17 junho 2021

ETERNOS: JERRY ROBINSON

  Ele próprio um menino-prodígio, cresceu na sombra do seu mentor apesar de ter criado várias figuras fundamentais da mitologia do Cavaleiro das Trevas. Artista por acaso, cartoonista por vocação e ativista por paixão, foi incansável como embaixador dos comics e na defesa dos direitos dos seus pares. 


Imagine-se um artista cuja carreira ímpar remonta à Idade de Ouro dos comics, criador de um dos mais carismáticos e infames vilões da banda desenhada. Imagine-se que esse mesmo autor, pioneiro da Era Heroica, foi um dos mais prestigiados cartoonistas do mundo, cumulando honrarias e reconhecido internacionalmente como um dos mais influentes do último século. Acrescente-se a tudo isso uma campanha sem fronteiras em prol dos direitos autorais e da liberdade de expressão dos seus colegas de ofício, e ter-se-á uma ligeira noção da importância de Jerry Robinson para a Arte Sequencial. No ano em que se cumpre uma década sobre o seu desaparecimento, evoquemos o essencial da vida e obra do mais novo dos três mosqueteiros que arvoraram o Batman a ícone global.
Batizado Sherrill David Robinson, Jerry Robinson nasceu no primeiro dia do ano da graça de 1922. Astrólogos e outros especialistas na leitura das linhas tortas dos bons e maus augúrios porventura lobrigariam nesse facto um sinal de que veio ao mundo predestinado a grandes feitos. Quinto filho de um casal pequeno-burguês - o pai um empresário com raízes judaicas, a mãe uma contabilista nova-iorquina - Robinson teve como berço Trenton, a melancólica capital da Nova Jérsia, banhada pelas águas turvas do rio Delaware. Influentes na comunidade, os seus pais haviam sido, no ano anterior, os responsáveis pela abertura do primeiro cinema na cidade. 
Ainda pessoa de palmo e meio, Robinson foi apresentado à pobreza, que se infiltrou no quotidiano familiar quando os desvarios de Wall Street reduziram a economia americana - e os negócios paternos - a um cemitério de sonhos destruídos. Para manter vivo o seu de ser jornalista, Robinson vendia gelados e alguns desenhos que fazia. Seriam aliás estes a mudar-lhe as agulhas do destino.
Então com 17 anos e prestes a ingressar na Universidade de Columbia no curso dos seus sonhos, em 1939 Robinson encontrava-se de férias numa modesta pousada nas montanhas Pocono (Pensilvânia). Durante um passeio matinal, os desenhos estampados no casaco que vestia atraíram a atenção de um desconhecido, que indagou sobre a autoria dos mesmos. Quando Robinson anunciou ser ele o artista, o desconhecido apresentou-se: Bob Kane.
Sete anos mais velho do que Robinson, Kane mostrou-lhe a primeira história do Batman - acabada de dar à estampa em Detective Comics #27 - e ofereceu-lhe um emprego como seu assistente. Sem particular apreço pelos quadradinhos, tampouco impressionado com o traço de Kane, Robinson aceitou contudo de bom grado o emprego. Desse encontro fortuito nasceria uma das mais brilhantes parcerias criativas da 9ª Arte, mas também uma das mais duradouras disputas por direitos autorais da sua história. 

Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson: três homens e um destino.

Robinson viajou de imediato para Nova Iorque, levando na bagagem a missão de assistir Bob Kane e Bill Finger na produção da série mensal do Batman. O fenomenal sucesso desta apanhara desprevenidos os próprios autores que, atolados em trabalho, sentiam crescente dificuldade em cumprir os prazos estipulados pela National Comics (futura DC). 
Robinson assumiu inicialmente a arte-final e a legendagem das histórias, levando pouco tempo a perceber o enorme potencial narrativo e comercial dos comics. No entanto, o seu primeiro trabalho só apareceu no quarto número da revista.
Dono de um traço marcante - muito superior ao do próprio Kane - Robinson desenvolveu o seu estilo ao longo do ano seguinte. Graças a ele, o desenho quadrado e estático de Kane cedeu lugar a um visual mais dinâmico e refinado.
Mesmo após a contratação de George Roussos para preencher os cenários das histórias do Batman, Jerry Robinson - que Kane considerava seu protegido - continuou a ser o principal arte-finalista da equipa. Com a chegada de mais um elemento, esta mudou-se do estúdio improvisado no apartamento de Kane para um espaço alugado nas Times Towers, um dos mais icónicos edifícios da Grande Maçã. Robinson, por seu lado, permaneceu aboletado na casa de uma família do Bronx, da privança de Kane.
Descrito como dorminhoco por Roussos, Robinson odiava levantar-se cedo, preferindo trabalhar madrugada adentro. Conjugada com o seu perfecionismo, a indisciplina horária de Robinson originava constantes atrasos na entrega dos trabalhos que tinha em mãos, o que deixava os seus colegas - particularmente Bob Kane - à beira de um ataque de nervos.

Jerry Robinson fotografado
 nos estúdios da National Comics, por volta de 1942.

No início de 1940, Bob Kane e Bill Finger discutiram a introdução de um parceiro que adjuvasse o Homem-Morcego na sua cruzada contra o crime em Gotham City. Apesar de a ideia não ter partido dele, foi Robinson quem sugeriu o nome Robin (em homenagem a Robin Hood, seu ídolo de infância) e concebeu o  colorido visual ( inspirado nas ilustrações de um livro de Newell Convers Wyeth) do jovem escudeiro do Cavaleiro das Trevas.
O Menino-Prodígio debutou em abril desse mesmo ano, nas páginas de Detective Comics #38, sendo considerado o protótipo do sidekick. Robin prenunciou, com efeito, um figurino que se tornaria moda nos anos imediatos. O seu sucesso junto dos leitores mais novos aplanou caminho para uma multidão de epígonos. Muitos dos heróis seniores passaram, assim, a não dispensar a ajuda dos seus imberbes companheiros.
Se a referência a Bob Kane e Bill Finger na criação do Menino-Prodígio é uma mera formalidade, a discussão em redor da autoria do tétrico némesis do Batman ainda hoje faz correr rios de prosa.
Segundo rezam as crónicas oficiais, Finger, à beira do esgotamento, terá pedido ajuda a Robinson para conceber um novo vilão capaz de testar as capacidades do Homem-Morcego, habituado a lidar apenas com bandidos comuns. Robinson passou a noite a matutar na ideia, voltando no dia seguinte com uma carta de baralho representando o Joker. Em entrevistas concedidas ao longo dos anos, Robinson explicou que o bridge sempre preenchera os seus serões familiares, tendo sido essa a fonte de inspiração para o Palhaço do Crime. 

A carta original desenhada por Jerry Robinson
 é hoje uma peça de museu.

Ao examinar os esboços do vilão, Finger, cinéfilo apreciador de filmes europeus, notou as semelhanças com a sinistra personagem interpretada por Conrad Veidt em O Homem Que Ri (1928). Robinson explicou aos seus companheiros que Joker seria o Professor Moriarty do Batman: um arqui-inimigo capaz de pôr à prova os talentos dedutivos do maior detetive do mundo. Outra peculiaridade da personagem radicava no seu retorcido sentido de humor, por contraponto à circunspeção do Cavaleiro das Trevas. 
Kane e Finger avalizaram a proposta de Robinson, e o Joker foi apresentado aos leitores em Batman #1 (abril de 1940). Robinson não foi, contudo, creditado pela criação daquele que viria a ser um dos maiores ícones da cultura popular. Estatuto que só foi alcançado graças à intervenção providencial de um editor que, percebendo o enorme potencial do vilão, evitou que este morresse no final da sua primeira aparição.
Até ao dia da sua morte, em 1998, Bob Kane, conhecido pela sua renitência em dividir os louros pelo sucesso do Batman, foi sempre perentório em afirmar que Robinson nada tivera que ver com o processo criativo do Joker. Atribuindo, ao invés, a "paternidade" do vilão a si próprio e a Bill Finger, resumindo o contributo de Robinson à carta de baralho que serviu de cartão de visita ao Palhaço do Crime nas suas primeiras aparições. Salvo algumas vozes dissonantes, a generalidade dos historiadores apontam, porém, Robinson como o único e verdadeiro autor do Joker.
A partir de 1941, com Kane focado exclusivamente na tira do Batman, Robinson e Finger passaram a trabalhar diretamente com a National Comics. Num claro sinal de reconhecimento do seu talento, Robinson teve os seus serviços requisitados por várias editoras concorrentes. Na Harvey Comics e na Nedor Comics - citando apenas dois exemplos - assumiu, respetivamente, a arte de Green Hornet e Black Terror. Ao passo que a Spark Publications lhe apadrinhou a sua primeira criação a solo: Atoman.

Atoman foi a primeira criação a solo de Jerry Robinson.

Foi também nessa sua fase seminal que Robinson, percebendo o valor estético e comercial da arte original, começou a requerer a devolução dos seus desenhos junto das editoras. Passando, em seguida, a recolher também os desenhos dos seus colegas que, depois de impressos, teriam como destino o lixo. Ao longo das décadas seguintes reuniu apreciável quantidade desse material, algum do qual avaliado em milhões de dólares. Seja em museus ou em exposições itinerantes, esse valioso acervo serve a preservação da memória dos comics e dos seus autores.
Antes de trocar os quadradinhos pelo ensino, Jerry Robinson participou na conceção visual do Pinguim e criou Alfred Pennyworth, o fiel mordomo de Bruce Wayne. Em meados da década 50, reforçou o corpo docente da School of Visual Arts, acrescentando dessa forma ao seu currículo a formação de novas gerações de artistas. Em Steve Ditko, cocriador do Homem-Aranha, teve o seu aluno mais ilustre.
Nessa sua nova senda, Jerry Robinson explorou uma amplitude de registos. Ao mesmo tempo que ilustrava as capas da revista Playbill (dedicada aos espectadores de teatro) e livros infantis, assinava diariamente Jet Scott, uma bem-sucedida tira de ficção científica distribuída nacionalmente pelo Herald Tribune Syndicate.
Sem embargo para o seu importantíssimo contributo para a elevação dos comics a arte respeitável, foi nos cartoons que Jerry Robinson encontrou a sua verdadeira vocação. Dois dos seus maiores sucessos nessa área foram Flubbs and Fluffs e Still Life. A primeira reproduzia algumas das mais hilariantes gafes cometidas pelos alunos americanos; a segunda, protagonizada apenas por objetos inanimados, analisava com humor as notícias que marcavam a atualidade.
A sátira política e a crítica de costumes eram, com efeito, as pedras angulares do seu trabalho. Em plena Guerra Fria, Robinson foi diretor artístico e coargumentista de Stereotypes, filme de animação que mostrava a forma como russos e americanos se percecionavam mutuamente.

Still Life rendeu vários prémios ao seu autor.

Às inquestionáveis capacidade técnicas Jerry Robinson somava igualmente inquestionáveis qualidades humanas. Entre 1967 e 1969, presidiu à Sociedade Nacional de Cartoonistas, precedendo o seu mandato de dois anos (1973-75) à frente da Associação de Cartoonistas Editorais Americanos. Ambas as organizações forneceram uma plataforma poderosa para Robinson contactar artistas de todo o mundo, lançando assim as bases de um sindicato global. Sob a égide do qual foi conseguida a libertação de cartoonistas presos pelas suas opções políticas, em países como a ex-União Soviética ou o Chile.
Mais ou menos pela mesma altura, Jerry Robinson - assistido por Neal Adams - foi crucial na resolução do contencioso que opunha Jerry Siegel e Joe Shuster à DC Comics. Graças à sua campanha solidária para com os desafortunados criadores do Super-Homem, a Editora das Lendas concordou em pagar-lhes uma pensão vitalícia e creditá-los em todas as vindouras publicações e adaptações do Homem de Aço aos diferentes meios de comunicação.

Jerry Robinson (dir.) com Neal Adams, Jerry Siegel e Joe Shuster.

Autor de vasta bibliografia acerca da história dos comics, Jerry Robinson, o homem que nunca se viu apenas como um artista dos quadradinhos, foi seu embaixador incansável. A sua devoção à causa beneficiou as carreiras de centenas de oficiais do mesmo ofício. Estes retribuíram cobrindo-o de prémios e honrarias, algumas das quais pecaram apenas por tardias. Foi o caso, por exemplo, da inclusão do seu nome, em 2004, no Comic Book Hall of Fame, que, na era do efémero, eterniza os demiurgos da 9ª Arte. Robinson, por sua vez, instituiu no ano seguinte o Prémio Bill Finger, atribuído postumamente a escritores a quem foi negado o devido reconhecimento em vida. Jerry Siegel foi o primeiro contemplado.
A 7 de dezembro de 2011 (Dia de Pearl Harbor, data tão simbólica como a do seu nascimento), Jerry Robinson, prestes a completar 90 anos, partiu tranquilamente durante o sono. O sonho de qualquer dorminhoco. Sobreviveram-lhe a esposa, dois filhos, dois netos e um riquíssimo legado cultural, sem precedentes nem paralelo. 
Se a grandeza de um homem é mensurável pela nobreza das causas que abraçou ao longo da vida, Jerry Robinson foi, sem sombra de dúvida, um gigante. Cujas pegadas no imaginário coletivo jamais serão apagadas.


O dia em que o Palhaço chorou a morte do seu criador.





*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à variante europeia da Língua Portuguesa.
*Textos sobre Bob Kane, Bill Finger, Joker e Robin disponíveis para leitura complementar.
 














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