05 janeiro 2017

ETERNOS: DICK SPRANG (1915-2000)




  Sempre na sombra de Bob Kane, de quem foi o "fantasma" favorito, influenciou decisivamente a estética das histórias do Batman. Da sua imaginação saiu também um dos mais icónicos modelos do Batmobile. O merecido reconhecimento só chegaria, contudo, após ter trocado a 9ª Arte pela exploração arqueológica, outra das suas paixões.

No já longínquo verão de 1915, a pequena cidade de Fremont, no estado norte-americano do Ohio, viu nascer aquele que viria a ser o seu segundo filho mais ilustre. No campeonato local de notoriedade, Richard W. Sprang (Dick para os mais íntimos) perde apenas para Rutherford B. Hayes, o advogado da terra que, entre 1877 e 1881, ocupou a Sala Oval. O antigo Presidente dos EUA seria, de resto, uma das duas celebridades à sombra das quais Sprang se habituaria a viver. Sendo a outra Bob Kane, cocriador do Batman sobejamente conhecido por ser avesso a dividir os louros com quem quer que fosse.
Da infância e vida familiar de Dick Sprang quase nada se sabe. Ainda adolescente, desdobrava-se entre os bancos da escola e as agências publicitárias da sua cidade natal. Onde, a troco de um punhado de dólares, coloria cartazes e panfletos depois das aulas. Embora modesto, esse seu primeiro emprego dotou-o do arcaboiço necessário para fazer face às exigências do ofício de ilustrador que abraçaria já homem feito.
Segundo Jerry Bails, eminente historiador da Nona Arte, quando ainda frequentava o liceu, na viragem da década de 1930, Dick Sprang começou a colaborar com a Thrilling Publications, editora especializada em magazines pulp. Essa não foi, porém, a única incursão do jovem artista nesse tipo de publicações que, à época, gozavam de enorme popularidade sobretudo entre o público juvenil.
Sem nunca negligenciar os estudos, Sprang emprestava também o seu traço às historietas do mesmo género publicadas com os selos da Columbia Publications e da Street & Smith. Transpondo dessa forma as fronteiras do seu Ohio natal, visto que esta última estava sediada em Nova Iorque. Cidade para onde o jovem Sprang se mudaria anos depois.


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Em cima: Dick Sprang na juventude.
Em baixo: Capa da sua autoria para um dos magazines pulp com que colaborou.
Com o diploma do secundário na mão, por volta de 1934 Dick Sprang arranjou emprego como cartunista num tabloide da cidade vizinha de Toledo. Demonstrando uma admirável capacidade de trabalho que se tornaria seu cartão de visita, não cessou a sua colaboração com os vários magazines pulp onde dera os primeiros passos como ilustrador e, ocasionalmente, como editor.
Famoso pela sua inatacável ética profissional, numa entrevista dada em 1987 Sprang descreveu nos seguintes termos os primórdios da sua notável carreira: "Eu fazia parte do departamento de arte de um jornal, onde tínhamos diariamente de cumprir religiosamente cinco prazos de entrega. Tínhamos outras tantas edições na rua que incluíam anúncios publicitários dos mais variados negócios, desde lojas de móveis a joalharias. Significando isto que, além dos cartunes humorísticos e das ilustrações que acompanhavam algumas das notícias, tínhamos ainda de desenhar os produtos que cada uma dessas empresas se propunha vender. Aprendi a usar gravadores para o fazer e a dominar como poucos as técnicas de impressão. Mas o mais importante foi ter aprendido o valor de um prazo. Que, para mim, é sagrado. Habituei-me, por isso, desde muito cedo, a trabalhar contra o relógio. Sem, no entanto, retirar esmero ao meu serviço. Temos de saber respeitar o nosso ganha-pão, pois só assim poderemos conservá-lo."

Retrato do Presidente Franklin D. Roosevelt desenhado por Dick Sprang.
E foi assim, com a mala a abarrotar de brio e esperança, que, nos primeiros meses de 1936, Dick Sprang trocaria a pacatez de Toledo pela azáfama da cidade insone. Em Nova Iorque trabalharia nos anos seguintes como ilustrador freelancer de diversos títulos pulp, sentindo-se como peixe na água. Tanto que, de quando em vez, se aventurava na escrita dessas historietas protagonizadas por cowboys, detetives particulares e toda a estirpe de heróis temerários que, com as suas aventuras mirabolantes, incendiavam a imaginação a miúdos e graúdos.
Facto pouco conhecido, em 1938 saíram da pena de Dick Sprang os guiões de uma mão-cheia de episódios de Lone Ranger, o lendário folhetim radiofónico que deu a conhecer o mais afamado dos justiceiros mascarados do Velho Oeste. Personagem com a qual Sprang já havia, aliás, trabalhado um par de anos antes, quando arte-finalizou algumas das suas histórias aos quadradinhos.

Dick Sprang escreveu alguns episódios de Lone Ranger (1933-54).
A década seguinte começaria com a entrada dos EUA na II Guerra Mundial e o inexorável declínio da literatura pulp. Quadro pouco auspicioso que levaria Dick Sprang a tentar a sua sorte na florescente indústria dos comics, a viver então os seus anos dourados.
De facto, as histórias com super-heróis estavam na moda e, por isso, vendiam como pãezinhos quentes no inverno. Raro era o dia em que não surgia mais uma dessas figuras espampanantes. Parecendo, no entanto, haver sempre lugar para mais uma, tal era a sofreguidão dos leitores. Princípio aplicável, também, às editoras que, por esses dias, se acotovelavam por um lugar ao Sol num mercado em convulsão e que prometia fama e fortuna a quem nele se conseguisse afirmar.
Cavalgando essa onda de euforia criativa, Dick Sprang propôs sociedade a dois colegas de ofício, Norman Fallon e Ed Kressey, assim nascendo logo depois o Estúdio Fallon-Sprang. Operando a partir de um minúsculo apartamento no coração de Manhattan, o trio providenciava material artístico a editoras de menor dimensão sem recursos para a contratação de ilustradores residentes.
Apesar desse seu projeto ir de vento em popa, Dick Sprang aspirava a voos mais altos. Na esperança de que isso desse asas ao seu sonho, ainda em 1941 apresentou parte do seu portefólio a Whitney Ellsworth, o todo-poderoso editor-chefe da DC Comics. Que, impressionado com o talento do jovem artista e precavendo a mais que provável mobilização de Bob Kane(1) para a guerra, nem hesitou em contratá-lo para desenhar as histórias do Batman.
No entanto, aquilo que poderia ter sido um passaporte para a ribalta, esbarrou na cláusula contratual, imposta por Kane, que impedia qualquer artista, que não ele, de ser creditado pelo seu trabalho com o Cavaleiro das Trevas.
Dick Sprang engrossaria, assim, a extensa lista de desenhadores-fantasmas do Batman que, até meados dos anos 1960 - quando a citada cláusula foi por fim revogada - foram obrigados a permanecer incógnitos de modo a que o obeso ego de Bob Kane não fosse sequer beliscado ao de leve.
Edição dada à estampa em setembro de 1943, Batman nº18 assinalou, sem pompa nem circunstância, a estreia de Dick Sprang como desenhador do Homem-Morcego. Era dele o traço da Dupla Dinâmica que surgia em destaque na respetiva capa. Menos modesta seria a sua contribuição para a edição seguinte ao assumir a arte da capa e de três das quatro histórias nela inclusas, tendo ainda feito os esboços da quarta. Um verdadeiro teste à sua capacidade de trabalho que Sprang superou com distinção.

O primeiro trabalho de Dick Sprang em Batman nº18 (1943).
Sempre à sombra de Bob Kane, ao longo das duas décadas seguintes Sprang foi um obreiro anónimo dedicando-se quase em exclusivo ao Cruzado da Capa. Sem nunca cortar o cordão umbilical que o ligava à personagem, entre 1955 e 1963 (ano em que se retirou dos quadradinhos), foi o "fantasma" de Curt Swan(2) em World's Finest Comics, série mensal que apresentava as aventuras conjuntas da Dupla Dinâmica e do Super-Homem. Caberia, aliás, a Sprang desenhar o primeiro protótipo da Supergirl, a fim de testar a recetividade dos leitores a uma contraparte feminina do Homem de Aço.

Uma das capas de World's Finest Comics ilustradas por Sprang.
Paralelamente a tudo isto, os títulos periódicos do Homem-Morcego continuavam a ser abrilhantados pela singular arte de Dick Sprang. Cuja influência, embora desconhecida dos fãs, seria decisiva para a evolução visual do herói, bem como para o enriquecimento da sua mitologia.
Juntamente com Bill Finger (a quem só muito tardiamente a DC reconheceu a "paternidade" do Batman), em 1948 Dick Sprang introduziu um novo e carismático vilão nas histórias da Dupla Dinâmica: o Charada (3).
Dando rédea solta à sua criatividade, nesse mesmo ano Sprang apresentou também um novo modelo do Batmobile. Com linhas modernas e equipado com tecnologia de ponta, tornar-se-ia uma referência na história do veículo que há quase 80 anos serve de meio de transporte ao Cavaleiro das Trevas e seus ocasionais escudeiros. Motivos de sobra para que Bob Kane tenha confidenciado mais do que uma vez ter em Dick Sprang o seu "fantasma" favorito.



Charada e um novo Batmobile:
 duas das criações mais emblemáticas de Sprang para a Bat-universo.
Sprang sobressaía, de facto, entre a chusma de desenhadores-fantasmas que acolitavam anonimamente Bob Kane. Les Daniels, outro renomado estudioso da Nona Arte, não hesita mesmo em qualificá-lo como o artista supremo do Batman na chamada Idade de Prata dos comics. Segundo ele, Sprang conhecia como ninguém a forma como os mais pequenos liam as bandas desenhadas. Para os manter suspensos do que aconteceria ao virar de cada página, ele trabalhava meticulosamente na transição de painéis, conferindo desse modo maior fluidez à narrativa. Para a qual muito concorria a limpidez e o dinamismo que caracterizavam o seu traço.
Outra explicação possível para o desenvolvimento desse estilo poderá ser atribuída aos constantes atrasos de Bill Finger na entrega dos seus roteiros. Uma vez que estes começavam frequentemente a ser desenhados com o final em aberto, isso requeria um enorme jogo de cintura da parte de Sprang.
Nada disso teria sido, porém, possível sem a valiosa ajuda de Lora Sprang, a polivalente cara-metade de Dick Sprang. A quem ele, logo após ter sido contratado pela DC, tratara de ensinar os segredos da balonagem. Sob o pseudónimo de Pat Gordon, Lora, que era também fotógrafa freelancer, seria a letrista de largas dezenas de histórias do Batman, Super-Homem e outros até 1961, ano em que cessou a sua colaboração com a Editora das Lendas.
Dick Sprang incutiu maior dinamismo às aventuras de Batman e Robin.
Em busca de geografias mais arejadas, em 1946 o casal Sprang tinha-se mudado de armas e bagagens para Sedona, cidadezinha do Arizona que tem nas suas imponentes formações de areia vermelha o seu ex libris. Foi lá que Dick Sprang descobriu outra das suas paixões: a exploração arqueológica. Atividade à qual se dedicou de corpo e alma depois de ter abandonado, corria o ano de 1963, a indústria dos comics. E que lhe valeu a notoriedade que esta durante tanto tempo lhe sonegou.
Dessas suas prospeções no terreno resultaria, em 1952, um importante achado arqueológico. Em conjunto com um casal amigo, Dick Sprang trouxe à luz do dia umas ruínas Anasazi (tribo indígena desaparecida antes do advento dos europeus à América), nunca antes vistas pelo homem branco.
Fascinado também pela fotografia, Sprang tornar-se-ia nos anos seguintes um perito no mapeamento de antigos trilhos usados pelos pioneiros que, nos alvores do século XIX, haviam partido à conquista do Oeste bravio. A sua voz pode ser, de resto, ouvida em diversos registos áudio do National Park Service, agência federal à qual compete administrar a rede de parques naturais e de monumentos nacionais dos EUA.
A despeito de ter tido a sua obra parcialmente republicada em 1961, apenas em meados da década seguinte Dick Sprang obteve o merecido reconhecimento por parte dos fãs. Para quem, até então, por força das circunstâncias acima descritas, não passava de um perfeito desconhecido.
Subitamente basculado ao estrelato, nos anos seguintes Dick Sprang tornar-se-ia um habitué das convenções de banda desenhada e outros certames ligados à cultura pop. Quando não estava a distribuir autógrafos aos fãs embevecidos, vendia as suas reproduções de capas da Idade do Ouro a colecionadores endinheirados. Conservando, no entanto, intacta a sua proverbial modéstia.
Após ter ensaiado o seu regresso aos quadradinhos em 1987, através de colaborações esporádicas com a DC, em 1995 Sprang lançaria aquela que seria a sua obra testamentária: duas edições limitadas contendo litografias da sua autoria mostrando os segredos da Bat-Caverna e a galeria de personagens do Batman.
Segredos da Bat-Caverna revelados numa das litografias de Sprang.
Três anos antes, em 1992, Sprang fora agraciado com um Inkpot Award, galardão que distingue anualmente a nata dos iconoclastas. Prémio mais do que merecido, porém insuficiente para reparar a indignidade a que ele, à semelhança de tantos outros artistas da sua geração, havia sido sujeito.
Com a mesma discrição com que vivera, Dick Sprang despediu-se do mundo dos vivos em 2000, escassos meses depois de ter sido indicado para o Will Eisner Comic Book Hall of Fame. Deixando para trás  um impressionante espólio que vale a pena (re)descobrir. Sendo, portanto, da mais elementar justiça que eu, na minha dupla condição de fã do Batman e diletante da Nona Arte, renda aqui a minha singela, porém sentida, homenagem a este grande vulto dos quadradinhos. A quem o tempo se encarregou de resgatar ao ostracismo a que parecia condenado devido ao exacerbado narcisismo de alguns dos seus pares.

"A imortalidade é uma espécie de vida que adquirimos na memória dos homens."
 (Denis Diderot, filósofo francês do século XVIII)

(1) Perfil de Bob Kane: http://bdmarveldc.blogspot.pt/2011/10/eternos-bob-kane-1915-1998.html
(2)  Idem de Curt Swan: http://bdmarveldc.blogspot.pt/2013/07/eternos-curt-swan-1920-1996.html
(3) Prontuário do Charada: http://bdmarveldc.blogspot.pt/2013/11/galeria-de-viloes-charada.html

Galeria de capas desenhadas por Sprang:

































3 comentários:

  1. Belo texto. Limpo e caprichoso como o traço do biografado.
    Uma pergunta: é verdade que o seriado do Homem-Morcego dos anos 1960 tinha o tom cômico por se basear nas histórias escritas por Dick Sprang?

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    1. Agradeço, em primeiro lugar, os adjetivos simpáticos de que te socorreste para qualificar o meu texto. Quanto à questão que me colocas, a referida série televisiva do Batman refletia efetivamente o registo humorístico que, durante, a Idade da Prata subjazia às histórias da Dupla Dinâmica. O qual, por sua vez, foi adotado em resposta às sórdidas suspeições levantadas na obra "Sedução dos Inocentes". Tanto quanto sei, Dick Sprang nunca terá, contudo, assinado qualquer enredo do Batman, ocupado que estava a pajear um certo marajá dos quadradinhos.

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    2. Interessante.Pois no livro "Marvel, the Secret Story", o autor afirma que o tom jocoso tem influência no sucesso do Homem-Aranha, um dos maiores disparadores de observações engraçadinhas da editora de onde provém.

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