03 dezembro 2020

HERÓIS EM AÇÃO: DEMOLIDOR


  Noite após noite, a cidade profana é velada pelo seu Diabo da Guarda. Aquele a quem os ímpios temem e os deserdados clamam por justiça cega. O tipo de justiça que somente um homem sem medo pode servir.

Denominação original: Daredevil
Editora: Marvel Comics
Criadores: Stan Lee (história) e Bill Everett (arte conceptual)
Estreia: Daredevil #1 (fevereiro de 1964)
Identidade civil: Matthew Michael Murdock
Espécie: Humano mutado 
Local de nascimento: Cozinha do Inferno, Nova Iorque
Parentes conhecidos: Jonathan Murdock (pai, falecido); Margaret Murdock (mãe); Mila Donovan (ex-cônjuge)
Ocupação: Advogado, aventureiro, vigilante urbano
Base operacional: Cozinha do Inferno, Nova Iorque
Afiliações: Ex-parceiro da Viúva Negra e ex-membro dos Marvel Knights, integra atualmente os Defensores.*
Némesis: Rei do Crime

*Grupo de vigilantes urbanos ( adaptado em 2017 ao pequeno ecrã) de que também fazem parte Luke Cage, Jessica Jones e Punho de Ferro, sem qualquer ligação à pandilha homónima liderada pelo Doutor Estranho.

Poderes e parafernália: A mesma substância radioativa que roubou a visão a Matt Murdock na infância ampliou-lhe os restantes sentidos a níveis sobre-humanos e dotou-o de um novo. Similar ao sistema de ecolocalização dos morcegos, o radar interno do Demolidor permite-lhe visualizar mentalmente pessoas e objetos através da captação de sons ambientes.
Apesar das semelhanças com o sentido de aranha, o radar do Demolidor ganha na comparação com este porquanto permite antecipar as ameaças com maior antecedência. Até mesmo a materialização de teleportadores pode ser detetada antecipadamente através de subtis alterações na atmosfera envolvente.

O radar do Demolidor imita a ecolocalização dos morcegos.

Graças aos seus sentidos hiperaguçados, o Demolidor consegue, por exemplo, perceber se alguém está a mentir, devido às oscilações no respetivo ritmo cardíaco ou temperatura corporal. De tão apurado, o seu paladar permite-lhe contabilizar com precisão o número de grãos de açúcar presentes num donut.
Com uma perceção perfeita de cada objeto móvel ou imóvel ao seu redor e dono de reflexos e agilidade sem paralelo, o Demolidor, indiferente à sua cegueira, pode realizar proezas incríveis - como aparar balas com o seu bastão - ou executar acrobacias impossíveis mesmo para um ginasta de alta competição.
Treinado por aquele que é, possivelmente, o melhor sensei do mundo, o Demolidor desenvolveu um estilo de luta que combina harmoniosamente várias artes marciais, designadamente Ninjutsu, Krav Maga e Boxe. É também exímio no manejo de diferentes tipos de armas, desde facas a espingardas, passando pelo arco e flecha. Salvo em situações extremas, o seu código moral impede-o, porém, de empregar força letal contra os seus adversários.
A mente analítica de Matt Murdock aliada ao seu traquejo como advogado e profundo conhecimento das ruas fazem dele um detetive bastante competente. Igualmente eficazes são os seus métodos de interrogatório. Frequentemente baseados na coação, permitem-lhe extorquir informação mesmo dos criminosos mais renitentes.
O Demolidor é inseparável do seu bastão especial disfarçado como a bengala de cego que usa quotidianamente na sua identidade civil. Trata-se de uma arma versátil e multifuncional vocacionada tanto para manobras defensivas como ofensivas. Contém no seu interior nove metros de cabo metálico com um pequeno gancho de aço temperado na extremidade. Os mecanismos internos do bastão permitem que o cabo seja enrolado e desenrolado de forma controlada, enquanto o gancho é lançado por uma mola poderosa. Por ser extensível e desdobrável, o bastão pode ser usado como peça única ou em duas peças separadas.
Contudo, o principal "poder" do Demolidor - aquilo que verdadeiramente o diferencia de outros heróis de rua - é a sua vontade férrea e a ausência de medo. Mesmo quanto tem de arrostar oponentes mais poderosos, fá-lo sem vacilar e com um sorriso desafiador nos lábios. Tal como o seu pai costumava fazer nos ringues.

O bastão do Demolidor é uma extensão do corpo do herói.

Fraquezas: Conquanto desconhecida da generalidade dos seus inimigos e aliados, a cegueira do Demolidor constitui, indubitavelmente, a sua maior fraqueza. Devido a essa deficiência, o herói é incapaz de discernir imagens e só pode adivinhar as cores com base na quantidade de calor que  elas absorvem ou refletem.
De tão amplificados, os sentidos remanescentes do Homem Sem Medo são particularmente suscetíveis a ruídos e/ou odores excessivos. Além de extremamente dolorosos, os efeitos disruptivos de uma sobrecarga sensorial desabilitam o radar do herói, deixando-o paralisado e desorientado. Situação análoga àquela que se verifica quando tem o seu corpo imerso em água.
Dada a sua condição de simples humano, o Demolidor é tão vulnerável a lesões físicas e doenças como qualquer outra pessoa. Dentre estas últimas destaca-se o seu historial de depressões, que ciclicamente o prendem em espirais autodestrutivas. Durantes essas fases, o seu comportamento tende a tornar-se errático e impulsivo, ao ponto de fazer perigar a própria vida.

Sobrecargas sensoriais são extremamente dolorosas
 para o Homem Sem Medo. 



Justiça cega

Um dos mais antigos, torturados e carismáticos residentes da Casa das Ideias, o Demolidor chegou à meia-idade assombrado pelas dúvidas relacionadas com a sua filiação. Ainda que esta tenha sido oficialmente atribuída a Stan Lee e Bill Everett (criador do Tocha Humana da Idade de Ouro), ignora-se o real contributo de Jack Kirby na conceção visual da personagem. Mas vamos por partes.
Na esteira do sucesso do Quarteto Fantástico, Homem-Aranha, X-Men e tantos outros, o Demolidor assinalou, de certa forma, o fim desse dilúvio criativo por parte dos demiurgos da Marvel. Como é sabido, a equipa-maravilha capitaneada por Lee privilegiava heróis mais humanos com os quais as pessoas comuns pudessem identificar-se mais facilmente. Em harmonia com essa filosofia, Lee idealizou um justiceiro cego cuja audácia compensava a sua deficiência. Um exemplo de superação que teria a sua força de vontade como "superpoder".
Um herói invisual não era, contudo, novidade. Em 1941, a DC apresentara o seu Doutor Meia-Noite. A grande diferença é que este consegue ver perfeitamente no escuro e nunca ficou sequer próximo dos níveis de popularidade do seu homólogo da Marvel.
Apesar desse precedente, Lee receava uma reação adversa por parte da comunidade invisual ao lançamento de um super-herói com essas características. Receio que se esfumaria quando, nas semanas imediatas à estreia da personagem, a redação da Marvel foi inundada por cartas de associações de cegos a louvar a iniciativa e a solicitar donativos para as suas causas sociais. 

Doutor Meia-Noite, o primeiro super-herói cego.

No momento de batizar o neófito, Lee tomou emprestado o nome de um antigo conceito da Lev Gleason relegado para o domínio público desde o final da Idade de Ouro: Daredevil.
Diabo Destemido numa tradução literal, "daredevil" é um termo da gíria americana vulgarmente utilizado para designar acrobatas, duplos, pilotos de corridas ou qualquer indivíduo que ultrapassa as barreiras do senso comum para alcançar feitos únicos. Com o tempo tornou-se, também, sinónimo de "corajoso" ou "audaz". Porém, quando, em 1968, a EBAL adquiriu os direitos de publicação do herói em terras de Vera Cruz, crismou-o de Demolidor. Apesar de canhestra, esta adaptação da nomenclatura original (aproveitando o duplo D estilizado que adorna o uniforme) prevalece até hoje dos dois lados do Atlântico. Mesmo depois de outra editora brasileira, a GEA, ter provisoriamente renomeado o Demolidor de Defensor Destemido. 
Numa referência aos trajes de cores berrantes usados por artistas circenses (e, quiçá, ao do Daredevil original), o Demolidor começou por vestir de vermelho e amarelo. Sem que ninguém saiba ao certo de quem terá partido a ideia. São tantos aqueles a afirmar que foi Kirby o autor dos primeiros esboços modificados por Everett como aqueles que defendem o contrário. 

O Daredevil original.


Uma pista importante para ajudar a desvendar o mistério poderá ser a capa de Daredevil #1 onde, em abril de 1964, o Homem Sem Medo fez a sua estreia. A capa em questão foi assinada por Jack Kirby, o que poderá, com efeito, indicar que foi ele o primeiro a desenhar a personagem. Isto porque, à época, era prática consagrada a produção das capas preceder a arte interior de cada edição.
Alguns investigadores da 9ª Arte aventam uma terceira possibilidade. Kirby terá sido chamado a desenhar a capa do número inaugural de Daredevil porque Everett, a braços com o seu alcoolismo, falhou o prazo de entrega da mesma. Numa tentativa de relançar a carreira do artista, Stan Lee tê-lo-á creditado como cocriador do Demolidor.
Teorias à parte, certo é que o uniforme amarelo depressa saiu de moda. Logo em Daredevil #7 (abril de 1965), Wally Wood, o novo artista das histórias do Demolidor, substituiu-o, sem qualquer justificação, pelo icónico modelo vermelho. Essa evolução estética não foi, porém, acompanhada por uma mudança do tom das histórias, que conservaram o seu registo ligeiro. Com efeito, nas suas primícias o Demolidor era adepto do mesmo humor coriscante com que o Homem-Aranha brindava os seus leitores. Muito longe, portanto, do cunho dramático que posteriormente assumiria.


Em cima: A estreia do Homem Sem Medo em Daredevil #1;
em baixo: a primeira aparição do traje vermelho em Daredevil #7.

Apesar disso, as vendas do título mensal do Demolidor, mesmo após a saída de Stan Lee, mantiveram-se sólidas durante toda a década de 60. Quando, na segunda metade da década seguinte, ficou evidente que a personagem perdera gás, Daredevil, para descontentamento dos fãs, passou a bimestral.
Essa alteração de periocidade coincidiu com a chegada de um novo escritor às histórias do Demolidor. Com grande experiência em contos de terror, Roger McKenzie começou a explorar a faceta mais sombria do herói. No fundo, essa fase continha o gérmen do renascimento do herói orquestrado pouco tempo depois por Frank Miller. 
McKenzie não só fez o Demolidor enfrentar demónios interiores, amiúde refletidos em antagonistas que personificavam a Morte, como também o colocou perante as perturbadoras consequências da exposição da sua identidade secreta pelo repórter Ben Urich. Em virtude disso, o Demolidor enveredou por caminhos que nunca antes havia trilhado e de que não mais voltaria a afastar-se. 
A despeito dos esforços de McKenzie, as vendas não descolavam e Daredevil estava prestes a ser cancelado. Numa tentativa desesperada de reverter a situação, McKenzie foi rendido no posto por Frank Miller (que já vinha desenhando o Demolidor há um par de meses). Obreiro de perspetivas revigorantes, Miller foi o piloto da mudança que se impunha. Manteve a aposta do seu antecessor de explorar o potencial dramático da personagem, mas a uma escala dez vezes superior. 
Pela mão de Miller, o Demolidor adentrou nas trevas psicológicas e saiu das trevas editoriais. Miller não se quedou, porém, pela drástica mudança de tom. Levou a cabo uma profunda reinterpretação do herói introduzindo sucessivos retcons e personagens memoráveis, como Stick ou Elektra, sem se preocupar em enfurecer os fãs mais ardorosos. À parte a aparência física, o seu Demolidor tinha pouquíssimo em comum com as versões pregressas. Em resultado disso, foi nos anos 80 que o herói que conhecemos teve os seus momentos definidores e de maior glória.

Duro, sofrido e violento. Assim era o novo Demolidor de Miller.


Diabo da Guarda

A jornada heroica do Demolidor teve como ponto de partida a Cozinha do Inferno, um mal-afamado bairro operário nova-iorquino maioritariamente habitado por imigrantes irlandeses. Foi pela mão calejada do seu pai, um pugilista decadente chamado Jack "Batalhador" Murdock, que o pequeno Matt Murdock deu os primeiros passos.
Fazendo jus à alcunha conquistada nos ringues, Jack enfrentou muitos desafios para criar o filho sozinho. Desejoso de proporcionar-lhe as oportunidades que não tivera, incentivava constantemente Matt a estudar em vez de praticar desporto. Jack não queria que o filho tivesse, também ele, de ganhar a vida com os punhos.
Aos olhos das outras crianças, Matt era, pois, um rato de biblioteca com medo da própria sombra. Foi assim que ganhou a alcunha trocista de Destemido (Daredevil, no original). Alcunha que lhe moldaria o caráter para sempre.
Incapaz de desobedecer ao pai que diariamente se sacrificava para que nada lhe faltasse, Matt dava secretamente vazão à frustração acumulada no ginásio onde o seu ídolo treinava.
Quando os combates de boxe começaram a rarear, Jack não teve outro remédio senão aceitar trabalhar para um mafioso local conhecido apenas como Arranjador. Da sua descrição de funções faziam parte, entre outros expedientes, a cobrança de dívidas e a intimidação de comerciantes que recusavam pagar pela proteção do Arranjador.
Certo dia, ao caminhar pela rua, Matt, então um pré-adolescente, apercebeu-se que um cego estava prestes a ser atropelado por um camião. Sem pensar duas vezes, Matt saltou para a frente do veículo e empurrou o homem para fora do caminho, salvando-lhe a vida. Ato contínuo, o camião, que transportava resíduos tóxicos, entrou em despiste deixando cair parte da carga na via. Um dos tubos soltos partiu-se com o impacto e Matt teve as vistas salpicadas por uma substância radioativa. Foi essa a última vez que viu a luz do dia antes de mergulhar nas trevas eternas.

Um acidente mudaria para sempre a vida de Matt Murdock.

Enquanto recuperava no hospital, Matt descobriu que os seus outros sentidos haviam sido intensificados a níveis sobre-humanos e que desenvolvera uma espécie de radar mental que lhe permitia descortinar formas difusas.
Passado o desnorte inicial, Matt guardou segredo das suas novas habilidades ao regressar a casa. Anos mais tarde, Stick, um cego mestre em artes marciais, ensinou-o a controlá-las e transformou-o numa arma viva.
Apesar do seu infortúnio, Matt continuou a estudar com denodo. A sua dedicação foi recompensada com a admissão na prestigiada Universidade de Direito de Columbia. Foi lá que conheceu Franklin "Foggy" Nelson - seu melhor amigo e futuro associado - e Elektra Natchios, a bela filha de um diplomata grego que seria o maior e mais trágico amor da sua vida. Após o assassinato do pai, Elektra desapareceu sem deixar rasto, deixando Matt de coração destroçado. O casal voltaria, no entanto, a reencontrar-se anos mais tarde, já não como amantes mas como adversários.
Entretanto, o velho Batalhador continuava a sua carreira como pugilista. Apesar de estar na mó de cima, aceitou perder, a troco de uma choruda maquia, um combate combinado pelo Arranjador. Na hora H, Jack mudou porém de ideias ao avistar Matt na plateia. Com uma sequência de golpes demolidores levou o seu oponente ao tapete. Audácia que lhe custaria caro. Nessa mesma noite, o pai de Matt foi morto às mãos dos homens do Arranjador.

O último combate de um pai herói.

Agora órfão, Matt conseguiu diplomar-se em Direito e abriu um pequeno escritório de advocacia na Cozinha do Inferno. Tendo Foggy Nelson como sócio e Karen Page como secretária, Matt prestava, frequentemente pro bono, assistência jurídica aos mais desfavorecidos. Entre a sua clientela contavam-se prostitutas, homossexuais, mães solteiras e outros deserdados do sistema legal. Todos eles clamavam pelo tipo de justiça que tribunal algum lhes poderia servir.
Foi a pensar neles - e na sua vingança - que Matt usou os velhos robes do pai para confecionar o traje vermelho e amarelo do Demolidor. 
Católico devoto seduzido pelo profano, Matt Murdock não procura penitência para o que fez mas perdão para o que terá de fazer. Porque, quando a Lei emudece e Deus ensurdece, todas as preces aflitas se viram para o Diabo da Guarda.

Entre o sagrado e o profano.


Miscelânea

*Além de Homem Sem Medo, o Demolidor é igualmente cognominado de Diabo da Guarda, Chifrudo, Vermelho,  Aventureiro Escarlate e O Homem Mais Perigoso do Mundo;
*A identidade da mãe de Matt Murdock - uma freira católica chamada Irmã Maggie - só foi revelada na saga A Queda de Murdock (já aqui esmiuçada). Sofrendo os efeitos de uma depressão pós-parto, Maggie desenvolveu uma personalidade paranoide tornando-se uma ameaça para si própria e para o filho. Em resultado disso, Matt era ainda bebé quando foi abandonado pela mãe. Num ato de contrição,  Maggie ingressaria anos depois num convento;

Só o amor de mãe pode curar certas feridas.

*Matt sente-se sufocado nas suas roupas civis, mormente nos elegantes fatos que a sua profissão de advogado o obriga a usar no dia a dia. Por considerar o Demolidor a parte mais importante da sua personalidade dual, é na pele do herói que se sente mais confortável. Um pouco à semelhança de Bruce Wayne, Matt Murdock é tão-somente uma persona criada pelo Demolidor para conservar o anonimato;
*Velho inimigo do Homem-Aranha, Electro foi o primeiro supervilão com quem o Demolidor mediu forças. Antes de ser erigido a némesis do Homem Sem Medo, o próprio Rei do Crime havia antagonizado o Escalador de Paredes;
*Após a revelação acidental da sua identidade secreta por parte do Homem-Aranha, Matt Murdock conseguiu manter o seu segredo a salvo inventando um irmão gémeo com personalidade contrastante com a sua. Mike Murdock (personagem interpretada pelo próprio Matt) cumpriu o propósito de convencer Foggy Nelson e Karen Page de que era ele o Homem Sem Medo. Como forma de tornar a farsa ainda mais convincente, Matt (que se gaba do seu talento de representação) disfarçava a cegueira quando encarnava o irmão imaginário. Apesar de bizarra, a ideia funcionou e Mike foi "morto" pouco tempo depois. Mas não sem antes provocar uma pequena crise de identidade a Matt que, a dado momento, começou a ter dúvidas sobre quem seria o seu verdadeiro eu;
*Muito mais do que meros parceiros no combate ao crime, Demolidor e Viúva Negra formaram o primeiro casal de super-heróis a viver maritalmente sem estarem ligados pelos laços do matrimónio;

Heróis em união de facto.

*Naturalmente sedutor, Matt Murdock coleciona conquistas amorosas, mas só por uma vez subiu ao altar. Durante algum tempo, foi casado com Mila Donovan, também ela invisual. O enlace seria, contudo, rapidamente desfeito, depois de Mila constatar que Matt era ainda apaixonado por Karen Page; 
*A história do Demolidor serviu de inspiração à origem das Tartarugas Ninja, que, tal como ele, sofreram mutações genéticas após terem sido acidentalmente expostas a um isótopo radioativo;
*De longe o escriba mais influente do Homem Sem Medo, Frank Miller não foi, porém, aquele que durante mais tempo assinou as histórias do herói. Esse recorde de longevidade é detido por Brian Michael Bendis, que escreveu Daredevil durante 5 anos (contra os 4 de Miller);
*Desde 2011 que o Demolidor encerra o Top 10 dos Melhores Heróis da Banda Desenhada divulgado pelo IGN. Por sua vez, a revista Wizard colocou-o em 21º lugar na sua lista das 200 Melhores Personagens de Sempre da Banda Desenhada;
*Fora dos quadradinhos, o Demolidor fez a sua primeira aparição em 1981, num episódio avulso da série animada Spider-Man and his Amazing Friends. Com a sua estreia em ação real a ter lugar 8 anos mais tarde, no telefilme O Julgamento do Incrível Hulk no qual foi interpretado por Rex Smith. A estreia a solo no segmento audiovisual aconteceu apenas em 2003, ano em que a longa-metragem do herói cego estrelada por Ben Affleck chegou aos cinemas de todo o mundo. Em 2015, foi a vez do britânico Charlie Cox assumir o papel em Daredevil, série televisiva com a chancela da Marvel e da Netflix.

 Da esq. para a dir.: Rex Smith, Ben Affleck e Charlie Cox, três Diabos da Guarda de carne e osso.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa;
*Artigos sobre Bill Everett, Frank Miller, Rei do Crime e A Queda de Murdock disponíveis para leitura complementar.












12 novembro 2020

RETROSPETIVA: «AS AVENTURAS DE ROCKETEER»


  Qual cometa errante, um foguete humano sulca os céus da Cidade dos Anjos deixando um rasto de espanto à sua passagem. Mas o voo do misterioso Ás do Ares logo se vê enleado nas malhas de uma intriga internacional que pode alterar o curso da História.

Título original: The Rocketeer 
Ano: 1991
País: Estados Unidos da América
Duração: 108 minutos
Género: Ação / Aventura / Super-heróis
Produção: Walt Disney Pictures, Touchstone Pictures, Silver Screen Partners IV e Gordon Company
Realização: Joe Johnston 
Argumento: Danny Bilson e Paul De Meo
Distribuição: Buena Vista Pictures
Elenco: Bill Campbell (Cliff Secord / Rocketeer); Jenniffer Connelly (Jenny Blake); Alan Arkin (A. "Peevy" Peabody); Timothy Dalton (Neville Sinclair); Terry O'Quinn (Howard Hughes)
Orçamento: 35 milhões de dólares
Receitas globais: 46,7 milhões de dólares

Anatomia de um clássico

No princípio da década de 80, personagens de autor eram verdadeiras raridades. Devido à indiferença das grandes editoras, eram menos ainda aquelas que se conseguiam afirmar. Rocketeer, de Dave Stevens, foi honrosa exceção à regra.
Em 1982, Stevens, num arrojado projeto unipessoal que faria escola, criou uma banda desenhada inspirada nos heróis da literatura pulp e nos folhetins cinematográficos dos anos 1930 e 1940. Publicada sob os auspícios da defunta Pacific Comics, a história tinha como protagonista Cliff Secord, um audaz piloto de acrobacias que, depois de encontrar uma mochila a jato que lhe permitia voar, dividia o seu tempo a combater o crime e a vigiar de perto a sua voluptuosa namorada, na Los Angeles de 1938. A série obteve apreciável sucesso junto dos leitores e da crítica, tornando-se num clássico da 9ª Arte.


Dave Stevens (1955-2008) teve em Rocketeer a sua criação máxima.



Stevens acreditava, contudo, no forte potencial cinematográfico da sua obra. Convicção reforçada quando, logo no ano seguinte, o produtor Steve Miner adquiriu os respetivos direitos de adaptação. 
Por divergir em demasia do conceito original, a abordagem proposta por Miner não mereceu o aval de Stevens que, pouco tempo depois, resgatou os direitos da sua criação.
Um par de anos volvidos, em 1985, os direitos de Rocketeer transitaram para Danny Bilson e Paul De Meo. Admiradores da obra de Stevens, Bilson e De Meo consideraram inicialmente uma produção de baixo orçamento filmada a preto e branco e financiada por investidores independentes. A ideia passava por homenagear Commando Cody, uma das séries clássicas de ficção científica que influenciaram o universo de Rocketeer.
Nesse mesmo ano, o realizador canadiano William Dear aceitou o convite que lhe fora endereçado para dirigir o projeto. Impondo como condição única que a produção tivesse um orçamento à altura. De Dear partiram também as ideias de alterar o nome da namorada do herói de Bettie (ver Curiosidades) para Jenny e de ambientar o clímax do enredo a bordo de um dirigível.

Commando Cody (1952) foi uma das séries de ficção científica
 que influenciaram Rocketeer.

Após sucessivas recusas por parte de alguns dos maiores estúdios de Hollywood, a Walt Disney Pictures aceitou apadrinhar o projeto. Fê-lo, essencialmente, por motivos comerciais, já que os seus executivos acreditavam no enorme potencial de merchandising daquele que seria o primeiro filme de super-heróis do seu repertório.
O contrato celebrado com a Disney previa inicialmente uma trilogia a ser distribuída pela sua subsidiária Touchstone Pictures. Dando mostras de alguma prepotência, o diretor executivo da Walt Disney Studios, Jeffrey Katzenberg, decidiu, à última hora, que o filme seria lançado com a chancela da empresa-mãe. Consequentemente, todo e qualquer elemento adulto foi alterado ou suprimido. A principal "vítima" dessa política foi a namorada do herói que, de pin-up, passou a aspirante a atriz.
Às pressões dos executivos da Disney para adaptar o enredo aos tempos modernos, Bilson e De Meo contrapuseram com o sucesso da franquia de Indiana Jones. Convencidos de que um filme ambientado nos anos 30 poderia, afinal, ser apelativo para o público, os mandachuvas concordaram em manter o contexto histórico original.
Quando tudo parecia bem encaminhado, o projeto acabou inesperadamente encalhado numa espécie de purgatório criativo. De onde só seria resgatado cinco anos mais tarde. Durante esse lapso de tempo, sucederam-se as revisões do argumento e tanto Bilson como De Meo foram demitidos (e posteriormente readmitidos) mais vezes do que aquelas que se conseguem lembrar. Quem bateu com a porta de vez foi William Dear. Frustrado com tanta indefinição, o realizador abraçou outro projeto, sendo prontamente rendido por Joe Johnston. Além de ser fã da banda desenhada original, Johnston estava nas boas graças dos mandachuvas da Disney desde o enorme sucesso de Querida, Encolhi os Miúdos (1989).

  Rocketeer foi o segundo filme dirigido por Joe Johnston que, 20 anos depois,
 dirigiria Capitão América - O Primeiro Vingador.

Após nova revisão do argumento, o filme entrou em pré-produção nos primeiros meses de 1990. À procura de um blockbuster estival, os executivos da Disney desejavam Johnny Depp como cabeça de cartaz. Dave Stevens e Joe Johnston, acreditavam, porém, que Bill Campbell seria a escolha ideal e, desta feita, a vontade de ambos acabaria por prevalecer.
Menos controversa foi a escolha de Jenniffer Connelly para interesse amoroso do herói. Apesar da sua juventude (ou por causa dela), Connelly impôs-se às atrizes consagradas (Diane Lane, Kelly Preston e Elizabeth McGovern) que lhe disputaram o papel.
Quando, por fim, as filmagens arrancaram, em setembro de 1990, Dave Stevens fez questão de acompanhá-las de perto. Contando com a cumplicidade de Johnston, o criador de Rocketeer esforçou-se por manter, tanto quanto possível, o controlo artístico face aos eventuais desmandos da Disney. 
A mesma Disney que, entretanto, alocaria 10 milhões de dólares extra à produção (originalmente orçada em 25 milhões) ao aperceber-se da grande envergadura da mesma. 
À derrapagem orçamental somou-se uma derrapagem cronológica. Contratempos de ordem técnica e meteorológica ditaram um atraso de duas semanas na conclusão das filmagens, que tiveram lugar em diferentes pontos da Cidade dos Anjos.
A estreia mundial de The Rocketeer teve lugar a 19 de junho de 1991, no El Capitan Theatre, tornando-se, assim, a primeira película a ter essa honra em mais de dois anos, período durante o qual obras de restauro tinham obrigado ao encerramento do mítico cinema de Los Angeles. Prejudicado pela forte concorrência de Robin Hood - O Príncipe dos Ladrões e Exterminador Implacável 2, as receitas de bilheteira de Rocketeer ficaram aquém das expectativas. Em contrapartida, as críticas foram, no cômputo geral, positivas, com o filme a receber nomeações para prémios importantes.

Bill Campbell e Jenniffer Connelly
formaram o par romântico de Rocketeer.

Enredo

Los Angeles, 1938. Dois homens da quadrilha de Eddie Valentine roubam um foguete portátil a Howard Hughes, o milionário excêntrico apaixonado por aeronáutica. Com a polícia no seu encalço, a fuga dos bandidos desemboca num aeródromo nos arredores da cidade.
O carro onde seguem invade a pista de aterragem no preciso momento em que Cliff Secord, um ás dos ares, ensaia o pouso do seu monomotor Gee Bee. Da violenta colisão resulta o despiste dos dois veículos. 
Deixando para trás o comparsa sem vida, o condutor do automóvel consegue escapar. Não sem antes esconder o aparato surripiado no cockpit de um velho biplano estacionado num hangar próximo.
Com o seu avião inoperacional em vésperas de uma importante corrida aérea, Cliff tem a sua carreira comprometida. Enquanto Peevy, o seu mecânico e mentor, avalia os danos da aeronave, Cliff encontra o foguete portátil escondido no biplano. Um obséquio do destino que lhe mudará para sempre a vida.

Cliff e Peevy após um teste malsucedido do foguete.

Longe dali, o garboso astro de cinema Neville Sinclair, que encomendara o roubo do foguete a Eddie Valentine, é informado do sucedido no aeródromo. Sem perder tempo, envia Lothar, o seu monstruoso guarda-costas, para interrogar o condutor. Intimidado pelo brutamontes, este revela o local exato onde escondeu o aparato. 
Jenny Blake, namorada de Cliff e aspirante a atriz, consegue um pequeno papel no mais recente filme de capa e espada protagonizado por Neville Sinclair. Ao descobrir que o namorado de Jenny trabalha no aeródromo onde o aparato se encontra escondido, Sinclair, a pretexto de discutirem as cenas conjuntas, convida a jovem para jantar.

Neville Sinclair planeia seduzir a namorada de Cliff.

Durante um concorrido espetáculo de acrobacias aéreas no dia seguinte, Malcom, um velho amigo de Cliff e Peevy, vê-se em apuros quando o motor do seu decrépito avião deixa de funcionar em pleno voo. Quando a tragédia parece inevitável, Cliff, apetrechado com o foguete portátil e um capacete-leme projetado por Peevy, galga o céu e salva o amigo. Façanha testemunhada por uma multidão incrédula de espectadores e jornalistas.
Batizado de Rocketeer (Foguete) pela imprensa, Cliff torna-se a grande sensação do momento, atraindo a atenção indesejada do FBI, de Neville Sinclair e da quadrilha de Eddie Valentine. Todos querem deitar a mão ao foguete e todos se interrogam acerca da identidade do misterioso homem voador.
Nesse mesma noite, Cliff e Peevy recebem a visita de Lothar, incumbido por Sinclair de recuperar o foguete. A súbita chegada do FBI coloca o trio em fuga, mas Lothar consegue levar consigo os esquemas detalhados do aparelho desenhados por Peevy.
Ainda mal refeitos do susto, Cliff e Peevy procuram refúgio no restaurante do aeródromo, mas são encurralados por asseclas de Eddie Valentine. É através deles que ficam a saber do envolvimento de Neville Sinclair no roubo do foguete e do encontro deste com Jenny.
Quando tudo parecia perdido, os proprietários do restaurante conseguem expulsar os invasores, mas uma bala perdida perfura o tanque de combustível do foguete. À falta de solução melhor, Peevy improvisa um remendo com uma pastilha elástica mastigada por Cliff.
Ignorando os avisos de Peevy, Cliff cruza velozmente os céus da cidade, tendo como destino o glamoroso clube noturno onde Jenny janta a sós com Sinclair. O repasto é interrompido pela entrada de rompante de Rocketeer. Instantes depois de ter revelado o seu segredo à namorada, Cliff vê-se cercado pelo bando de Valentine e Sinclair aproveita a distração para raptar Jenny.

O Ás dos Ares em ação.

Na luxuosa cobertura de Sinclair, Jenny descobre que ele é um agente nazi e consegue escapulir-se, apenas para ser recapturada logo em seguida. Sinclair obriga-a então a enviar uma mensagem a Cliff: o foguete em troca da vida da namorada. A entrega terá lugar no Observatório Griffith.
Momentos antes de ser preso pelo FBI e levado à presença de Howard Hughes e Peevy, Cliff consegue esconder o foguete num local seguro. Hughes explica que o dispositivo é na verdade um protótipo similar àquele que cientistas alemães vêm tentando, ainda sem sucesso, desenvolver para fins militares.
Para horror dos presentes, Hughes exibe um filme de propaganda nazi, no qual um exército de soldados voadores equipados com mochilas a jato invadem os EUA. Quando o milionário revela que o FBI procura identificar um espião nazi em Hollywood, Cliff deduz tratar-se de Neville Sinclair.
Cliff recusa restituir o foguete alegando precisar dele para resgatar a namorada. Na fuga que se segue, deixa acidentalmente uma pista acerca do seu destino. 

Donzela em apuros.

No Observatório Griffith, Sinclair, acompanhado por Eddie Valentine e sua quadrilha, exige a Cliff que lhe entregue o foguete. Mas, quando Cliff expõe Sinclair como agente nazi, o ator vê-se subitamente na mira dos seus antigos aliados. Que, por sua vez, são cercados por um destacamento de soldados alemães fortemente armados, que se haviam mantido escondidos nas sombras.
Ato contínuo, o dirigível alemão Luxemburgo (de visita aos EUA em suposta missão de paz) desce sobre a cúpula do Observatório para evacuar Sinclair. 
Subitamente, porém, agentes do FBI entram em cena e unem forças com o bando de Valentine contra os nazis. Aproveitando a confusão instalada, Sinclair e Lothar conseguem escapar, arrastando Jenny para bordo do Luxemburgo.
Cliff voa no encalço do dirigível e consegue invadir a cabine de comando da aeronave. Enquanto Cliff luta com Sinclair, Jenny ateia acidentalmente fogo à cabine ao disparar uma pistola sinalizadora.
Sinclair toma novamente Jenny como refém e exige a Cliff que lhe entregue o foguete. Cliff acede, mas só depois de retirar discretamente a pastilha elástica que cobria o furo no tanque de combustível do aparelho.
Sinclair alça voo, mas a fuga de combustível provoca a explosão do foguete. Envolto em labaredas, o vilão despenca em direção ao solo, embatendo violentamente no sinal publicitário "Hollywoodland" que encima uma colina. 
Centenas de metros acima, Lothar é também ele consumido pelas chamas que devoram o Luxemburgo. Momentos antes da aeronave explodir, Cliff e Jenny são resgatados por um autogiro pilotado por Howard Hughes. 
Dias depois, o milionário presenteia Cliff com um novo monomotor Gee Bee e uma embalagem de pastilhas elásticas Beemans, as preferidas do Ás dos Ares. Após a saída de Hughes, Jenny devolve a Peevy os esquemas do foguete que encontrara na casa de Sinclair. Radiante, Peevy anuncia que, com ligeiras modificações, será capaz de construir um modelo aprimorado. 
 
Trailer


Prémios e nomeações

Indicado para um Saturn Award e para um Hugo Award na categoria de Melhor Filme de Ficção Científica, As Aventuras de Rocketeer perderia ambos para Exterminador Implacável 2: Dia do Julgamento. 
A título individual, Jenniffer Connelly foi distinguida com o Saturn Award para Melhor Atriz Secundária, ao passo que a figurinista Marilyn Vance arrebatou o prémio para Melhor Guarda-Roupa. Ken Ralston, supervisor de efeitos especiais, também foi nomeado no segmento correspondente, mas acabaria por não sair vencedor.
Na listas dos cem melhores filmes de super-heróis divulgada em 2019 pela Paste (publicação independente especializada em música e entretenimento), As Aventuras de Rocketeer surge em 50º lugar, à frente, por exemplo, de Homem de Ferro 2 e O Cavaleiro das Trevas Renasce.

Curiosidades

*Na banda desenhada original, a namorada de Cliff Secord é ninguém menos do que Bettie Page. Dave Stevens inspirou-se na escultural modelo dos anos 1950 para criar o interesse amoroso do seu herói. Após o lançamento do filme, Stevens, sentindo-se em dívida para com a sua musa (então quase septuagenária), enviou-lhe um cheque pelo correio. Sensibilizada com o gesto, Bettie fez questão de conhecer o seu admirador e os dois ficaram bons amigos até à morte de ambos, em 2008;

Betty Page serviu de modelo à namorada de Cliff Secord na BD original.
*Neville Sinclair é vagamente baseado em Errol Flynn, um dos maiores galãs da era dourada do cinema, sobre quem recaiu a suspeita de ter sido um espião nazi. Tese sustentada numa biografia não autorizada do ator assinada por Charles Higham. Apesar da parca credibilidade da obra, essa informação nunca foi desmentida pelo visado;
*A reação da quadrilha de Eddie Valentine à revelação de que Neville Sinclair trabalhava para o III Reich reflete a postura do crime organizado norte-americano durante aquele período histórico. Se os mafiosos italianos execravam o fascismo devido à perseguição movida por Benito Mussolini aos clãs sicilianos, os seus homólogos judeus odiavam o regime antissemita de Adolf Hitler e tudo o que a ele estava associado. Em virtude desses inimigos comuns, os gângsteres foram preciosos aliados do Governo federal nas suas operações de contraespionagem;
*Doc Savage, o herói das novelas pulp dos anos 1930, foi o inventor do foguete portátil de Rocketeer na história original. A fim de evitar pedidos de licenciamento à Conde Nast - editora detentora dos direitos do Homem de Bronze - a Disney optou por atribuir a patente a Howard Hughes, génio visionário e pioneiro da aviação comercial;
*Foram utilizados dois modelos diferentes do foguete na rodagem do filme: um fabricado em metal e que expelia chamas à retaguarda, outro revestido com fibra de vidro que, por ser mais leve, era adequado para as cenas em que o aparelho se encontrava inativo;
*Por causa da sua difícil manobrabilidade e da sua propensão para se despenhar, o monomotor Gee Bee pilotado por Cliff Secord foi sugestivamente alcunhado de "Caixão Voador". Sendo a respetiva aterragem uma manobra particularmente perigosa, a aeronave usada no filme foi autorizada a executá-la apenas as vezes estritamente necessárias;
*Não é por acaso que as pastilhas elásticas Beemans têm um papel crucial no filme. São elas as preferidas dos pilotos verdadeiros, não apenas de Cliff Secord. Enquanto as pastilhas de outras marcas compensam apenas a pressão atmosférica, as Beemans ajudam, também, a apaziguar estômagos nervosos. O segredo está num antiácido (pepsina) presente na sua composição;

As Beemans são uma espécie de amuleto da sorte
 para pilotos da vida real.

*Apesar do seu confesso pavor de voar, Bill Campbell sentia-se perfeitamente confortável durante a rodagem das cenas em que se encontrava suspenso por um cabo a vários metros de altura. A sua preparação para o papel resumiu-se a ler a banda desenhada original e a cortar o cabelo de forma a parecer-se mais com a sua personagem;
*Dave Stevens fez um pequeno cameo. Era ele o piloto de testes que, no filme de propaganda nazi, explode durante o ensaio falhado da mochila a jato;
*O cartaz promocional do filme ao estilo Art Déco que abre este artigo homenageia o colossal monumento a Yuri Gagarin (o primeiro homem a viajar no espaço) erigido em Moscovo por ocasião dos Jogos Olímpicos de 1980 realizados na ex-capital soviética;

Com 42,5 metros de altura e 12 toneladas de peso,
 a estátua de Yuri Gagarin foi esculpida em titânio,
o mesmo metal usado nas naves espaciais.

*O filme teve direito a duas adaptações literárias saídas das penas de outros tantos autores. Aquela que se dirigia ao público em geral (a outra destinava-se à audiência infantil) teve assinatura de Peter David, um dos mais aclamados e prolíficos argumentistas dos comics das décadas de 80 e 90. Em Portugal, a obra foi publicada, logo em 1991, pela Europa-América no formato de livro de bolso;
*Apesar da tépida prestação de bilheteira ter inviabilizado a programada sequela, o filme deu origem a uma série animada. Exibida desde finais de 2019 no Disney Channel e no Disney Junior, The Rocketeer acompanha as aventuras de Kit Secord, a bisneta de Cliff Secord que, no dia do seu 7º aniversário, herda a mochila a jato que transformou o seu antepassado numa lenda.

Veredito: 70%

As Aventuras de Rocketeer é um filme de super-heróis de sabor diferente. Não só pelo seu estilo marcadamente retro, mas, sobretudo, por não se tratar de um pastiche de Super-Homem ou Batman. Em vez de um alienígena superpoderoso a sair em defesa do modo de vida americano ou de um vigilante a fazer justiça pelas próprias mãos, tem como protagonista um homem comum, a quem o acaso concede o ensejo de realizar coisas extraordinárias.
Numa época em que o cinismo começava a insinuar-se em produções similares (e também nos comics), As Aventuras de Rocketeer relembra-nos que o verdadeiro heroísmo provém do coração, e que em cada um de nós habita um herói à espera de poder fazer a diferença.
Assistir a esta película é como embarcar numa emocionante viagem ao passado. Impregnado com uma atmosfera nostálgica, As Aventuras de Rocketeer é um salutar lembrete de uma época de maior simplicidade e inocência. Uma época em que heróis e vilões agiam em conformidade, sendo fácil distingui-los.
Abusando dos jogos de luz e sombra típicos dos policiais noir, As Aventuras de Rocketeer revisita vários clichês dos folhetins cinematográficos dos anos 30 e 40: um herói com coração de ouro, uma linda donzela em apuros e um vilão carismático. O filme copia, de resto, a fórmula consagrada de Superman, The Movie, que consiste em escalar um desconhecido para o papel principal e um astro de primeira grandeza (Timothy Dalton dava, por aqueles dias, vida a James Bond) para interpretar o vilão de serviço.
Apesar da inegável qualidade do elenco (até Bill Campbell surpreende pela positiva), as personagens não são bem desenvolvidas e nem é preciso. A Joe Johnston interessavam arquétipos e, em razão disso, cuidou de apresentá-los da forma mais direta possível, vinculando-os às suas características definidoras. Estratégia cristalizada, por exemplo, na apresentação de Neville Sinclair. Na sua aparição inicial, o vilão surge de costas, posicionamento que denuncia a dualidade do seu caráter.
Fortemente influenciado pelos filmes de 007 e Indiana Jones, As Aventuras de Rocketeer desenvolve de maneira empolgante a sua mistura de ação, humor e fantasia. Apesar da invulgar profusão de tiroteios num filme que se queria para toda a família e do terceiro ato mais corrido do que o necessário, o clímax a bordo do dirigível parece saído diretamente de um episódio de Commando Cody, com efeitos especiais a condizer. 
Ainda assim, o filme parece imune ao gradual processo de oxidação decorrente da passagem dos anos e conserva intacto o seu apelo nostálgico. Sendo, por conseguinte, uma ótima sugestão para uma matiné caseira nestes tempos de confinamento coercivo. 
Mesmo não sendo sublime, As Aventuras de Rocketeer é, outrossim, um excelente exemplo de como adaptar uma banda desenhada ao grande ecrã sem vandalizar o conceito primordial. Esse é, irrefragavelmente, um dos méritos que o transformaram numa obra de culto.

Voo para a eternidade.




*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
















02 outubro 2020

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «DEUSES E MORTAIS»

   
    Antes que Ares desencadeia a derradeira conflagração mundial, Diana terá de semear a paz, vertendo a cintilante luz da Verdade nos corações dos homens envenenados pelo Deus da Guerra. Conseguirá a novel campeã das Amazonas superar tamanha prova de fogo? 

Título original: Gods and Mortals
Editora: DC 
País: Estados Unidos da América
Autores: George Pérez (argumento e arte) & Greg Potter e Len Wein (diálogos)
Publicado em: Wonder Woman Vol.2 #1-7 (fevereiro a agosto de 1987)
Personagens: Mulher-Maravilha, Ares, Rainha Hipólita, Amazonas de Themyscira, Deuses Olimpianos, Steve Trevor, Etta Candy, Julia Kapatelis, Vanessa Kapatelis, General Tolliver
Cenários: Monte Olimpo, Themyscira, Boston

Edições em Português 

Chegada às bancas norte-americanas em janeiro de 1987, Gods and Mortals foi lançada no rescaldo da Crise nas Infinitas Terras e em paralelo com a minissérie Legends. Logo no ano seguinte, a Abril brasileira lançaria a primeira versão da saga traduzida para Português. Nos números 39 a 45 de Super-Homem (1ªsérie), os leitores lusófonos puderam acompanhar os sete capítulos da epopeia da nova campeã das Amazonas no Mundo do Patriarcado.
Ainda por terras de Vera Cruz, desde 2005 que a Panini e a Eaglemoss se têm alternado no lançamento de volumes antológicos de Deuses e Mortais, o mais recente dos quais - com a chancela da segunda - data de abril de 2017.
Coincidindo com a estreia do filme da Mulher-Maravilha, em junho de 2017 a Levoir brindou os leitores lusitanos com a primeira versão da obra em Português europeu, sob o título Homens e Deuses.

A primeira edição portuguesa da saga 
teve a chancela da Levoir.

Filha Pródiga

No início dos anos 80, a Mulher-Maravilha debatia-se com uma inimiga mais perigosa do que qualquer deus vingativo ou vilão megalómano: a irrelevância. Malgrado o seu estatuto de personagem charneira da DC - formando com Super-Homem e Batman a famigerada Trindade - o repertório da Princesa Amazona incluía pouquíssimas histórias memoráveis. A esse prolongado estio narrativo somavam-se as inúmeras inconsistências que, desde a Idade de Prata, eivavam a continuidade da Editora das Lendas. 
Sendo verdade que esse fluxo caótico não poupava ninguém, não era menos verdade que a Mulher-Maravilha foi quem mais acabou submersa por ele. Apresentada ao mundo em outubro de 1941, tal como a restante Trindade, vinha sendo publicada sem interrupções desde as suas primícias na Idade de Ouro. No entanto, os efeitos da erosão do tempo eram muito mais notórios nela do que nos seus coevos masculinos. 
Sem embargo para o viés feminista que as infundia, as historietas originais da Mulher-Maravilha primavam pela simplicidade. Retratada como a princesa guerreira das Amazonas exiladas na Ilha Paraíso, Diana migrou para o Mundo dos Homens para combater o Nazismo. Tarefa a que se entregava com ardor quando não estava estava manietada, refletindo os fetiches sexuais do seu excêntrico criador, William Moulton Marston. 

Durante a Idade de Ouro, cenas de bondage eram
 uma constante nas histórias da Mulher-Maravilha.

À medida, porém, que as décadas iam rolando, a Mulher-Maravilha foi tendo a sua origem recontada e os seus poderes reformulados. Nos primórdios da Idade de Prata, os leitores aprenderam que a Princesa Amazona que lutara ao lado dos Aliados na II Guerra Mundial vivia, afinal, numa realidade paralela chamada Terra-2. No seu lugar surgiu, entretanto, uma nova versão da heroína - menos adepta do bondage - que também passaria por dramáticas transformações. Numa das suas fases mais polémicas, em meados da década de 60, Diana perdeu os seus poderes, abraçando temporariamente a mundanidade que a contaminara.
Desse e de outros desvarios editoriais resultou a diminuição do apelo da Mulher-Maravilha tanto para os leitores como para os escritores e desenhistas. Raramente recebida com entusiasmo por quem era escalado para o seu título mensal, Diana era encarada como uma espécie de enteada ou filha pródiga que ninguém queria assumir. Com vendas anémicas, a Princesa Amazona mirrava no que pareciam ser os seus anos crepusculares. 

Sem poderes, era a partir da sua boutique que,
nos anos 60, Diana combatia a injustiça.

Mesmo no Pós-Crise, quando todo o panteão DC passou por uma revitalização, ninguém parecia saber muito bem o que fazer com a Mulher-Maravilha. Com Batman e Super-Homem estabelecidos ex novo, a próxima etapa passaria, naturalmente, pela aplicação de idêntico tratamento à Princesa Amazona.
A espinhosa tarefa de reabilitar a decrépita Mulher-Maravilha recaiu inicialmente sobre a editora Janice Race e o escritor Greg Potter. Este apresentou algumas propostas interessantes, como a ideia de as Amazonas serem na realidade reencarnações de mulheres assassinadas por homens, ou a sugestão de transformar Boston no equivalente simbólico de Metrópolis ou Gotham City.
Ciente de que o êxito do projeto requeria um artista consagrado, aos olhos de Janice Race perfilou-se como escolha natural George Pérez. Com Marv Wolfman, Pérez produzira Crise nas Infinitas Terras, depois de ter assinado uma das melhores fases de sempre dos Novos Titãs.
Contrariamente ao que possa imaginar, Pérez estava longe de ser um admirador da Mulher-Maravilha. Do seu ponto de vista de feminista convicto, as narrativas da heroína eram um tudo nada disparatadas, porquanto promoviam estereótipos sexistas.  Segundo Pérez, isso fazia com que Diana estivesse frequentemente mais preocupada com frivolidades - como chegar a horas a um encontro romântico - do que em salvar o mundo. 
A perceção de Pérez começou a alterar-se quando, em vésperas de Crise nas Infinitas Terras, foi chamado a desenhar as histórias da Liga da Justiça da América, da qual a Mulher-Maravilha era membro fundador. 
Aos poucos, Pérez foi começando a perceber melhor a essência da personagem e a simpatizar com ela. Mas o ponto de inflexão só viria com uma história dos Novos Titãs ambientada na Ilha Paraíso e que contava com a participação especial da Princesa Amazona. Foi esse o momento eureca do artista. 
Pérez compreendeu finalmente o que diferenciava Diana do restante panteão da DC: a Mulher-Maravilha não é uma alienígena superpoderosa, tão-pouco uma justiceira fantasiada, mas sim um mito no entroncamento entre o mundo transcendente dos deuses e o mundo contingente dos mortais.  Aspeto fundamental que, segundo Pérez acreditava, havia sido escamoteado, por forma a aproximá-la mais de uma super-heroína tradicional. Reduzindo-a no processo a pouco mais do que uma contraparte feminina do Super-Homem.
Quando recebeu luz verde para, com Greg Potter, reescrever a origem da Mulher-Maravilha, Pérez decidiu aprofundar a natureza mitológica da personagem. Com esse objetivo em mente, dedicou meses ao estudo da Mitologia Grega. 

George Pérez redefiniu a Mulher-Maravilha.

Além de renomear a Ilha Paraíso de Themyscira (lar das Amazonas no mito clássico), Pérez explorou as ingerências dos deuses olimpianos nos assuntos terrenos e introduziu discursos deliberadamente pomposos acerca de virtude e destino. 
Num plano mais mundano, a nova série mensal da Princesa Amazona abordaria os perigos e as peculiaridades da forma como as mulheres são tratadas no Mundo do Patriarcado (outra atualização terminológica cunhada por Pérez). Apostado em contrariar lugares-comuns, Pérez privilegiou temáticas relacionadas com violência doméstica, misoginia e emancipação feminina. 
Apesar de ter mantido quase intactos os insinuantes paramentos da Mulher-Maravilha, Pérez limou discretamente algumas arestas. Livrando-se, por exemplo, dos saltos altos das botas. Afinal de contas, esse era um pormenor absurdo na indumentária de alguém que crescera isolada numa ilha e sem a mínima noção das modas do mundo exterior. 
Em Karen Berger, que rendeu Janice Race no posto de editora quando esta ficou de licença pré-natal, Pérez encontrou uma importante influência e uma caixa de ressonância vital, fornecendo-lhe o fundamental ponto de vista feminino. Preocupação incomum na época, Pérez queria tornar as histórias da Mulher-Maravilha atrativas para ambos os sexos.
Mais do que uma campeã do feminismo, Diana assumia-se no entanto como uma humanista profundamente crente na bondade intrínseca das pessoas, independentemente do género a que pertencem. A sua missão era espalhar uma mensagem de paz pelo convulso Mundo do Patriarcado.
Todo este investimento emocional de Pérez acabaria por frutificar. O resultado foi uma epopeia moderna que resgatou a Princesa Amazona do tenebroso submundo de Hades, devolvendo-a de novo ao Sol de Apolo como símbolo da Verdade que derrama a sua luz cintilante no coração dos homens.

Mito renascido.

Embaixadora da Paz

Depois de ter falhado uma caçada que lhe custou também uma das mãos, um homem primitivo regressa à sua caverna. Quando a sua parceira grávida tenta consolá-lo, ele agride-a com violência, matando-a.
De súbito, porém, o corpo sem vida da mulher começa a contorcer-se e uma voz sussurrante preenche a caverna. Perante o olhar estupefacto do homem, o cadáver a seus pés projeta um feixe de luz ofuscante que, num piscar de olhos, se eleva aos céus e desaparece. 
Milénios mais tarde, um concílio de divindades debate no Olimpo a criação de uma nova raça de mulheres mortais que sirvam de modelo à restante Humanidade. Perante o enfado de Zeus, Ares contesta a proposta apresentada por uma coligação de deusas lideradas por Artemis.

Hermes acorre ao Olimpo para participar no concílio dos deuses.

Interrompido o concílio sem vestígio de consenso, Artemis e suas aliadas - Atena, Héstia, Deméter e Afrodite - adentram a Caverna das Almas. À exceção de uma, todas as almas das mulheres mortas são usadas para criar as Amazonas.
Sob o comando das suas duas rainhas - Hipólita e Antíope - as Amazonas levam beleza e harmonia ao Mundo dos Homens. Agastado com a perda de influência, Ares instiga Héracles a atacá-las e aprisioná-las. 
Atena liberta Hipólita depois de esta lhe ter jurado que as suas irmãs não buscariam vingança. As Amazonas, contudo, ignoram a promessa da sua rainha e chacinam os homens que as haviam escravizado. 
Desse episódio resulta a cisão das Amazonas. Enquanto a fação que tem Antíope como rainha abala para parte incerta, a que é liderada por Hipólita é incumbida por Atena de aprisionar eternamente um inefável Mal no seu novo lar: uma ilha paradisíaca chamada Themyscira.
Séculos volvidos, Hipólita roga aos deuses por uma filha. Depois de esculpir um bebé de barro, as preces da rainha são finalmente atendidas. A última ocupante da Caverna das Almas renasce como uma Amazona agraciada com poderes divinos. Diana é o nome dado à primogénita de Themyscira.
Já adulta, a rebelde Diana desobedece a mãe ao participar, disfarçada, no torneio que definirá a novel campeã das Amazonas, que terá por missão viajar ao Mundo dos Homens para derrotar Ares. Após superar todos os desafios, Diana recebe um par de braceletes à prova de bala e a armadura cerimonial de uma guerreira sagrada. 

A nova campeã das Amazonas em todo o seu esplendor.

Antes de Diana empreender a sua jornada extramuros, Hermes entrega-lhe o Laço de Héstia, que compele qualquer um, deus ou mortal, a falar a verdade. De Harmonia, a insana e disforme filha de Ares, a princesa guerreira recebe um estranho amuleto que, supostamente, a ajudará a encontrar o Deus da Guerra.
Entretanto, um avião militar americano penetra o espaço aéreo de Themyscira. A bordo, o Coronel Steve Trevor tenta impedir que o seu copiloto - secretamente sob a influência de Ares - bombardeie a ilha abaixo. A aeronave desgovernada acaba por despencar no oceano, mas Diana salva o Coronel Trevor de morrer afogado. 
Longe dali, numa base militar localizada nos arredores de Boston, a Tenente Etta Candy encontra o corpo sem vida do General Kohler, o comandante de Steve Trevor. Recuperado dos ferimentos na Ilha da Cura, este concorda em ajudar Diana na sua missão e ambos são transportados por Hermes para o Mundo dos Homens.
Em Boston, Diana encontra na Professora Julia Kapatelis uma mentora e uma preciosa aliada. Enquanto ambas se esforçam por decifrar o amuleto ofertado por Harmonia, o Coronel Trevor é preso pelo homicídio do General Kohler. 
Instruídos por Ares, os filhos do Deus da Guerra entram em ação. Enquanto Fobos usa o coração de uma Górgona para construir uma estatueta, o seu irmão Deimos manipula soldados americanos e soviéticos a atacarem-se mutuamente. 
Depois de ter escapado da base militar, Steve Trevor procura a ajuda de Etta Candy. Nessa noite, uma estatueta entregue na residência da Professor Kapatelis ganha vida e transforma-se numa criatura chamada Podridão. Ao ser tocada por ela, Vanessa, a filha adolescente da Professora Kapatelis, envelhece várias décadas em poucos segundos.
No Olimpo, Atena observa, angustiada, o duelo entre Diana e Podridão. Enquanto a Deusa da Sabedoria questiona as capacidades da campeã das Amazonas, Etta Candy vasculha o gabinete do General Tolliver e encontra um ficheiro confidencial com a inscrição "Projeto Ares". 
Com a luta entre ambas a ser televisionada em direto, Diana consegue finalmente derrotar Podridão. No dia seguinte, a imprensa cunha o nome que a imortalizará: Mulher-Maravilha.

Rendida às proezas de Diana,
a imprensa batiza-a de Mulher-Maravilha.

Enquanto Vanessa Kapatelis luta pela vida no hospital, a sua mãe e Diana prosseguem o estudo do amuleto que parece ser a chave para desvendar os imperscrutáveis desígnios de Ares.
Com o ascendente do Deus da Guerra a atingir o seu supino, a tensão político-militar aumenta entre EUA e URSS. Numa corrida contra o tempo, Etta Candy e Steve Trevor apresentam o Projeto Ares a Diana. Ao sobrepor o amuleto num mapa-múndi, a Mulher-Maravilha percebe que o padrão da peça corresponde à localização de várias bases nucleares em diferentes pontos do globo. Para estarrecimento geral, fica claro que Ares planeia desencadear a III Guerra Mundial. 
Nesse preciso momento, o General Tolliver e os seus homens tomam de assalto uma base de mísseis americana. Ignorando esse facto, Diana e a sua pandilha aventuram-se nos domínios dos filhos do Deus da Guerra. Após enfrentar o seus maiores medos, o grupo consegue, por fim, apoderar-se da segunda metade do amuleto.
Teletransportados por ele à base militar controlada pela tropa do General Tolliver,  Diana e os seus amigos conseguem impedir um ataque nuclear à URSS. Ares entra em cena e, após uma breve peleja, derrota facilmente a campeã das Amazonas. 
Diana usa, porém, a força que lhe resta para envolver o seu oponente com o Laço de Héstia. Ao fazê-lo, o Deus da Guerra tem uma visão dantesca das consequências catastróficas das suas ações: sobre a Terra devastada por um holocausto nuclear marcha um infindável cortejo de horrores. Sem adoradores, Ares estará condenado à irrelevância e a uma existência solitária até ao fim dos tempos. Antes de libertar Diana, Ares exorta-a a salvar a Humanidade de si mesma. 

Ares derrotado pela Verdade.

Enquanto, no Olimpo, se exulta com a derrota do Deus da Guerra, Diana, gravemente ferida, é submetida ao Rito da Revitalização na Ilha da Cura. Em resposta às súplicas desesperadas de Ártemis, Zeus ordena a Poseidon que salve a filha de Hipólita. 
De regresso a Boston, Diana fornece aos médicos a poção mágica para reverter a condição de Vanessa Kapatelis. Em sinal de apreço, a mãe da jovem promete ajudar Diana a espalhar a sua mensagem enquanto Embaixadora da Paz. Para isso, contará com a ajuda de Myndi Mayer, uma ambiciosa publicista que organiza uma gigantesca campanha mediática para apresentar Diana ao mundo.
Num epílogo, a arqueóloga Barbara Minerva fica a par das incríveis proezas da Mulher-Maravilha e cobiça-lhe o laço dourado. A Mulher-Leopardo encontrou a sua presa...

Apontamentos

*O advento de Diana ao Mundo do Patriarcado coincidiu com os eventos de Lendas, o primeiro crossover do Universo DC pós-Crise. Significando isto que a Mulher-Maravilha entrou em cena vários anos após outros heróis, como Super-Homem, Batman ou Lanterna Verde, o terem feito. Mercê dessa vicissitude, a encarnação moderna da Princesa Amazona, por contraponto à sua versão da Idade de Prata, esteve ausente do ato fundador da Liga da Justiça, tendo sido retroativamente substituída pela Canário Negro como única representante feminina no elenco original da equipa;
*Fruto da sua educação no seio de uma sociedade matriarcal isolada do mundo há 3000 anos, Diana chega aos Estados Unidos sem o mais ínfimo conhecimento da língua inglesa. Em todas as versões prévias da sua origem, ela era fluente no idioma após estudá-lo na Ilha Paraíso;
*Steve Trevor, tradicional interesse amoroso da Mulher-Maravilha, surge agora retratado como um homem na casa dos quarenta que representa a figura de um irmão mais velho para Diana. Numa surpreendente troca de papéis, mais tarde Steve desposaria Etta Candy;

Diana e Steve , uma velha história de amor.

*Na continuidade pré-Crise, "Mulher-Maravilha" era o título outorgado pelas Amazonas à sua campeã, ao passo que, nesta nova versão, o nome  foi-lhe colado pelos media americanos, pouco tempo após a sua aparição em terras do Tio Sam. Segundo Myndi Mayer, a ideia era prevenir confusões com a Princesa Diana de Gales; 
*Originalmente, o traje da heroína era confecionado pela Amazonas para replicar deliberadamente a bandeira dos EUA, como forma de conquistar a simpatia e confiança do povo americano. Já na versão moderna da história, a conceção do traje precedeu em vários anos o nascimento de Diana. Tratando-se agora de uma armadura cerimonial inspirada nas insígnias ostentadas por uma pilota americana cujo avião se despenhara em Themyscira, durante a II Guerra Mundial.  O nome desse mulher era Diana Rockwell Trevor (mãe de Steve Trevor) e foi em sua homenagem que a primogénita da Rainha Hipólita foi batizada. Foi também essa a explicação airosa de George Pérez para a incongruência de uma personagem da mitologia helénica possuir o nome da deusa romana da caça;
*Como é apanágio da maioria dos seus congéneres heroicos, o código de honra da Mulher-Maravilha clássica desencorajava-a de matar os seus oponentes. Mais pragmática, a nova versão da princesa guerreira não tem grandes escrúpulos em empregar força letal sempre que o contexto o justifique;
*Criação do próprio William Moulton Marston, Ares estreou-se em Wonder Woman #1 (junho de 1942). Apesar de não ter sido o primeiro supervilão a testar a campeã das Amazonas (essa honra coubera, meses antes, à Doutora Veneno), rapidamente foi arvorado a seu arqui-inimigo. Pai de Hipólita, o Deus da Guerra era, originalmente, avô de Diana. Esse grau de parentesco foi no entanto revisto no contexto dos Novos 52. Ao ser revelado que a Princesa Amazona era, na verdade, uma das filhas ilegítimas de Zeus, Ares passou a ser seu meio-irmão;

Ares, o Deus da Guerra.

*A relação de Héracles (denominação grega para o semideus romano celebrizado como Hércules) com a sua contraparte mitológica é difusa. A despeito das referências a Euristeu, arquirrival do Leão do Olimpo, e aos Doze Trabalhos, o ataque de Héracles às Amazonas afigura-se mais como uma conquista pessoal. De igual modo, a sua proverbial loucura parece derivar mais da influência de Ares do que de Hera, a esposa despeitada de Zeus de quem Héracles é filho bastardo;
*Ainda que em momento algum surja identificado pelo nome, o porta-voz da Casa Branca que participa na conferências de imprensa convocada de emergência invoca Larry Speakes (1939-2014), que exerceu idênticas funções na Administração Reagan;
*Time, Life, 60 Minutes e The Phil Donahue Show foram algumas das publicações e dos talk-shows que colaboraram com a campanha de Relações Públicas da Mulher-Maravilha, após o seu triunfo sobre Ares. Movimento cívico de cariz feminista, também a National Organization for Women (NOW) se associou à iniciativa;
*Deuses e Mortais encabeça o Top 10 das histórias da Mulher-Maravilha divulgado em 2019 pelo Comic Book Resources, um dos mais antigos e respeitados sites sobre super-heróis;
*Patty Jenkins, realizadora de Mulher-Maravilha (2017) reconheceu que Deuses e Mortais foi uma das principais inspirações para o filme e incluiu George Pérez no rol de autores homenageados nos créditos finais.

2017 marcou o advento
 da Mulher-Maravilha aos cinemas.


Vale a pena ler?

A premissa para a criação das Amazonas é deveras interessante. Invocando, involuntariamente, um dos cantos mais célebre de Os Lusíadas - o Concílio dos Deuses - Pérez e Potter fizeram um excelente trabalho ao darem voz e personalidade às principais deidades olimpianas. Cada uma delas expressando a sua opinião sobre o propósito que deveria determinar a conceção da nova raça que habitaria entre os humanos, servindo-lhes de ideal.
Do plenário no Olimpo resulta óbvio para o leitor que a Ares interessava somente semear a guerra e a destruição no Mundo dos Homens. Era esse o motivo da sua oposição à criação de uma nova raça que os seus pares desejavam guiar para o caminho da sabedoria e da veneração à divindade. Residindo aqui outro elemento notável da narrativa: a dependência dos deuses em relação aos seus adoradores.
Bebendo inspiração nas ilusões artísticas do holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), Pérez desenhou o Olimpo de forma peculiar, sem noção daquilo que é "em cima" ou "em baixo". É possível observar, também, a sua proximidade com modelos arquitetónicos da Grécia Clássica, com colunas dóricas, jónicas e coríntias harmoniosamente misturadas com elementos modernos.
Os conflitos entre os deuses e a difícil relação de Diana com a sua mãe (um típico conflito geracional), ajudam a prender ainda mais a atenção do leitor numa história magistralmente escrita, em que o compasso é marcado pela ação e pela intriga. Um dos pontos mais interessantes da trama é, aliás, o subterfúgio de Diana para levar Ares de vencida. Ao invés de derrotá-lo com recurso aos seus formidáveis poderes, a Princesa Amazona obriga-o simplesmente a contemplar as consequências das suas ações. 
Sem humanos para guerrearem entre si, a existência do velho Deus da Guerra esvaziar-se-ia de significado. Apesar de evitar o cliché, afigura-se pouco plausível que Ares estivesse tão cego ao ponto de não ter antecipado o alcance dos seus atos. Uma epifania após milénios de planificação é de uma grande conveniência narrativa. Desfecho que, ainda assim, não retira brilho à história.
Apresentando uma versão aprimorada da Mulher-Maravilha, mais focada na sua vertente mitológica, Deuses e Mortais expande a história que todos conhecíamos, ao invés de modificá-la deixando-a irreconhecível. Tem ainda o condão de restaurar o fascínio de uma personagem que, até então, poucos haviam sabido interpretar. Recomendo vivamente a sua leitura.

"O mito é o nada que é tudo." (Fernando Pessoa).



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Textos sobre George Pérez e Crise nas Infinitas Terras disponíveis para leitura complementar.