02 outubro 2020

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «DEUSES E MORTAIS»

   
    Antes que Ares desencadeia a derradeira conflagração mundial, Diana terá de semear a paz, vertendo a cintilante luz da Verdade nos corações dos homens envenenados pelo Deus da Guerra. Conseguirá a novel campeã das Amazonas superar tamanha prova de fogo? 

Título original: Gods and Mortals
Editora: DC 
País: Estados Unidos da América
Autores: George Pérez (argumento e arte) & Greg Potter e Len Wein (diálogos)
Publicado em: Wonder Woman Vol.2 #1-7 (fevereiro a agosto de 1987)
Personagens: Mulher-Maravilha, Ares, Rainha Hipólita, Amazonas de Themyscira, Deuses Olimpianos, Steve Trevor, Etta Candy, Julia Kapatelis, Vanessa Kapatelis, General Tolliver
Cenários: Monte Olimpo, Themyscira, Boston

Edições em Português 

Chegada às bancas norte-americanas em janeiro de 1987, Gods and Mortals foi lançada no rescaldo da Crise nas Infinitas Terras e em paralelo com a minissérie Legends. Logo no ano seguinte, a Abril brasileira lançaria a primeira versão da saga traduzida para Português. Nos números 39 a 45 de Super-Homem (1ªsérie), os leitores lusófonos puderam acompanhar os sete capítulos da epopeia da nova campeã das Amazonas no Mundo do Patriarcado.
Ainda por terras de Vera Cruz, desde 2005 que a Panini e a Eaglemoss se têm alternado no lançamento de volumes antológicos de Deuses e Mortais, o mais recente dos quais - com a chancela da segunda - data de abril de 2017.
Coincidindo com a estreia do filme da Mulher-Maravilha, em junho de 2017 a Levoir brindou os leitores lusitanos com a primeira versão da obra em Português europeu, sob o título Homens e Deuses.

A primeira edição portuguesa da saga 
teve a chancela da Levoir.

Filha Pródiga

No início dos anos 80, a Mulher-Maravilha debatia-se com uma inimiga mais perigosa do que qualquer deus vingativo ou vilão megalómano: a irrelevância. Malgrado o seu estatuto de personagem charneira da DC - formando com Super-Homem e Batman a famigerada Trindade - o repertório da Princesa Amazona incluía pouquíssimas histórias memoráveis. A esse prolongado estio narrativo somavam-se as inúmeras inconsistências que, desde a Idade de Prata, eivavam a continuidade da Editora das Lendas. 
Sendo verdade que esse fluxo caótico não poupava ninguém, não era menos verdade que a Mulher-Maravilha foi quem mais acabou submersa por ele. Apresentada ao mundo em outubro de 1941, tal como a restante Trindade, vinha sendo publicada sem interrupções desde as suas primícias na Idade de Ouro. No entanto, os efeitos da erosão do tempo eram muito mais notórios nela do que nos seus coevos masculinos. 
Sem embargo para o viés feminista que as infundia, as historietas originais da Mulher-Maravilha primavam pela simplicidade. Retratada como a princesa guerreira das Amazonas exiladas na Ilha Paraíso, Diana migrou para o Mundo dos Homens para combater o Nazismo. Tarefa a que se entregava com ardor quando não estava estava manietada, refletindo os fetiches sexuais do seu excêntrico criador, William Moulton Marston. 

Durante a Idade de Ouro, cenas de bondage eram
 uma constante nas histórias da Mulher-Maravilha.

À medida, porém, que as décadas iam rolando, a Mulher-Maravilha foi tendo a sua origem recontada e os seus poderes reformulados. Nos primórdios da Idade de Prata, os leitores aprenderam que a Princesa Amazona que lutara ao lado dos Aliados na II Guerra Mundial vivia, afinal, numa realidade paralela chamada Terra-2. No seu lugar surgiu, entretanto, uma nova versão da heroína - menos adepta do bondage - que também passaria por dramáticas transformações. Numa das suas fases mais polémicas, em meados da década de 60, Diana perdeu os seus poderes, abraçando temporariamente a mundanidade que a contaminara.
Desse e de outros desvarios editoriais resultou a diminuição do apelo da Mulher-Maravilha tanto para os leitores como para os escritores e desenhistas. Raramente recebida com entusiasmo por quem era escalado para o seu título mensal, Diana era encarada como uma espécie de enteada ou filha pródiga que ninguém queria assumir. Com vendas anémicas, a Princesa Amazona mirrava no que pareciam ser os seus anos crepusculares. 

Sem poderes, era a partir da sua boutique que,
nos anos 60, Diana combatia a injustiça.

Mesmo no Pós-Crise, quando todo o panteão DC passou por uma revitalização, ninguém parecia saber muito bem o que fazer com a Mulher-Maravilha. Com Batman e Super-Homem estabelecidos ex novo, a próxima etapa passaria, naturalmente, pela aplicação de idêntico tratamento à Princesa Amazona.
A espinhosa tarefa de reabilitar a decrépita Mulher-Maravilha recaiu inicialmente sobre a editora Janice Race e o escritor Greg Potter. Este apresentou algumas propostas interessantes, como a ideia de as Amazonas serem na realidade reencarnações de mulheres assassinadas por homens, ou a sugestão de transformar Boston no equivalente simbólico de Metrópolis ou Gotham City.
Ciente de que o êxito do projeto requeria um artista consagrado, aos olhos de Janice Race perfilou-se como escolha natural George Pérez. Com Marv Wolfman, Pérez produzira Crise nas Infinitas Terras, depois de ter assinado uma das melhores fases de sempre dos Novos Titãs.
Contrariamente ao que possa imaginar, Pérez estava longe de ser um admirador da Mulher-Maravilha. Do seu ponto de vista de feminista convicto, as narrativas da heroína eram um tudo nada disparatadas, porquanto promoviam estereótipos sexistas.  Segundo Pérez, isso fazia com que Diana estivesse frequentemente mais preocupada com frivolidades - como chegar a horas a um encontro romântico - do que em salvar o mundo. 
A perceção de Pérez começou a alterar-se quando, em vésperas de Crise nas Infinitas Terras, foi chamado a desenhar as histórias da Liga da Justiça da América, da qual a Mulher-Maravilha era membro fundador. 
Aos poucos, Pérez foi começando a perceber melhor a essência da personagem e a simpatizar com ela. Mas o ponto de inflexão só viria com uma história dos Novos Titãs ambientada na Ilha Paraíso e que contava com a participação especial da Princesa Amazona. Foi esse o momento eureca do artista. 
Pérez compreendeu finalmente o que diferenciava Diana do restante panteão da DC: a Mulher-Maravilha não é uma alienígena superpoderosa, tão-pouco uma justiceira fantasiada, mas sim um mito no entroncamento entre o mundo transcendente dos deuses e o mundo contingente dos mortais.  Aspeto fundamental que, segundo Pérez acreditava, havia sido escamoteado, por forma a aproximá-la mais de uma super-heroína tradicional. Reduzindo-a no processo a pouco mais do que uma contraparte feminina do Super-Homem.
Quando recebeu luz verde para, com Greg Potter, reescrever a origem da Mulher-Maravilha, Pérez decidiu aprofundar a natureza mitológica da personagem. Com esse objetivo em mente, dedicou meses ao estudo da Mitologia Grega. 

George Pérez redefiniu a Mulher-Maravilha.

Além de renomear a Ilha Paraíso de Themyscira (lar das Amazonas no mito clássico), Pérez explorou as ingerências dos deuses olimpianos nos assuntos terrenos e introduziu discursos deliberadamente pomposos acerca de virtude e destino. 
Num plano mais mundano, a nova série mensal da Princesa Amazona abordaria os perigos e as peculiaridades da forma como as mulheres são tratadas no Mundo do Patriarcado (outra atualização terminológica cunhada por Pérez). Apostado em contrariar lugares-comuns, Pérez privilegiou temáticas relacionadas com violência doméstica, misoginia e emancipação feminina. 
Apesar de ter mantido quase intactos os insinuantes paramentos da Mulher-Maravilha, Pérez limou discretamente algumas arestas. Livrando-se, por exemplo, dos saltos altos das botas. Afinal de contas, esse era um pormenor absurdo na indumentária de alguém que crescera isolada numa ilha e sem a mínima noção das modas do mundo exterior. 
Em Karen Berger, que rendeu Janice Race no posto de editora quando esta ficou de licença pré-natal, Pérez encontrou uma importante influência e uma caixa de ressonância vital, fornecendo-lhe o fundamental ponto de vista feminino. Preocupação incomum na época, Pérez queria tornar as histórias da Mulher-Maravilha atrativas para ambos os sexos.
Mais do que uma campeã do feminismo, Diana assumia-se no entanto como uma humanista profundamente crente na bondade intrínseca das pessoas, independentemente do género a que pertencem. A sua missão era espalhar uma mensagem de paz pelo convulso Mundo do Patriarcado.
Todo este investimento emocional de Pérez acabaria por frutificar. O resultado foi uma epopeia moderna que resgatou a Princesa Amazona do tenebroso submundo de Hades, devolvendo-a de novo ao Sol de Apolo como símbolo da Verdade que derrama a sua luz cintilante no coração dos homens.

Mito renascido.

Embaixadora da Paz

Depois de ter falhado uma caçada que lhe custou também uma das mãos, um homem primitivo regressa à sua caverna. Quando a sua parceira grávida tenta consolá-lo, ele agride-a com violência, matando-a.
De súbito, porém, o corpo sem vida da mulher começa a contorcer-se e uma voz sussurrante preenche a caverna. Perante o olhar estupefacto do homem, o cadáver a seus pés projeta um feixe de luz ofuscante que, num piscar de olhos, se eleva aos céus e desaparece. 
Milénios mais tarde, um concílio de divindades debate no Olimpo a criação de uma nova raça de mulheres mortais que sirvam de modelo à restante Humanidade. Perante o enfado de Zeus, Ares contesta a proposta apresentada por uma coligação de deusas lideradas por Artemis.

Hermes acorre ao Olimpo para participar no concílio dos deuses.

Interrompido o concílio sem vestígio de consenso, Artemis e suas aliadas - Atena, Héstia, Deméter e Afrodite - adentram a Caverna das Almas. À exceção de uma, todas as almas das mulheres mortas são usadas para criar as Amazonas.
Sob o comando das suas duas rainhas - Hipólita e Antíope - as Amazonas levam beleza e harmonia ao Mundo dos Homens. Agastado com a perda de influência, Ares instiga Héracles a atacá-las e aprisioná-las. 
Atena liberta Hipólita depois de esta lhe ter jurado que as suas irmãs não buscariam vingança. As Amazonas, contudo, ignoram a promessa da sua rainha e chacinam os homens que as haviam escravizado. 
Desse episódio resulta a cisão das Amazonas. Enquanto a fação que tem Antíope como rainha abala para parte incerta, a que é liderada por Hipólita é incumbida por Atena de aprisionar eternamente um inefável Mal no seu novo lar: uma ilha paradisíaca chamada Themyscira.
Séculos volvidos, Hipólita roga aos deuses por uma filha. Depois de esculpir um bebé de barro, as preces da rainha são finalmente atendidas. A última ocupante da Caverna das Almas renasce como uma Amazona agraciada com poderes divinos. Diana é o nome dado à primogénita de Themyscira.
Já adulta, a rebelde Diana desobedece a mãe ao participar, disfarçada, no torneio que definirá a novel campeã das Amazonas, que terá por missão viajar ao Mundo dos Homens para derrotar Ares. Após superar todos os desafios, Diana recebe um par de braceletes à prova de bala e a armadura cerimonial de uma guerreira sagrada. 

A nova campeã das Amazonas em todo o seu esplendor.

Antes de Diana empreender a sua jornada extramuros, Hermes entrega-lhe o Laço de Héstia, que compele qualquer um, deus ou mortal, a falar a verdade. De Harmonia, a insana e disforme filha de Ares, a princesa guerreira recebe um estranho amuleto que, supostamente, a ajudará a encontrar o Deus da Guerra.
Entretanto, um avião militar americano penetra o espaço aéreo de Themyscira. A bordo, o Coronel Steve Trevor tenta impedir que o seu copiloto - secretamente sob a influência de Ares - bombardeie a ilha abaixo. A aeronave desgovernada acaba por despencar no oceano, mas Diana salva o Coronel Trevor de morrer afogado. 
Longe dali, numa base militar localizada nos arredores de Boston, a Tenente Etta Candy encontra o corpo sem vida do General Kohler, o comandante de Steve Trevor. Recuperado dos ferimentos na Ilha da Cura, este concorda em ajudar Diana na sua missão e ambos são transportados por Hermes para o Mundo dos Homens.
Em Boston, Diana encontra na Professora Julia Kapatelis uma mentora e uma preciosa aliada. Enquanto ambas se esforçam por decifrar o amuleto ofertado por Harmonia, o Coronel Trevor é preso pelo homicídio do General Kohler. 
Instruídos por Ares, os filhos do Deus da Guerra entram em ação. Enquanto Fobos usa o coração de uma Górgona para construir uma estatueta, o seu irmão Deimos manipula soldados americanos e soviéticos a atacarem-se mutuamente. 
Depois de ter escapado da base militar, Steve Trevor procura a ajuda de Etta Candy. Nessa noite, uma estatueta entregue na residência da Professor Kapatelis ganha vida e transforma-se numa criatura chamada Podridão. Ao ser tocada por ela, Vanessa, a filha adolescente da Professora Kapatelis, envelhece várias décadas em poucos segundos.
No Olimpo, Atena observa, angustiada, o duelo entre Diana e Podridão. Enquanto a Deusa da Sabedoria questiona as capacidades da campeã das Amazonas, Etta Candy vasculha o gabinete do General Tolliver e encontra um ficheiro confidencial com a inscrição "Projeto Ares". 
Com a luta entre ambas a ser televisionada em direto, Diana consegue finalmente derrotar Podridão. No dia seguinte, a imprensa cunha o nome que a imortalizará: Mulher-Maravilha.

Rendida às proezas de Diana,
a imprensa batiza-a de Mulher-Maravilha.

Enquanto Vanessa Kapatelis luta pela vida no hospital, a sua mãe e Diana prosseguem o estudo do amuleto que parece ser a chave para desvendar os imperscrutáveis desígnios de Ares.
Com o ascendente do Deus da Guerra a atingir o seu supino, a tensão político-militar aumenta entre EUA e URSS. Numa corrida contra o tempo, Etta Candy e Steve Trevor apresentam o Projeto Ares a Diana. Ao sobrepor o amuleto num mapa-múndi, a Mulher-Maravilha percebe que o padrão da peça corresponde à localização de várias bases nucleares em diferentes pontos do globo. Para estarrecimento geral, fica claro que Ares planeia desencadear a III Guerra Mundial. 
Nesse preciso momento, o General Tolliver e os seus homens tomam de assalto uma base de mísseis americana. Ignorando esse facto, Diana e a sua pandilha aventuram-se nos domínios dos filhos do Deus da Guerra. Após enfrentar o seus maiores medos, o grupo consegue, por fim, apoderar-se da segunda metade do amuleto.
Teletransportados por ele à base militar controlada pela tropa do General Tolliver,  Diana e os seus amigos conseguem impedir um ataque nuclear à URSS. Ares entra em cena e, após uma breve peleja, derrota facilmente a campeã das Amazonas. 
Diana usa, porém, a força que lhe resta para envolver o seu oponente com o Laço de Héstia. Ao fazê-lo, o Deus da Guerra tem uma visão dantesca das consequências catastróficas das suas ações: sobre a Terra devastada por um holocausto nuclear marcha um infindável cortejo de horrores. Sem adoradores, Ares estará condenado à irrelevância e a uma existência solitária até ao fim dos tempos. Antes de libertar Diana, Ares exorta-a a salvar a Humanidade de si mesma. 

Ares derrotado pela Verdade.

Enquanto, no Olimpo, se exulta com a derrota do Deus da Guerra, Diana, gravemente ferida, é submetida ao Rito da Revitalização na Ilha da Cura. Em resposta às súplicas desesperadas de Ártemis, Zeus ordena a Poseidon que salve a filha de Hipólita. 
De regresso a Boston, Diana fornece aos médicos a poção mágica para reverter a condição de Vanessa Kapatelis. Em sinal de apreço, a mãe da jovem promete ajudar Diana a espalhar a sua mensagem enquanto Embaixadora da Paz. Para isso, contará com a ajuda de Myndi Mayer, uma ambiciosa publicista que organiza uma gigantesca campanha mediática para apresentar Diana ao mundo.
Num epílogo, a arqueóloga Barbara Minerva fica a par das incríveis proezas da Mulher-Maravilha e cobiça-lhe o laço dourado. A Mulher-Leopardo encontrou a sua presa...

Apontamentos

*O advento de Diana ao Mundo do Patriarcado coincidiu com os eventos de Lendas, o primeiro crossover do Universo DC pós-Crise. Significando isto que a Mulher-Maravilha entrou em cena vários anos após outros heróis, como Super-Homem, Batman ou Lanterna Verde, o terem feito. Mercê dessa vicissitude, a encarnação moderna da Princesa Amazona, por contraponto à sua versão da Idade de Prata, esteve ausente do ato fundador da Liga da Justiça, tendo sido retroativamente substituída pela Canário Negro como única representante feminina no elenco original da equipa;
*Fruto da sua educação no seio de uma sociedade matriarcal isolada do mundo há 3000 anos, Diana chega aos Estados Unidos sem o mais ínfimo conhecimento da língua inglesa. Em todas as versões prévias da sua origem, ela era fluente no idioma após estudá-lo na Ilha Paraíso;
*Steve Trevor, tradicional interesse amoroso da Mulher-Maravilha, surge agora retratado como um homem na casa dos quarenta que representa a figura de um irmão mais velho para Diana. Numa surpreendente troca de papéis, mais tarde Steve desposaria Etta Candy;

Diana e Steve , uma velha história de amor.

*Na continuidade pré-Crise, "Mulher-Maravilha" era o título outorgado pelas Amazonas à sua campeã, ao passo que, nesta nova versão, o nome  foi-lhe colado pelos media americanos, pouco tempo após a sua aparição em terras do Tio Sam. Segundo Myndi Mayer, a ideia era prevenir confusões com a Princesa Diana de Gales; 
*Originalmente, o traje da heroína era confecionado pela Amazonas para replicar deliberadamente a bandeira dos EUA, como forma de conquistar a simpatia e confiança do povo americano. Já na versão moderna da história, a conceção do traje precedeu em vários anos o nascimento de Diana. Tratando-se agora de uma armadura cerimonial inspirada nas insígnias ostentadas por uma pilota americana cujo avião se despenhara em Themyscira, durante a II Guerra Mundial.  O nome desse mulher era Diana Rockwell Trevor (mãe de Steve Trevor) e foi em sua homenagem que a primogénita da Rainha Hipólita foi batizada. Foi também essa a explicação airosa de George Pérez para a incongruência de uma personagem da mitologia helénica possuir o nome da deusa romana da caça;
*Como é apanágio da maioria dos seus congéneres heroicos, o código de honra da Mulher-Maravilha clássica desencorajava-a de matar os seus oponentes. Mais pragmática, a nova versão da princesa guerreira não tem grandes escrúpulos em empregar força letal sempre que o contexto o justifique;
*Criação do próprio William Moulton Marston, Ares estreou-se em Wonder Woman #1 (junho de 1942). Apesar de não ter sido o primeiro supervilão a testar a campeã das Amazonas (essa honra coubera, meses antes, à Doutora Veneno), rapidamente foi arvorado a seu arqui-inimigo. Pai de Hipólita, o Deus da Guerra era, originalmente, avô de Diana. Esse grau de parentesco foi no entanto revisto no contexto dos Novos 52. Ao ser revelado que a Princesa Amazona era, na verdade, uma das filhas ilegítimas de Zeus, Ares passou a ser seu meio-irmão;

Ares, o Deus da Guerra.

*A relação de Héracles (denominação grega para o semideus romano celebrizado como Hércules) com a sua contraparte mitológica é difusa. A despeito das referências a Euristeu, arquirrival do Leão do Olimpo, e aos Doze Trabalhos, o ataque de Héracles às Amazonas afigura-se mais como uma conquista pessoal. De igual modo, a sua proverbial loucura parece derivar mais da influência de Ares do que de Hera, a esposa despeitada de Zeus de quem Héracles é filho bastardo;
*Ainda que em momento algum surja identificado pelo nome, o porta-voz da Casa Branca que participa na conferências de imprensa convocada de emergência invoca Larry Speakes (1939-2014), que exerceu idênticas funções na Administração Reagan;
*Time, Life, 60 Minutes e The Phil Donahue Show foram algumas das publicações e dos talk-shows que colaboraram com a campanha de Relações Públicas da Mulher-Maravilha, após o seu triunfo sobre Ares. Movimento cívico de cariz feminista, também a National Organization for Women (NOW) se associou à iniciativa;
*Deuses e Mortais encabeça o Top 10 das histórias da Mulher-Maravilha divulgado em 2019 pelo Comic Book Resources, um dos mais antigos e respeitados sites sobre super-heróis;
*Patty Jenkins, realizadora de Mulher-Maravilha (2017) reconheceu que Deuses e Mortais foi uma das principais inspirações para o filme e incluiu George Pérez no rol de autores homenageados nos créditos finais.

2017 marcou o advento
 da Mulher-Maravilha aos cinemas.


Vale a pena ler?

A premissa para a criação das Amazonas é deveras interessante. Invocando, involuntariamente, um dos cantos mais célebre de Os Lusíadas - o Concílio dos Deuses - Pérez e Potter fizeram um excelente trabalho ao darem voz e personalidade às principais deidades olimpianas. Cada uma delas expressando a sua opinião sobre o propósito que deveria determinar a conceção da nova raça que habitaria entre os humanos, servindo-lhes de ideal.
Do plenário no Olimpo resulta óbvio para o leitor que a Ares interessava somente semear a guerra e a destruição no Mundo dos Homens. Era esse o motivo da sua oposição à criação de uma nova raça que os seus pares desejavam guiar para o caminho da sabedoria e da veneração à divindade. Residindo aqui outro elemento notável da narrativa: a dependência dos deuses em relação aos seus adoradores.
Bebendo inspiração nas ilusões artísticas do holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), Pérez desenhou o Olimpo de forma peculiar, sem noção daquilo que é "em cima" ou "em baixo". É possível observar, também, a sua proximidade com modelos arquitetónicos da Grécia Clássica, com colunas dóricas, jónicas e coríntias harmoniosamente misturadas com elementos modernos.
Os conflitos entre os deuses e a difícil relação de Diana com a sua mãe (um típico conflito geracional), ajudam a prender ainda mais a atenção do leitor numa história magistralmente escrita, em que o compasso é marcado pela ação e pela intriga. Um dos pontos mais interessantes da trama é, aliás, o subterfúgio de Diana para levar Ares de vencida. Ao invés de derrotá-lo com recurso aos seus formidáveis poderes, a Princesa Amazona obriga-o simplesmente a contemplar as consequências das suas ações. 
Sem humanos para guerrearem entre si, a existência do velho Deus da Guerra esvaziar-se-ia de significado. Apesar de evitar o cliché, afigura-se pouco plausível que Ares estivesse tão cego ao ponto de não ter antecipado o alcance dos seus atos. Uma epifania após milénios de planificação é de uma grande conveniência narrativa. Desfecho que, ainda assim, não retira brilho à história.
Apresentando uma versão aprimorada da Mulher-Maravilha, mais focada na sua vertente mitológica, Deuses e Mortais expande a história que todos conhecíamos, ao invés de modificá-la deixando-a irreconhecível. Tem ainda o condão de restaurar o fascínio de uma personagem que, até então, poucos haviam sabido interpretar. Recomendo vivamente a sua leitura.

"O mito é o nada que é tudo." (Fernando Pessoa).



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Textos sobre George Pérez e Crise nas Infinitas Terras disponíveis para leitura complementar.