doloroso despertar interior começou no fundo do poço e culminou no topo do mundo. No místico Tibete, fronteira entre os mundos físico e espiritual, estudou as artes arcanas e, como Feiticeiro Supremo, encontrou novo propósito de vida.

Denominação original: Doctor Strange
Editora: Marvel Comics
Criadores: Stan Lee & Steve Ditko
Primeira aparição: Strange Tales #110 (abril de 1963)
Identidade civil: Stephen Vincent Strange
Espécie: Humano
Local de nascimento: Filadélfia, Pensilvânia
Parente conhecidos: Eugene e Beverly Strange (pais, falecidos); Victor Strange / Khiron (irmão, presumivelmente falecido); Donna Strange (irmã, falecida); Clea (esposa); Umar e Orini (sogros)
Ocupação: Outrora um dos mais renomados neurocirurgiões do mundo, Stephen Strange desdobra-se atualmente entre as funções de Feiticeiro Supremo, aventureiro e consultor do Oculto.
Base de operações: Sanctum Sanctorum, Greenwich Village (Nova Iorque)
Afiliações: Fundador e líder de facto dos Defensores.
Némesis: Dormammu 
Poderes e parafernália: Após décadas de estudo intensivo das artes místicas, o Doutor Estranho é um dos mais poderosos magos de todo o Multiverso Marvel. Transmutação da matéria, consciência cósmica, projeção astral ou abertura de portais interdimensionais são apenas alguns dos seus truques mais aparatosos. Diz-se ainda que seria capaz de matar um homem com um simples gesticular das mãos e, sozinho, já levou Galactus ao tapete.
Agamotto, Hoggoth e Oshtur, a tríade de divindades extradimensionais conhecidas com os Vishanti, são os principais patronos mágicos do Feiticeiro Supremo. É canalizando a energia virtualmente ilimitada dessas e de outras entidades metafísicas, como os Principados ou a Octossência, que o Doutor Estranho executa um repertório quase infinito de feitiços, encantamentos e sortilégios. Em razão dessa sinergia espiritual, ele é sempre tão poderoso quanto o deus por ele invocado.
Os Vishanti assumem diferentes disfarces porque
 as suas verdadeiras formas seriam incompreensíveis para os humanos.

Algumas dessas entidades são tradicionalmente invocadas para efeitos específicos: Ikonn para projetar ilusões; Serafim para proteção mística; Agamotto para revelar a Verdade; Cyttorak para restringir adversários; Cinnibus para dissipar a escuridão, etc.
Aparentemente, a substância dos reinos místicos é, por vezes, invocada em vez dos seres que os governam. Um bom exemplo é quando o Doutor Estranho manipula as Chamas de Faltine da Dimensão Negra, lar do seu arqui-inimigo Dormammu. Graças a esse subterfúgio, o Feiticeiro Supremo consegue invocar entidades malignas sem ficar à mercê delas. Este não é, no entanto, um exercício isento de perigos.
Seguindo os ensinamentos do seu mestre - o enigmático Ancião -, o Doutor Estranho consegue também executar feitiços menos elaborados manipulando apenas a energia mística ambiente. Com recurso a ela pode, entre muitas outras coisas, lançar rajadas ectoplasmáticas, comunicar telepaticamente ou erguer campos de força.
O Doutor Estranho tem ainda à sua disposição uma panóplia de relíquias e artefactos místicos, na qual pontificam o Olho de Agamotto e o Manto da Levitação.
Assim como o Mjolnir, o Olho de Agamotto só pode ser usado por aqueles que provarem ser dignos. Além de potenciar os talentos psíquicos do Doutor Estranho, a sua luz trespassa todo o engano e é anátema para demónios e outras criaturas funestas.
Existe, ademais, um forte vínculo entre o Olho de Agamotto e o Orbe de Agamotto, outro dos instrumentos místicos ao dispor do Doutor Estranho. Um e outro dotam o seu usuário de clarividência, mas o alcance do segundo é muito superior. Espécie de bola de cristal hiperpoderosa, o Orbe permite a perceção nítida de qualquer lugar em qualquer dimensão ou reino do Multiverso, tendo como principal função monitorizar potenciais ameaças externas à Terra. 

Inspirado no Olho que Tudo Vê de Buda, o Olho de Agamotto
 é autoconsciente e só pode ser usado para magia benigna.

Construído no local de sacrifícios pagãos, o Sanctum Sanctorum, residência e base de operações do Doutor Estranho, é um ponto focal para energias sobrenaturais. Na sua biblioteca repousam centenas de tomos esotéricos, incluindo o Livro de Vishanti. Trata-se do repositório indestrutível de todos os feitiços de Magia Branca e do conhecimento arcano acumulado por diferentes gerações de magos. Stephen Strange tornou-se seu fiel depositário quando, após a morte do Ancião, foi arvorado a Feiticeiro Supremo.
Complementarmente ao estudo das artes místicas, Stephen Strange foi também iniciado pelos monges tibetanos nas artes marciais, que continua a praticar regularmente com Wong. Lutador habilidoso, o seu estilo já foi elogiado pelo próprio Mestre do Kung Fu. O Doutor Estranho exibe igualmente notável destreza no manuseamento de espadas, lanças e outras armas magicamente criadas por ele.
Seja a batalha física ou espiritual, o Doutor Estranho será sempre um formidável guerreiro do Bem contra o Mal.

Fraquezas: A despeito do incomensurável poder subjacente à sua condição de Feiticeiro Supremo, Stephen Strange ainda é apenas um homem. Desse fator humano decorrem tanto limitações físicas quanto metafísicas.
Durante as frequentes incursões do Doutor Estranho no plano astral, por exemplo, o seu corpo físico permanece num espécie de transe inerte. Nesse estado em tudo semelhante à morte, Strange fica vulnerável a ataques de qualquer tipo. Se deles resultarem ferimentos fatais, ele ficará para sempre preso num limbo incorpóreo.
O mesmo sucederá caso Strange permaneça mais do que 24 horas na sua forma etérea. Ultrapassado esse limiar crítico, o seu corpo físico começará a deteriorar-se a um ritmo acelerado podendo, no limite, culminar na sua morte.

A projeção astral comporta
 consideráveis riscos para o corpo físico do Doutor Estranho.

Outra brecha passível de ser explorada pelos inimigos do Doutor Estranho é a sua elevada dependência relativamente a encantamentos recitados, gestos ritualísticos e artefactos místicos. Como já referido, os seus feitiços mais poderosos extraem energia de entidades divinas invocadas verbalmente e, quase sempre, com a ajuda de amuletos. O Doutor Estranho ficará contudo impedido de conjurá-los se for amordaçado, manietado e/ou privado do acesso ao seu arsenal arcano. 
Algo que também acontecerá se ele perder os favores dos seus patronos sobrenaturais. Sem o poder insondável de Vishanti, Agamotto ou Cyttorak, o Doutor Estranho seria incapaz de se bater em paridade de armas com adversários como Dormammu, Pesadelo ou Mefisto.
A Alta Magia, por sua vez, cobra sempre um proporcional preço físico aos seus usuários, e o Feiticeiro Supremo não foge à regra. Travar batalhas místicas, particularmente no plano astral ou em outras dimensões, requer um esforço enorme. Do qual podem resultar desde tonturas momentâneas a comas prolongados.
Apesar do seu passado ligado à prática da Medicina, o Doutor Estranho, ironicamente, não consegue duplicar magicamente nada criado pela Ciência. Alguns indícios sugerem ainda que os seus encantamentos e sortilégios perdem eficácia contra seres mecânicos. Robôs, androides e outras máquinas demonstram ter, em geral, uma elevada resistência, quando não imunidade, à sua magia.

Misticismo psicadélico

De todos os ilustres moradores da Casa das Ideias surgidos na primeira metade da década de 60, contam-se pelos dedos de uma só mão aqueles em cuja conceção Jack Kirby não esteve, direta ou indiretamente, envolvido. A par do Homem-Aranha, o Doutor Estranho foi outra das notáveis exceções à regra. Tanto o Escalador de Paredes como o Mestre das Artes Místicas tiveram assinatura de Stan Lee e Steve Ditko.
Quase todas as criações de Stan Lee procuravam, em última análise, renovar grandes mitos da cultura popular originados em géneros diversos: na origem do Quarteto Fantástico esteve a ficção científica; Thor saiu diretamente da mitologia nórdica; e o Homem de Ferro, nas suas primícias, referenciava as histórias de espionagem.
Até à entrada em cena do Doutor Estranho, a magia e a feitiçaria tinham estado praticamente ausentes do Universo Marvel. Como era seu apanágio, Stan Lee mais não fez do que reinterpretar, de forma inovadora, conceitos preexistentes. No caso específico do Feiticeiro Supremo, Lee foi beber inspiração a um folhetim radiofónico que fizera as suas delícias na infância. Chandu, o Mago - um dos programas do género mais populares e duradouros dos anos 30 - narrava as aventuras de um mágico que usava os seus poderes místicos para defender a Humanidade de forças maléficas de origem sobrenatural.
A aparência do Doutor Estranho, por outro lado, foi baseada na de Vincent Price. Presença assídua nos filmes de terror dos anos 50 e 60, Price representava amiúde bruxos, vampiros e quejandos. O nome completo do Doutor Estranho - Stephen Vincent Strange - é, de resto, uma homenagem ao saudoso ator conhecido pelo bigode estiloso e olhar penetrante.

O mágico Chandu e o multifacetado ator Vincent Price (em baixo)
 foram as principais inspirações do Doutor Estranho.



Mas para além dessas influências iniciais, o Doutor Estranho adquiriu uma personalidade e uma riqueza muito próprias, superiores às da personagem que o tinha inspirado. Para isso foi fundamental a participação de Steve Ditko, seu criador plástico e o artista que Stan Lee escolhia sempre que queria orquestrar uma história sob o signo do mistério e do suspense. Por aqueles dias, Lee e Ditko já tinham dado ao prelo dezenas de historietas desse tipo, na sua maioria publicadas em Strange Tales. Em razão disso, num primeiro momento Ditko sugeriu que o novo herói fosse batizado de Mister Strange, nome que Lee rejeitou dadas as semelhanças com o já existente Mister Fantastic.
Renomeado Doutor Estranho, o novo mestre das artes arcanas fez a sua primeira aparição em Strange Tales #110, com data de abril de 1963. Em apenas cinco páginas, os leitores ficaram a conhecer um feiticeiro que nada tinha a ver com os tradicionais prestidigitadores de cartola, varinha mágica e truques baratos. O Doutor Estranho era misterioso, parco em palavras e vestia paramentos asiáticos, que deixavam adivinhar uma possível origem no Extremo Oriente. Tinha, também, pouco em comum com os super-heróis convencionais, apesar de partilhar a revista com um deles.
As aparições subsequentes do Doutor Estranho em Strange Tales acrescentaram novas camadas dramáticas à personagem, atraindo a atenção e o louvor dos leitores. Em resposta ao crescente interesse relativamente ao passado de Stephen Strange, Lee e Ditko revelaram por fim a sua origem, no 115º número da revista que continuava a ter o Tocha Humana como atração principal.

Há exatos 60 anos, o Doutor Estranho fazia a sua estreia em Strange Tales #110,
revista que tinha o Tocha Humana como astro principal.

Dentre as possíveis influências para a origem do Doutor Estranho, a mais óbvia é a do Lama Verde. Personagem obscura com raízes fincadas na literatura pulp que, na Idade de Ouro, foi transposta aos quadradinhos pela Prize Comics. Jethro Dumont, um milionário nova-iorquino, passou uma longa temporada no Tibete a estudar para ser um lama (guru budista), aprendendo muitos segredos místicos no processo. Quando, por fim, regressou aos EUA, usou os seus talentos e ensinamentos no combate ao crime. Saltam à vista as semelhanças entre a sua história e a do Doutor Estranho (vide texto seguinte).

A origem do Doutor Estranho tem vários pontos em comum com a do Lama Verde.

Desde as primeiras aventuras do Doutor Estranho condensadas em menos de uma dezena de páginas e em que se alternavam casos típicos, como o de uma casa assombrada, com duelos místicos com o Barão Mordo, a série foi crescendo paulatinamente em complexidade e sofisticação. Até chegar a uma fase de autêntico delírio ácido dos sentidos, pautada por excursões a mundos diferentes do nosso, próximos do onírico e do surrealista.
Por conta desse viés psicadélico, muitos leitores chegaram a tomar Stan Lee por um verdadeiro iniciado no esoterismo, somando-se a suspeita de que Ditko seria viciado em alucinogénicos. Nada disto tinha, no entanto, qualquer fundamento. Os dois autores tinham-se limitado a dar largas às suas pródigas imaginações, criando inadvertidamente um ícone da contracultura e dos movimentos New Age.
Apenas um ano após o seu debute, o Doutor Estranho viveu a sua primeira grande saga, publicada nos números 126 e 127 de Strange Tales. Demonstrando um enorme salto qualitativo, o arco em questão acrescentou duas personagens-chave à mitologia do Feiticeiro Supremo: Dormammu e a sua sobrinha Clea. Enquanto o primeiro de pronto substituiu o Barão Mordo como némesis do Doutor Estranho, a segunda com o tempo viria a tornar-se discípula, amante e, por fim, esposa de Stephen Strange.

As paisagens psicadélicas desenhadas por Steve Ditko eram
 um espetáculo visual para os leitores e um pesadelo lisérgico para os coloristas.

A fase seminal do Doutor Estranho, assinada por Lee e Ditko, prosseguiria ainda até meados de 1966, quando o artista abandonou a série e a Casa das Ideias. Mesmo órfão da arte psicadélica de Ditko, o Feiticeiro Supremo ganharia, pouco tempo depois, revista própria. Para celebrar essa conquista, Roy Thomas e Dan Atkins, dois dos principais representantes de uma nova geração de autores da Marvel, levaram a cabo uma reconstrução muito pormenorizada do mito, atualizando e expandindo a origem do Doutor Estranho.
Com os normais altos e baixos, a revista regular do Doutor Estranho continuou a chegar às bancas americanas até 1996. Ao longo das décadas foram muitos os grandes nomes da 9ª Arte que passaram pelas suas páginas, entre os quais cabe destacar as duplas Steve Englehart / Frank Brunner e Roger Stern / Marshall Rogers e, ainda, os inúmeros episódios da série desenhados pelo decano da luz e da sombra, Gene Colan.
Durante todos esse tempo, o Doutor Estranho foi o maior expoente de feitiçaria do Universo Marvel, para além de ter servido de catalisador à formação dos Defensores (ver Miscelânea). Após o cancelamento da sua revista mensal, o Feiticeiro Supremo passaria os anos terminais do século XX como convidado especial noutras séries. A exemplo de Nick Fury e do Surfista Prateado, por essa altura já se tinha convertido naquele tipo de ícone fundamental na estrutura do Universo Marvel, mas sem um título seu onde pudesse continuar a evoluir. Já neste século, o impulso dado pelas múltiplas participações do Doutor Estranho no MCU provou-se insuficiente para recuperar a sua tração comercial nos quadradinhos. Todas as recentes tentativas de relançamento de uma série própria do Feiticeiro Supremo foram malsucedidas, reforçando assim o seu estatuto de coadjuvante de luxo em títulos alheios. 

Em 1996, o último número de Doctor Strange, Sorcerer Supreme
marcou também o fim de uma era de esplendor.
  
Renascimento espiritual

Antes de ser o Feiticeiro Supremo, Stephen Strange foi o cirurgião supremo. Mas, nessa sua qualidade inicial, Strange salvava apenas as vidas daqueles que podiam pagar pelos seus serviços. Nada no seu caráter cínico e egocêntrico prenunciava, pois, a missão sagrada que viria a abraçar: ser o guardião espiritual da Terra contra ameaças sobrenaturais.
Primeiro dos três filhos de um modesto casal nova-iorquino, Stephen Strange nasceu em 1930, durante as férias dos pais em Filadélfia. A sua vocação precoce para a Medicina manifestou-se ainda na infância. Com apenas onze anos, Stephen improvisou talas para a perna partida da irmã mais nova e um garrote para estancar a hemorragia resultante da fratura exposta.
Aluno brilhante, Strange, ainda nos seus verdes anos, especializou-se em Neurocirurgia na Universidade de Columbia antes de ser admitido no Hospital Presbiteriano de Nova Iorque. Onde, por conta do seu prodigioso talento, rapidamente alcançou notoriedade internacional. O seu êxito profissional teve, todavia, como reverso a húbris e a insensibilidade social.
Insulado numa bolha de privilégio, Strange não demonstrava um módico de empatia pelos seus pacientes, a quem cobrava sempre honorários exorbitantes. A sua crença no valor do altruísmo fora fortemente abalada, anos antes, pela sua incapacidade de salvar a irmã de morrer afogada. Para preencher esse seu vazio emocional, Strange vivia obcecado pelos bens materiais e pelos prazeres mundanos.
Uma noite, enquanto acelerava no seu bólide desportivo, Strange sofreu um terrível acidente que lhe mudaria para sempre a vida. Apesar de ter sobrevivido, teve os ossos e os nervos das mãos severamente danificados. Incapaz de realizar cirurgias e demasiado orgulhoso para aceitar as funções de consultor, Strange calcorreou o mundo em busca de uma cura.
Depois de ter malbaratado a sua fortuna em tratamentos inúteis, Strange regressou a Nova Iorque apenas para sofrer novo rombo na dignidade. Sozinho e sem dinheiro, passou a viver nas ruas como um vagabundo.
O destino encarregou-se de dar uma lição de humildade a Stephen Strange.

Certa noite, num bar junto às docas, ouviu dois marinheiros conversarem acerca de um misterioso eremita no Tibete capaz de curar qualquer maleita. Um sábio milagreiro, sem nome nem idade, conhecido apenas como Ancião. 
Animado por uma esperança desesperada, Strange desfez-se do resto dos seus pertences e viajou para o Tibete. O Ancião, intuindo o egoísmo do recém-chegado, recusou porém ajudá-lo. Acreditando estar na presença de um charlatão, Strange aprestou-se a partir, mas foi impedido de fazê-lo por uma violenta tempestade de neve.
Enquanto esperava que a tempestade passasse, Strange testemunhou, incrédulo, um ataque místico lançado contra o Ancião. E mais incrédulo ficou ao descobrir que o mesmo fora lançado pelo principal discípulo do guru, o sinistro Barão Mordo.
Embora ciente da traição de Mordo, o Ancião ficou comovido por Strange ter arriscado a vida para avisá-lo e ofereceu-se para iniciá-lo nas artes místicas. Strange aceitou e à medida que as semanas se transformavam em meses e os meses em anos, a sua vida foi ganhando um novo e profundo sentido.
A meta de Strange passou a ser a evolução espiritual, num incessante - e, por vezes, doloroso - despertar interior. No topo do mundo, entre o éter e a materialidade, alcançou a clarividência que lhe permitia enxergar para além da realidade física percecionada pelos sentidos humanos.
De regresso a Nova Iorque acompanhado por Wong (seu amigo e valete), Stephen Strange instalou-se no Sanctum Sanctorum, para, como Doutor Estranho, passar a travar as batalhas esotéricas que apenas poderiam ser vencidas pelo Feiticeiro Supremo.

Renascido espiritualmente, Stephen Strange sucedeu ao Ancião como Feiticeiro Supremo.

Miscelânea

*Sanctum Sanctorum é a tradução latina da expressão bíblica "Santo dos Santos", referenciando tradicionalmente o lugar mais sagrado do Tabernáculo, onde apenas o Sumo Sacerdote de Israel podia adentrar. Foi este o nome simbolicamente escolhido por Stan Lee e Steve Ditko - ambos de ascendência judaica - para a mansão geminada de três andares que serve de residência e base de operações ao Doutor Estranho. Com corredores labirínticos e portas que dão acesso a outras dimensões, o Sanctum Sanctorum é protegido de invasões místicas pelo Selo de Vishanti. Quem já o visitou garante que o seu interior é muito maior do que aparenta ser visto de fora; 
*Sito no coração de Greenwich Village, o bairro boémio de Nova Iorque, o Sanctum Sanctorum está associado a um endereço verdadeiro, que pode inclusivamente ser encontrado no Google Maps. No mundo real, o número 177A de Bleecker Street corresponde ao apartamento que Roy Thomas e Gary Friedrich - à época escribas de Doctor Strange - dividiram na segunda metade da década de 60;

Com o seu interior a ser constantemente reconfigurado, 
o Sanctum Sanctorum desafia as leis da física e do espaço.

*Quase todos os feitiços executados pelo Doutor Estranho envolvem posições especiais das mãos. Alguns desses gestos ritualísticos aparentam ter sido baseados no Mudra do Budismo e de outras religiões asiáticas. O mais comum deles é a mano cornuta ("chifres" feitos dobrando os dois dedos internos para baixo), muito semelhante, de resto, ao gesto que o Homem-Aranha - outra criação da dupla Lee/Ditko - costuma fazer quando lança as suas teias sintéticas;
*Desconhece-se a real extensão das lesões nas mãos de Stephen Strange causadas pelo acidente de viação que lhe mudou para sempre as agulhas do destino. São tantos os escritores que as descrevem como incapacitantes como aqueles que garantem ser os surtos de ego de Strange a impedi-lo de retomar a atividade cirúrgica;
*O Doutor Estranho foi o primeiro a descobrir que o uniforme negro do Homem-Aranha era na verdade um simbionte alienígena cujo controlo sobre o seu hospedeiro aumentava à medida que o vínculo entre ambos era reforçado. Por algum motivo insondável, Strange guardou no entanto segredo acerca da verdadeira natureza do traje e do perigo que ele representava;
*Incapaz de enfrentar sozinho uma horda de demónios extradimensionais conhecidos como Imortais, o Doutor Estranho cooptou Hulk e Namor a ajudá-lo. Dessa aliança pontual nasceram os Defensores, aos quais se juntaria pouco tempo depois o Surfista Prateado. À primeira vista um aglomerado de heróis aleatórios sem nada em comum, o grupo reunia-se apenas quando necessário. A sua especialidade, conforme o nome indica, era defender a Terra de ameaças místicas e sobrenaturais; 

Os Defensores foram sempre menores do que a soma das partes.

*Stephen Strange é tecnicamente imortal. Numa história publicada em outubro de 1974, no quarto número de Doctor Strange, o Feiticeiro Supremo travou uma desesperada batalha contra a Morte dentro do Olho de Agamotto. Ao evocar os ensinamentos do Ancião, de que a morte é apenas outra etapa da vida, o Doutor Estranho parou subitamente de lutar, possibilitando, desse modo, a vitória da sua adversária. Em resultado da sua rendição à Morte, Strange parou de envelhecer desde então. Significando isto que, podendo ser morto por causas exógenas, o Doutor Estranho nunca sucumbirá aos efeitos da passagem do tempo;
*Face à queda das vendas da revista mensal do Doutor Estranho, no início de 1969 a Marvel decidiu dotar a personagem de um visual mais super-heroico. Para esse efeito, foi adicionada uma máscara azul ao traje (ligeiramente retocado) do Feiticeiro Supremo. A justificação para a mudança de look foi, contudo, outra: depois de ter tido a sua identidade usurpada por Asmodeus, Strange ficou preso em outra dimensão, e a única forma de conseguir escapar era ocultando o seu rosto;

A fase mascarada do Feiticeiro Supremo
serviu para disfarçar a queda nas vendas da sua revista.

*No Universo Amálgama, o Doutor Estranho foi combinado com o Senhor Destino e o Professor X, dando origem ao sorumbático Doutor Mistério (Doctor Strangefate). Por ser o único ciente da verdadeira natureza daquela dimensão paralela, era ele o principal empecilho à demanda de Acesso pela separação dos universos Marvel e DC;
*As viagens psicadélicas do Doutor Estranho através de outras dimensões inspiraram a capa do álbum A Saucerful Of Secrets, lançado pelos Pink Floyd em junho de 1968. O Feiticeiro Supremo é igualmente mencionado na canção Cymbaline incluída no álbum More que a mesma banda produziu no mês seguinte;
*O Doutor Estranho surge em 38º lugar na lista dos cem melhores heróis dos quadradinhos do site IGN, ao passo que a ComicBook.com o classificou em 35º no seu Top 50 dos super-heróis mais importantes de todos os tempos;
*Benedict Cumberbatch não foi o primeiro ator a interpretar o Doutor Estranho. Essa honra pertenceu, em 1978, a Peter Hooten, num telefilme do Feiticeiro Supremo produzido pela Universal e transmitido  pela CBS. Na trama, recheada de licenças poéticas, Stephen Strange era um psiquiatra fascinado pelo Oculto escolhido pelo Ancião para enfrentar a perversa Morgan Le Fay. O filme deveria ter servido de episódio-piloto de uma série que nunca saiu do papel.

Peter Hooten (esq). encarnou o Doutor Estranho quase 40 anos
 antes de Benedict Cumberbatch assumir o papel, em 2016.




*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Perfil de Steve Ditko disponível para leitura complementar.


 







 

01 abril 2023

RETROSPETIVA: «X-MEN 2»


  Com a histeria antimutante ao rubro, um militar extremista põe em marcha o seu plano genocida para purificar a Humanidade. Perfila-se o espectro de uma guerra racial e, em nome da sobrevivência, os Filhos do Átomo formam uma frente unida contra o mundo que os teme e odeia. Será a paz uma miragem?

Título original: X2: X-Men United 
Ano: 2003
País: Estados Unidos da América
Duração:  134 minutos
Género: Drama / Ação / Super-heróis
Produção: The 20th Century Fox, Marvel Enterprises, The Donner's Company e Bad Hat Harry Productions
Realização: Bryan Singer
Argumento: Zak Penn, David Hayter e Bryan Singer
Distribuição: 20th Century Fox
Elenco: Patrick Stewart (Professor Charles Xavier); Hugh Jackman (Logan/Wolverine); Halle Berry (Ororo Munroe/Tempestade); Ian MacKellen (Eric Lehnsherr/Magneto); Famke Janssen (Jean Grey); James Marsden (Scott Summers/Ciclope); Brian Cox (Coronel William Stryker); Alan Cumming (Kurt Wagner/Noturno); Anna Paquin (Marie/Vampira); Rebecca Romijn (Raven Darkholme/Mística);Shawn Ashmore (Bobby Drake/Homem de Gelo); Aaron Stanford (John Allerdyce/Pyro); Bruce Davison (Senador Robert Kelly); Kelly Hu (Yuriko Oyama/ Lady Letal)
Orçamento: 125 milhões de dólares
Receitas globais: 407,7 milhões de dólares

Anatomia de uma sequela superior

O sucesso financeiro e as críticas positivas de X-Men convenceram a 20th Century Fox a avançar de imediato com uma sequência, quase duplicando-lhe o orçamento. Seguindo o velho mantra desportivo de que em equipa ganhadora não se mexe, tanto o realizador como o elenco tiveram os seus contratos prolongados (e, em alguns casos, melhorados).
Logo a partir de novembro de 2000, coincidindo com o lançamento de X-Men em VHS e DVD, Bryan Singer começou a pesquisar várias sagas emblemáticas dos Filhos do Átomo com vista a uma adaptação. Singer desejava apresentar a perspetiva humana relativamente ao fenómeno mutante, o tipo de raiva e temor que alimenta agendas extremistas. Nenhum dos inimigos clássicos dos X-Men, correspondia, contudo, ao perfil do antagonista que o realizador tinha em mente.
Ao mesmo tempo que David Hayter e Zak Penn eram contratados para escrever argumentos separados, o produtor Avi Arad anunciou novembro de 2002 como data prevista para a chegada do novo filme aos cinemas. Singer, por seu turno, estava inclinado a adaptar a saga da Fénix Negra. Sentindo que o universo da franquia não estava ainda suficientemente estabelecido para elevá-la ao patamar cósmico, Penn dissuadiu Singer dessa intenção. Sugerindo, em alternativa, God Loves, Man Kills (Deus Ama, o Homem Mata), também ela assinada por Chris Claremont. Ao constatar que o reverendo Stryker era exatamente o tipo de vilão que procurava, Singer avalizou a escolha.
O rascunho inicial do enredo combinava elementos retirados dos argumentos de Hayter e Penn. Anjo, Fera e Sapo surgiam na história, mas foram excluídos devido ao excessivo número de personagens mutantes. Assim como os Sentinelas e a Sala do Perigo, embora neste caso por razões orçamentais.

Arte conceptual não utilizada da Sala do Perigo.

Depois de Halle Berry ter arrecadado o Óscar de Melhor Atriz pelo seu desempenho em Monster's Ball (2001), Dan Harris e Michael Dougherty foram contratados para reescrever o argumento, a fim de conceder mais tempo de ecrã a Tempestade. 
Embora menos tumultuosa do que a do primeiro filme, a rodagem de X-Men 2 ficou novamente marcada pelo comportamento errático de Bryan Singer. Um dos episódios mais graves aconteceu quando Tom DeSanto, produtor-executivo e cocriador da franquia, encontrou o realizador e vários dos seus assistentes sob forte influência de narcóticos. Receando pela segurança dos atores, DeSanto ordenou a imediata suspensão das filmagens, o que espoletou uma violenta altercação com Singer. Segundo alguns relatos, os dois homens chegaram quase a vias de facto.
Ignorando os avisos de DeSanto, Singer resolveu prosseguir com os trabalhos, filmando uma cena em que Wolverine executava uma perigosa acrobacia numa das asas do Pássaro Negro. Como a cena em questão estava programada para o dia seguinte, o duplo de Hugh Jackman estava ausente do set, e foi o próprio ator a interpretá-la, acabando por sofrer ferimentos leves.
Liderado por Halle Berry, o restante elenco, ainda fantasiado, confrontou Bryan Singer. No calor da azeda discussão que se seguiu, o realizador ameaçou dispensar Berry ou qualquer um que abordasse em público a sua dependência de substâncias. Os ânimos só serenaram quando DeSanto voltou a intervir, apelando ao profissionalismo de todos.

A recém-oscarizada Halle Berry liderou a revolta contra Bryan Singer.

Com início a 17 de junho de 2002, em Vancouver, as filmagens terminaram cinco meses depois, obrigando ao adiamento da estreia para o ano seguinte. Foram usados mais de 67 cenários em 38 localizações diferentes, algumas das quais se revelaram problemáticas. Durante as gravações em Kananaskis, na província canadiana de Alberta, por exemplo, a produção foi surpreendida pela escassez de neve naquela época do ano. A solução passou então pelo uso de neve falsa.
As filmagens já iam a meio quando Bryan Singer informou Famke Janssen que Jean Grey sacrificaria a própria vida no final da história, mas que seria ressuscitada no terceiro capítulo da saga. Ideia bem acolhida pela atriz neerlandesa, que chegara a filmar uma cena alternativa em que Jean ficava temporariamente cega em resultado do seu confronto com Ciclope no Lago Alkali.
À antestreia londrina duas semanas antes, seguiu-se, a 2 de maio de 2003, a estreia simultânea de X-Men 2 em 3741 salas de cinema nos EUA e Canadá. Antes mesmo de começar a faturar, o filme garantiu assim entrada direta para o Livro Guiness dos Recordes com o maior lançamento de sempre. A esta proeza juntou-se uma outra: X-Men 2 foi um dos primeiros cinco filmes a ultrapassar os 200 milhões de dólares em receitas de bilheteira.
Bem recebido pela crítica, X-Men 2 foi indicado para múltiplos prémios, tendo conquistado o Saturn Award para melhor filme de ficção científica, além de uma menção honrosa atribuída pela Political Film Society, nas categorias de Direitos Humanos e Paz. 


Enredo

A Casa Branca é espetacularmente invadida por um mutante teleportador de aparência demoníaca. Acantonado na Sala Oval, o Presidente dos EUA é salvo no último instante por um agente do Serviço Secreto. Antes de desaparecer em pleno ar, o misterioso atacante deixa uma faca cravada com uma mensagem: "Liberdade mutante agora!".
Num ápice, o incidente desperta a histeria antimutante e o impulso farisaico dos extremistas. Enquanto a imprensa exercita a gramático do medo, um pouco por todo o país irrompem protestos a exigir medidas drásticas para conter a ameaça à segurança nacional. No Congresso, um coro de vozes exaltadas defende a Lei de Registo dos Mutantes. O espectro de uma guerra racial insinua-se no horizonte carregado de nuvens negras.

O ataque de Noturno à Casa Branca acicatou o sentimento antimutante.

Alheio a tudo isto, Wolverine explora uma instalação militar abandonada próxima de uma barragem, no Lago Alkali. Procura pistas que o ajudem a decifrar o intrincado mistério que obscurece o seu passado, mas encontra apenas um labirinto de corredores povoados por fantasmas.
Durante uma visita de estudo a um museu organizada pelo Instituto Xavier, a Ciclope não passa despercebida a falta de concentração de Jean Grey. Esta justifica-a com os sonhos perturbadores que a vêm atormentando, e com a crescente dificuldade em controlar os seus poderes telepáticos.
Numa esplanada ali perto, Pyro reage violentamente às provocações de um grupo de arruaceiros. Quando a situação está prestes a escalar, todos os circunstantes humanos ficam subitamente petrificados como estátuas. Depois de repreender os seus pupilos e apagar o incidente da memória das testemunhas, o Professor X dá a visita por terminada.
Na Casa Branca, o coronel William Stryker, um ex-cientista militar com uma agenda secreta, convence o Presidente de que o Instituto Xavier alberga um centro de treino para terroristas mutantes. Apesar das objeções levantadas pelo senador Kelly (na verdade, Mística disfarçada), o Presidente autoriza uma rusga à escola.
Mais tarde, Stryker visita Magneto na  prisão de plástico que ele próprio projetou. Sob o efeito de uma substância injetável, o Mestre do Magnetismo fornece informação detalhada sobre o funcionamento de Cérebro, o supercomputador instalado no Instituto Xavier.

O coronel Stryker lidera a contraofensiva humana.

De regresso à mansão Xavier, Wolverine, frustrado pelo fracasso da sua sua viagem ao Canadá, pede ao Professor X que lhe leia a mente. O mentor dos X-Men tem, no entanto, assuntos mais prementes a tratar. Com a ajuda de Cérebro, consegue rastrear o mutante que quase assassinou o Presidente. Tempestade e Jean Grey seguem para Boston a bordo do Pássaro Negro, com a missão de interrogar Noturno.
Suspeitando do envolvimento de Magneto no ataque à Casa Branca, o Professor X, acompanhado por Ciclope, visita o seu velho amigo na prisão. Ao ler os pensamentos de Eric, Xavier descobre que Stryker lhe conseguiu extorquir informações sensíveis para propósitos nefastos. De súbito, a cela é inundada de gás soporífero enquanto, no exterior, Ciclope é derrubado por Lady Letal, a guarda-costas mutante de Stryker.
Em Boston, Tempestade e Jean Grey encontram Noturno numa igreja abandonada. Vencida a desconfiança inicial do mutante assustado, ele confessa chamar-se Kurt Wagner e ter sido coagido por Stryker a atacar o Presidente.
Pela calada da noite, um grupo de operações especiais comandado pelo coronel Stryker toma de assalto o Instituto Xavier. Graças à pronta reação de Wolverine e Homem de Gelo, a maior parte dos alunos consegue escapar pelos túneis subterrâneos, mas um punhado deles acaba capturado.
Numa erupção de selvageria, Wolverine massacra sem piedade dezenas de soldados. Em meio ao banho de sangue, depara-se com um rosto estranhamente familiar. Igualmente perplexo, Stryker admite ser aquele o último lugar onde esperava encontrar Logan. Wolverine pressente que Stryker é a chave para abrir o seu baú de memórias reprimidas, mas o diálogo entre ambos é bruscamente interrompido pelo Homem de Gelo.

Wolverine cede ao seu instinto assassino.

Enquanto Stryker e os seus homens invadem a sala onde repousa Cérebro, Wolverine, Homem de Gelo, Pyro e Vampira encetam uma fuga alucinada no bólide desportivo de Ciclope. Em Boston, o grupo faz uma pequena paragem em casa dos pais de Bobby Drake enquanto procuram estabelecer contacto com Tempestade e Jean Grey. Perante o assombro dos pais e a repugnância do irmão, Bobby revela ser um mutante e a verdadeira função do Instituto Xavier para Jovens Sobredotados.
Longe dali, Mística faz-se passar por Lady Letal para obter acesso ao sistema informático de Stryker. Além de informação detalhada sobre a prisão de Magneto, a mutante das mil caras encontra também esquemas para a construção de uma réplica de Cérebro. Intuindo a ameaça, Mística engendra um plano para libertar o Mestre do Magnetismo.
Ao preparem-se para voltar à estrada, Wolverine e seus companheiros de viagem são surpreendidos pela polícia no jardim fronteiro da casa da família Drake. Durante a breve escaramuça que se segue, Tempestade e Jean Grey chegam ao local no Pássaro Negro e resgatam rapidamente os seus aliados. 
Nos céus, o Pássaro Negro é intercetado e alvejado por dois caças da Força Aérea Americana. Em voo picado em direção ao solo, a aeronave tem a sua queda fatal amparada por um campo magnético gerado por Magneto.
Embora a contragosto, os X-Men unem-se a Magneto e Mística para resgatar o Professor X e travar o plano genocida de Stryker. Em nome da sobrevivência da sua espécie, os Filhos do Átomo formam, pela primeira vez, uma frente unida contra o mundo que, mais do que nunca, os teme e odeia.
Após ler a mente de Noturno, Jean Grey descobre que a base secreta de Stryker fica situada sob a barragem no Lago Alkali. Magneto revela também que Stryker foi o cientista que infundiu o esqueleto de Wolverine com adamantium.

Mística e Magneto unem-se aos pupilos do Professor X.

No seu covil subterrâneo, Stryker usa o próprio filho - Jason, um mutante capaz de projetar poderosas ilusões - para controlar a mente do Professor X. Seguindo as instruções de Stryker, Xavier programa a réplica de Cérebro para localizar e exterminar todos os mutantes da Terra.
Disfarçada de Wolverine, Mística infiltra-se na base e franqueia a entrada aos X-Men e Magneto. Ao mesmo tempo que Mística tenta libertar o Professor X, Jean Grey enfrenta um ainda hipnotizado Ciclope. A refrega do casal liberta Ciclope dos efeitos da droga, mas também causa danos estruturais na barragem, cujas paredes começam a rachar.
Depois de derrotar Lady Letal num arrepiante duelo de garras metálicas, Wolverine encontra Stryker no laboratório onde foi submetido a experiências científicas desumanas. Stryker implora pela vida prometendo contar tudo o que sabe acerca do passado de Logan, mas este limita-se a deixá-lo para morrer.
Tempestade e Noturno resgatam os alunos enquanto Mística e Magneto encontram o Professor X na sala do novo Cérebro. Assumindo a forma de uma menina, Mística, instruída por Magneto, usa o filho de Stryker para convencer Xavier a encontrar e matar todos os humanos.

O Professor X é usado como instrumento de destruição de duas espécies.

Magneto e Mística abandonam rapidamente o local no helicóptero de Stryker, levando a bordo um inesperado passageiro: Pyro trocou os X-Men pela Irmandade de Mutantes.
Com a barragem a ameaçar ruir a qualquer instante, Noturno teleporta-se com Tempestade para a sala do novo Cérebro. Ato contínuo, a Rainha dos Ventos gera uma nevasca que desconcentra Jason, libertando dessa forma Xavier do seu controlo mental.
Os X-Men embarcam no Pássaro Negro, mas os motores do avião, danificados pelo ataque dos caças, não funcionam. Entretanto, a barragem colapsou e a enorme massa de água engole tudo à sua passagem. Perante o desastre iminente, Jean sai do Pássaro Negro e cria um campo de força telecinético para suster o avanço da água, ao mesmo tempo que reativa os motores da aeronave. Contudo, o esforço é insuportável e, para horror dos seus amigos, Jean é engolida pelas águas e desaparece sem deixar vestígio.

O sacrifício final de Jean Grey salva a vida dos X-Men.

No dia seguinte, quando se prepara para fazer uma comunicação ao país, o Presidente dos EUA tem o seu discurso interrompido pela inesperada visita dos X-Men. Depois de lhe entregar as provas que incriminam Stryker, o Professor X deixa um sério aviso: ou humanos e mutantes trabalham juntos na construção da paz, ou haverá uma guerra de que nenhuma das espécies sairá vencedora.
No Instituto Xavier reina ainda um clima de profunda consternação pela morte de Jean Grey. Apesar do esforço para regressar à normalidade, o heroico sacrifício de Jean perdurará na memória de todos. 
A milhares de quilómetros de distância, a figura difusa de um pássaro forma-se na superfície espelhada do Lago Alkali... 

Trailer

Curiosidades

*Principal fonte e esteio do enredo, a aclamada graphic novel God Loves, Man Kills foi lançada em 1982, mas só adquiriu estatuto canónico após a sua adaptação ao cinema. Na história original, saída da pena de Chris Claremont, William Stryker é um televangelista cristão (assumidamente inspirado no pastor e ativista ultraconservador Jerry Falwell) que considera os mutantes criaturas satânicas. Acolitado pelos Purificadores, uma milícia armada composta pelos seus seguidores mais fanáticos, Stryker lidera uma feroz cruzada antimutante a nível nacional. Tal como no filme, o monge do ódio constrói uma réplica de Cérebro e sequestra o Professor X, com o intuito de usar os seus poderes psíquicos para exterminar todos os mutantes. Confrontados com essa ameaça existencial, os X-Men estabelecem uma aliança temporária com Magneto, ao lado do qual travam uma desesperada luta pela sobrevivência da espécie Homo Superior. Desagradado com as muitas alterações introduzidas pelos argumentistas, Chris Claremont considera o filme uma má adaptação da sua obra;

A saga foi apresentada aos leitores lusófonos em 1988,
 no número inaugural da coleção Graphic Novel lançada pela Abril.

*Na base da transformação de William Stryker num cientista militar terá estado, muito provavelmente, a preocupação dos produtores de evitar controvérsias religiosas suscetíveis de originar boicotes ao filme. A versão cinematográfica de Stryker combina, de resto, elementos de dois outros inimigos jurados dos mutantes: Professor Andre Thorton (o sádico mentor do programa Arma X) e Henry Peter Gyrich (um austero agente federal). Uma vez que ambos usam óculos na banda desenhada, foi esse o acessório escolhido por Bryan Singer para referenciá-los esteticamente na caracterização de Stryker;
*Homossexual e ativista LGBT, Ian McKellen trabalhou afincadamente com os argumentistas para que a cena em que Bobby Drake revela à família a sua condição de mutante invocasse a tantas vezes traumática "saída do armário". Coincidência ou consequência, em 2015 a Marvel reviu a orientação sexual do Homem de Gelo. Após décadas de relações amorosas com mulheres, a personagem é agora assumidamente gay;
*Tyler Mane foi convidado a repetir o papel de Dentes-de-Sabre, agora atuando como guarda-costas do Coronel Stryker. Na banda desenhada, essa função é ocupada por uma mulher chamada Anne Reynolds. Depois de discutirem a hipótese de usar Reynolds dotando-a de poderes equivalentes aos de Lady Letal, os argumentistas decidiram-se pela própria. Em resposta às críticas pela falta de ação no filme anterior, Lady Letal recebeu cenas de luta mais longas do que o inicialmente programado; 

Lady Letal tem, tal como Wolverine, garras de adamantium e um fator de cura.

*Fora escritos 27 rascunhos da trama. Num deles, mais próximo da história original, Magneto salvava o Professor X e ajudava na fuga dos seus pupilos após a destruição da réplica do Cérebro. A cena foi no entanto alterada a pedido de Bryan Singer, que preferiu realçar a natureza implacável do Mestre do Magnetismo, quando este, ao invés, recalibra a máquina para exterminar todos os humanos. Foi também essa a forma encontrada pelo realizador de conceder maior protagonismo a Tempestade e Noturno no clímax do filme;
*A cadeira de rodas personalizada usada pelo Professor X em X-Men (2000) foi comprada por um advogado associado do representante legal de Patrick Stewart. Com a produção em marcha avançada, o estúdio percebeu que já não dispunha desse importantíssimo adereço, e não teve outro remédio se não alugá-lo ao referido causídico, a troco de uma quantia substancial nunca revelada;
*Construído num antigo armazém da Sears, em tempos idos a maior cadeia de distribuição do mundo, o covil subterrâneo do Coronel Stryker ocupava apenas metade da área disponível. Ainda assim, durante as filmagens o elenco e o staff usavam bicicletas para percorrer a grande distância entre os cenários e os lavabos;
*As pessoas "congeladas" pelo Professor X no museu e na Casa Branca foram interpretadas por mimos profissionais. A produção entendeu que eles seriam uma escolha mais adequada para as cenas em questão do que simples figurantes;
*A fuga de Magneto de uma cela de plástico transparente é uma homenagem a O Silêncio dos Inocentes (1991), um dos filmes preferidos de Bryan Singer. Brian Cox, por sua vez, interpretara Hannibal Lecter em Caçada ao Amanhecer (1986), tendo sido esse o motivo da sua escolha para o papel de William Stryker;

Singer fez de Magneto  o Hannibal Lecter da franquia mutante.

*Alan Cumming detestou a experiência de ser dirigido por Bryan Singer, atribuindo ao abuso de substâncias por parte do realizador o ambiente tóxico instalado no set.  O assédio moral de que o ator foi constantemente alvo no decurso das filmagens agravou a sua compulsão alimentar, resultando num aumento de peso que lhe prejudicou a saúde. Revoltado com a inércia do estúdio face aos desmandos de Singer, Cumming recusou repetir o papel de Noturno em X-Men 3: O Confronto Final (2006). Ironicamente, Cumming fora uma escolha pessoal de Singer, devido à sua fluência em alemão;
*Quando Tempestade e Jean Grey adentram a igreja à procura de Noturno, esta última veste um blusão com um pássaro flamejante estampado nas costas. Trata-se de uma óbvia referência à Fénix, a entidade cósmica que nas histórias clássicas dos X-Men escolheu Jean como sua hospedeira, e cujos poderes se foram subtilmente insinuando ao longo do filme;
*De visita ao set, a irmã de Hugh Jackman concordou em pregar uma partida a Bryan Singer. Usando o figurino completo de Wolverine, interpretou uma das cenas do irmão sem que o realizador desse pela diferença. De acordo com um assistente de Singer, este ter-se-á limitado a comentar distraidamente que Jackman estava a agir de forma algo estranha naquele dia;
*A cena final na Mansão Xavier foi gravada no Shepperton Studios, em Londres, simplesmente porque Hugh Jackman estava a filmar Van Helsing (2004) na capital britânica, tendo-lhe sido concedida uma autorização especial para se ausentar apenas por um dia. Uma vez que a caracterização do caçador de vampiros exigia que Jackman usasse o cabelo comprido, o ator teve de usar uma peruca para interpretar Wolverine. É por esse motivo que o cabelo de Logan parece mais alto do que o normal nessa cena.


Veredito: 78%

Na aurora do novo milénio, X-Men cumpriu com louvor a sua espinhosa missão de reabilitar os super-heróis no cinema. A fórmula de sucesso da película passou por apresentar personagens interessantes e propor discussões que permanecem atuais à luz da proliferação de microcausas identitárias. Tal como na banda desenhada, os mutantes foram metáforas perfeitas para os problemas e dilemas das minorias sociais que se sentem oprimidas.
Novamente sob a batuta de Bryan Singer, X-Men 2 assumiu-se como uma produção mais ambiciosa, alcançando um feito raro entre as sequelas: ser superior ao original. Singer é, de resto, um daqueles cineastas que recusa seguir os preceitos de um típico blockbuster estival. Dispondo de um orçamento bem mais generoso do que no primeiro filme, resistiu à tentação de investir nos efeitos especiais, servindo uma trama requentada.
Salta, de facto, à vista a preocupação de Singer em corrigir os principais defeitos apontados a X-Men, desde logo a falta de grandiosidade. Mas não só. Também as cenas de ação evoluíram para um nível satisfatório, capaz de atrair o espectador casual ávido de uma simples diversão. A cena de abertura, protagonizada por Noturno, é, sem margem para dúvidas, uma das melhores de toda a franquia.
Contudo, X-Men 2 vai muito além de um mero exercício escapista. Ao percorrer novamente uma linha de cumeada por uma amplitude de temas - do preconceito à discriminação, passando pelo radicalismo - , Singer aprofunda o debate aberto no primeiro filme sobre a aceitação das diferenças em sociedades, ironicamente, cada vez mais heterogéneas.

O grande número de personagens foi um dos maiores desafios da produção.

A maior virtude de X-Men 2 será, porventura, tratar com o devido respeito o material-fonte. O filme consegue, com assinalável competência, cerzir elementos distintos de mais de 40 anos de aventuras publicadas dos Filhos do Átomo. Independentemente do momento cronológico a que pertencem nos comics, personagens e situações são transplantados com sucesso para uma trama coesa permeada pela influência de algumas das obras capitais dos X-Men.
Outro dos méritos de Singer reside na gestão eficiente de um conjunto tão lato e diversificado de personagens. Todas elas desempenham, em algum momento da trama, uma função relevante. Mesmo Ciclope, cujo reduzido tempo de ecrã acaba por ser compensado pela dramática cena no Lago Alkali.
Graças a uma alternância equilibrada entre diálogos inteligentes e cenas de luta empolgantes, a ação do filme transcorre fluida. A trama deixa deliberadamente pontas soltas para uma continuação, seduzindo o espectador com uma agradável expectativa.
O resultado final é brilhante, na medida em que a filosofia crítica e as representações simbólicas de ativismos identitários em nada prejudicam o apelo comercial da película. Uma aula prática para os argumentistas atuais de filmes de super-heróis.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre X-Men, Wolverine, Magneto, Mística, Chris Claremont e A Saga da Fénix Negra disponíveis para leitura complementar.