30 outubro 2018

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «CRISE DE IDENTIDADE»


   O misterioso assassinato da cara-metade de um membro da Liga da Justiça traz à tona um tenebroso segredo que macula a história do grupo. Cientes dos perigos que as suas vidas duplas representam para as pessoas que mais amam, até onde estarão os heróis dispostos a ir para protegê-las?

Título original: Identity Crisis
Licenciadora: Detective Comics (DC)
País:  EUA
Autores: Brad Meltzer (argumento), Rags Morales (ilustrações) e Michael Blair (arte-final)
Data de publicação: Agosto de 2004 a fevereiro de 2005 
Categoria: Minissérie em sete edições mensais
Protagonistas: Aquaman, Átomo, Batman, Canário Negro, Homem-Elástico, Arqueiro Verde, Lanterna Verde (Kyle Rayner), Flash (Wally West), Caçador de Marte, Super-Homem. Mulher-Maravilha e Zatanna
Coadjuvantes: Sue Dibny, Jean Loring, Doutor Meia-Noite, Senhor Incrível, Águia Flamejante, Doutor Luz, Exterminador, Capitão Bumerangue, Calculador, Jack Drake, Nuclear e Lois Lane
Cenários: Torre de Vigilância da Liga da Justiça, Gotham City, Metrópolis, Nova Iorque, Ivy Town, Central City, Opal City e Smallville 


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Um pacto de silêncio
une antigos membros da LJA.

Edições em português 

Seguindo o modelo original, entre setembro de 2005 e março de 2006, a Panini brasileira começou por lançar Crise de Identidade no formato de uma minissérie em sete fascículos. No ano seguinte chegariam em simultâneo às bancas dois encadernados da série - um de capa dura, outro de capa mole. Ainda por Terras Tupiniquins, no mês passado foi a vez de a Eaglemoss reeditar a saga em dois volumes insertos na sua Coleção de Graphic Novels: Sagas Definitivas.
Deste lado do Atlântico, foi sob os auspícios da Levoir que, em 2013, Crise de Identidade teve direito à sua primeira edição em português europeu, com a história a ser dividida em dois volumes de capa dura.

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A minissérie original da Panini (cima)
 e os dois volumes encadernados lançados em Portugal pela Levoir.

Segredos dos bastidores

Ao apresentar uma visão dessacralizadora de alguns dos principais expoentes heroicos da Editora das Lendas, Crise de Identidade decretou em definitivo o fim da inocência no Universo DC. Consequentemente, a saga - depressa alcandorada a clássico da 9ª Arte - não deixou ninguém indiferente e ainda hoje divide opiniões. Entre aqueles que escarnecem o seu pretenso registo sensacionalista e os que aplaudem a humanização dos seus ídolos (pedra-de-toque da Marvel), o debate segue aceso.
Até poucos meses atrás, pouco se sabia porém sobre os bastidores de uma saga com extensas ramificações na cronologia da Editora das Lendas. Em agosto último, por ocasião do 18º aniversário de Crise de Identidade, Valerie D'Orazio, ex-editora-assistente da DC, usou a sua conta pessoal na rede social Twitter para divulgar alguns pormenores sumarentos.
A acreditar no relato de D'Orazio - que esteve diretamente envolvida na conceção da série -, as linhas-mestras de Crise de Identidade foram definidas exclusivamente pelo departamento editorial sem que Brad Meltzer tenha tido voto na matéria.

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Valerie D'Orazio esteve ao serviço
 da DC entre 2000 e 2005.
D'Orazio explica que a ideia consistia em produzir uma história com notas sombrias e violentas, por forma a deixar o Universo DC mais apelativo para uma audiência madura. Segundo ela, o então vice-presidente da DC, Dan DiDio, tinha como intenção declarada "tirar o sorriso dos quadradinhos".
Estas revelações - não desmentidas até ao momento - ilibam Brad Meltzer, vilipendiado ao longo dos anos pelos leitores mais conservadores. Os mesmos que ficaram ultrajados com a cena da violação de Sue Dibny e pelo nível geral de violência presente na narrativa, e que nunca perdoaram a inclusão destas temáticas adultas numa história da Liga da Justiça.

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Brad Meltzer e Rags Morales (baixo) assinaram
 um dos primeiros clássicos bedéfilos deste século.
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D'Orazio explica ainda que a escolha de Sue Dibny para vítima de tão inomináveis crimes decorreu do facto de ela ser pura de coração e acarinhada por todos os membros da Liga. Os editores consideravam, ademais, que o Homem-Elástico era uma piada e que a morte da esposa o deixaria mais soturno.Revelando-se muito crítica relativamente às opções editoriais tomadas, D'Orazio sublinha que o que o que fez a Marvel ser mais bem-sucedida do que a DC antes de Crise de Identidade não foi a tonalidade obscura das suas histórias, mas sim a qualidade destas. E carrega nas tintas ao assumir que, por causa do seu registo violento, Crise de Identidade foi um projeto perturbador do qual não guarda saudades.
Apesar da controvérsia que desencadeou - ou por conta desta - Crise de Identidade foi uma das sagas mais vendáveis de sempre. Em agosto de 2004, o primeiro número da série, com uma circulação superior a 163 mil exemplares, liderou as vendas de quadradinhos nos EUA.
A saga teve também fortes repercussões na continuidade da DC, lançando as sementes para Crise Infinita no ano seguinte e restaurando o estatuto de membro fundador da Liga da Justiça da Mulher-Maravilha, do qual a Princesa Amazona fora expropriada após Crise nas Infinitas Terras.

Preâmbulo

Numa história clássica da Liga da Justiça, dada à estampa em 1979 nos números 166, 167 e 168 de Justice League of America, a Sociedade Secreta de Supervilões capturou alguns dos membros da equipa, trocando de corpos com eles. Graças a este ardil, os vilões apreenderam as identidades secretas dos heróis. Na conclusão do arco, a situação seria revertida depois de Zatanna usar a sua magia para lobotomizar os inimigos da Liga da Justiça, apagando todas as suas memórias relacionadas com o incidente.

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A história clássica da LJA que serviu de mote a Crise de Identidade.
Em reconhecimento pelo meritório trabalho desenvolvido por Sue Dibny na embaixada europeia da Liga da Justiça Internacional, foi-lhe outorgado pelo Capitão Átomo (líder da referida secção) o título de membro honorário da equipa. Mercê desse estatuto - extensível apenas a um punhado de indivíduos - Sue beneficiava de várias prerrogativas, mormente o livre acesso ao quartel-general da Liga e a informação confidencial acerca dos membros e atividades da organização.
Casada com Ralph Dibny, o Homem-Elástico, Sue era muito benquista pelos restantes membros da Liga da Justiça, que tinham nela uma amiga e confidente. Sue seria também protagonista involuntária de um episódio traumático que colocou os heróis perante um excruciante dilema moral  Dividido num primeiro momento, o grupo acabaria por cerrar fileiras em redor de um terrível segredo. Que, como todos os segredos, voltou para assombrá-los.

Enredo

Ao mesmo tempo que o Homem-Elástico participa com Águia Flamejante numa rotineira operação de vigilância, Sue Dibny é assassinada no apartamento do casal, sucumbindo, aparentemente, às graves queimaduras que lhe são infligidas pelo atacante.
Na ressaca deste trágico acontecimento, a comunidade super-heroica - particularmente, a Liga da Justiça da América - mobiliza-se em peso para descobrir a identidade do assassino. Com a lista de suspeitos a ser encabeçada por um velho conhecido: o Doutor Luz.
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Sue Dibny e o Homem-Elástico:
só a morte separou aquele que era um dos casais
 mais felizes dos quadradinhos.
Enquanto os heróis se lançam numa febril caça ao homem, o Arqueiro Verde revela ao Lanterna Verde e ao Flash que certa vez o Doutor Luz, a fim de recuperar a sua arma, havia invadido o Satélite da Liga (antiga base orbital do grupo) e violado Sue quando esta se encontrava sozinha a bordo.
Objetivando garantir que um episódio dessa natureza não mais se repetiria com Sue ou qualquer outro ente querido da Liga, os membros da época, após renhida votação, permitiram que Zatanna conjurasse um feitiço que, de uma assentada, lobotomizou o Doutor Luz e lhe alterou a personalidade, convertendo-o num bufão inofensivo.
Nas entrelinhas do relato feito pelo Arqueiro Verde fica, ademais, implícito que o grupo terá recorrido reiteradas vezes a esse expediente para salvaguardar a segurança dos seus membros e dos que lhes são próximos.
Os heróis localizam finalmente o Doutor Luz mas este, sabendo ter a cabeça a prémio, havia contratado o Exterminador como guarda-costas. Durante a encarniçada refrega que se segue, o vilão recupera a memória do incidente e, enfurecido pela sevícia de que foi vítima, usa os seus poderes para escapar.

Doctor Light (Arthur Light) – This Day In Comics
Doutor Luz, velho inimigo da Liga, torna-se
 o principal suspeito da morte de Sue Dibny.

Questionado diretamente pelo Super-Homem, Flash prefere proteger o inquietante segredo que lhe foi confiado pelo Arqueiro Verde.
Longe dali, em Ivy Town, Ray Palmer (o Átomo) encontra a sua ex-mulher, Jean Loring, pendurada numa porta, amarrada e vendada. Prestes a morrer estrangulada, Jean é salva no último instante pelo ex-marido, mas é incapaz de fornecer uma descrição do agressor.
Dias depois, Lois Lane, cara-metade do Super-Homem, recebe uma ameaça de morte que deixa o casal apreensivo.
Em Gotham City, Jack Drake, pai de Tim Drake (o terceiro Robin), recebe por sua vez uma nota anónima a avisá-lo para a iminência de um atentado contra a sua vida. A nota vem acompanhada com uma arma que Jack usa para se defender quando é atacado pelo Capitão Bumerangue, que havia sido contratado pelo Calculador para matá-lo. Após uma troca de tiros, ambos acabam mortalmente feridos.
Chegado ao local do crime, Robin é confortado por Batman que se apressa a confiscar o bilhete antes que a polícia e a imprensa tomem conhecimento da sua existência.

plano critico funeral de sue dibny plano critico crise de identidade
A comunidade heroica compareceu em peso ao funeral de Sue Dibny.

À medida que a investigação prossegue, Nuclear tem o peito trespassado pela espada do Cavaleiro Brilhante empunhada pelo Ladrão das Sombras, a quem interrogava. Ao atingir a sua massa crítica, o herói atómico explode na atmosfera.
Enquanto a comunidade heroica chora a perda de um dos seus,  o Arqueiro Verde, confrontado pelo Flash, confessa que o método de Zatanna não foi aplicado somente a criminosos. Após a captura do Doutor Luz, Batman abandonara o satélite da Liga mas, por algum motivo, regressou pouco depois, surpreendendo os seus companheiros de equipa a lobotomizar o vilão.
Perante a firme oposição do Homem-Morcego a este ato, aos heróis não restou alternativa senão varrer aquele episódio da mente do seu colega.

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Batman tem a sua memória apagada por Zatanna. 
O mesmo Batman que invade entretanto o esconderijo deserto do Calculador. Apesar da fuga antecipada do vilão, o Cavaleiro das Trevas encontra pistas que lhe permitem deduzir que ele servira de testa de ferro ao verdadeiro mandante do ataque que vitimou Jack Drake.
Realizada pelo Doutor Meia-Noite e pelo Senhor Incrível, da Sociedade da Justiça da América, a autópsia de Sue Dibny conclui ter sido um acidente vascular cerebral a verdadeira causa de morte. Um exame microscópico ao cérebro de Sue deteta a presença de duas minúsculas pegadas. Ficando assim claro que estas pertenciam a alguém com acesso à tecnologia do Átomo, que lhe possibilita reduzir-se ao tamanho subatómico.
Antes que os heróis consigam averiguar se o assassino foi o próprio Átomo ou alguém que se apropriou indevidamente da sua invenção, o pequeno herói faz uma descoberta chocante. Em conversa com a sua ex-mulher, Ray Palmer percebe que, a despeito de essa informação ter sido mantida secreta, Jean está ao corrente da nota anónima enviada a Jack Drake, deduzindo ser ela a assassina de Sue Dibny.
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A autópsia de Sue Dibny descobre pistas
 acerca da verdadeira identidade do seu assassino.
Jean Loring havia encontrado o traje encolhedor do marido e tinha-o vestido enquanto falava ao telefone com Sue Dibny, viajando através dos cabos telefónicos até penetrar no cérebro da sua interlocutora. A presença microscópica de Jean acabaria por induzir um AVC fatal em Sue.
Ao retomar o seu tamanho normal, Jean apercebera-se do que fizera e, para encobrir o seu crime, usara uma pistola de raios para queimar parte do cadáver de Sue.
A morte de Sue fez Jean perceber que os heróis fazem tudo ao seu alcance para proteger as pessoas que mais amam. Simulara, por isso, um atentado contra si mesma com o intuito de atrair Ray Palmer. Porque, no fundo, tudo se resumira a um demencial plano para reconstruir o casamento desfeito de ambos.

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Jean Loring, 
a ex-mulher de Ray Palmer.
Ao longo da sua confissão Jean não evidencia remorsos e afirma não ter tido intenção de matar quem quer que fosse. Declarada mentalmente insana, a ex-mulher de Ray Palmer é internada no Asilo Arkham, sendo mantida sob forte medicação. Átomo, envergonhado pelas ações da mulher que em tempos amara, resolve afastar-se por uns tempos.
Na cena final, Flash mostra-se desconfortável na presença do Batman, o que leva o Cavaleiro das Trevas a suspeitar do comportamento do seu companheiro de equipa. No ar paira a dúvida se Batman se recordará ou não do sucedido com o Doutor Luz e com ele próprio...

Requiem pela inocência.

Apontamentos

*Sue Dibny seria brevemente ressuscitada na saga Blackest Night (A Noite Mais Densa). Após um anel energético ter assumido o controlo do seu cadáver, a saudosa esposa do Homem-Elástico viu-se transformada num dos Lanternas Negros arregimentados por Nekron para disseminar o caos no Universo. Tal como os restantes membros da legião de desmortos, Sue seria destruída pela Tropa Índigo, podendo dessa forma voltar a descansar em paz;
*Dada a circunstância de Sue Dibny ter sido encontrada sem vida e horrivelmente queimada no interior do seu apartamento sem sinais de arrombamento, a lista de suspeitos da sua morte incluía vários criminosos com poderes incandescentes (casos do Doutor Fósforo e Onda Térmica), assim como diversos teleportadores, entre os quais Mestre dos Espelhos e Penumbra;
*Jack Drake ficara a saber da vida dupla do seu filho como escudeiro do Batman pouco tempo antes de ser assassinado;
*Embora o Nuclear original (Ronald Raymond) tenha morrido no decurso da saga para dar lugar a Jason Rusch, a ideia inicial era eliminar Átomo ou o Caçador de Marte. Brad Meltzer teve influência direta na decisão editorial de poupar estas duas personagens ao destino fatídico que lhes fora reservado;

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Nuclear não sobreviveu a Crise de Identidade.
*No início da história são referenciadas outras mortes de membros da Liga da Justiça. A saber: Flash (Barry Allen), Arqueiro Verde, Lanterna Verde (Hal Jordan) e Super-Homem. Curiosamente, todos os defuntos enumerados acabaram por regressar do Além e mantêm-se no ativo;
*Após Crise nas Infinitas Terras, convencionou-se que somente um número muito restrito de pessoas teria conhecimento das verdadeiras identidades dos membros da Liga da Justiça. Conceito que foi, contudo, abandonado em Crise de Identidade, com os heróis não raro a tratarem-se informalmente pelos seus nomes civis;
*Vilões como o Doutor Destino (não confundir com o seu homónimo da Marvel) ou Onda Mental que, com recurso às suas habilidades psíquicas, poderiam facilmente descortinar os alter egos de cada um dos integrantes da Liga da Justiça não conseguiram, aparentemente, fazê-lo. Não porque tal nunca lhes tenha ocorrido, mas porque Zatanna apagou magicamente as suas memórias quando foram bem-sucedidos nessa tarefa. Confirmando, assim, que essa era há muito uma prática consagrada para salvaguardar as identidades e os  entes queridos dos heróis;
*Originalmente centrado nas suas insanáveis divergências políticas, o antagonismo mútuo entre o Arqueiro Verde (defensor de causas conotadas com a extrema-esquerda) e o Gavião Negro (com posições próximas da ultradireita) resultava afinal também das suas opiniões opostas sobre o que deveria ter sido feito ao Doutor Luz após o episódio da violação de Sue Dibny;

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Nunca foi pacífica a relação
 entre o Arqueiro Verde e o Gavião Negro.
*Numa aparente inconsistência narrativa, Guy Gardner - expulso há anos da Tropa Esmeralda, reinventara-se como Guerreiro - participa nas exéquias de Sue Dibny envergando o seu uniforme de Lanterna Verde. É, no entanto, verosímil que, dada a solenidade da ocasião, Guy tenha escolhido aprumar-se com aquela que era a sua farda de gala;
*A consecutivas gerações de leitores lusófonos, Átomo (tradução literal da nomenclatura original) foi apresentado como Eléktron. Assim rebatizado nos anos 1960 pela brasileira EBAL, por forma a diferenciá-lo da sua contraparte da Idade do Ouro, era ainda por essa alcunha que o liliputiano herói atendia nas edições da Panini lançadas em terras de Vera Cruz. Registe-se, a este propósito, que o Átomo original não partilhava com o seu sucessor a capacidade de se miniaturizar;

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Átomo, o Pequeno Polegar da DC
 que os leitores lusófonos conhecem como Eléktron.

Vale a pena ler?

Brad Meltzer é um espécime exótico na fauna de literatos contemporâneos. A despeito de o seu nome ter figurado repetidas vezes na lista de best-sellers do New York Times por conta de obras como The Millionaires e The Book of Fate, este advogado nova-iorquino que cresceu entre o Brooklyn e Miami só se aventurou na literatura graças à sua assolapada paixão pela banda desenhada.
Certa vez Meltzer disse, em entrevista, que podia não saber os nome de todos os estados que compõem a União, mas sabe de cor e salteado o nome de todos os membros da Liga da Justiça, bem como a ordem pela qual entraram ou saíram do grupo. Esse seu conhecimento enciclopédico do Universo DC e de cada uma das engrenagens que movimentam as suas personagens está patente em Crise de Identidade, obra de referência na memorabilia da DC e que lançou um novo olhar sobre alguns dos seus maiores ícones.
Invocando os contos policiais de antanho, Crise de Identidade serve ao leitor um mistério no melhor estilo "quem é o culpado?". De caminho, Meltzer, iconoclasta involuntário,  fornece um nova dimensão aos confrontos entre super-heróis e supervilões que ele cresceu a ler. Mostrando que, mesmo neste mundo de fantasia, não sobra lugar para maniqueísmos absolutos.
A história tem ainda a particularidade de não possuir um protagonista que se sobreponha aos restantes, na medida em que todas as personagens são vitais para o desenrolar da trama. É no entanto concedida uma atenção especial àqueles que, habitualmente, são os membros de segunda linha da Liga da Justiça.
Com efeito, Crise de Identidade explora diversos núcleos do Universo DC, retratados com um realismo quase sem paralelo nas histórias dentro da continuidade principal da editora. Meltzer não se satisfaz em mostrar-nos as relações dos heróis com os seu pares e com os seus entes queridos. Leva-nos também para dentro do mundo dos vilões, dando-lhes personalidades e motivações únicas. Há, de resto, todo um carinho dispensado àquelas personagens habitualmente relegadas para segundo plano, que passam a ser vistas sob um prisma diferente.
Referenciando sempre os romances policiais, a narrativa chega a declarar que apresentar personagens secundárias, fazer com o que o público se identifique com elas para, logo em seguida, matá-las é um chavão literário. Meltzer explora esse e outros clichés do género, mas são as respetivas consequências aquilo que realmente lhe interessa. A morte de Sue Dibny serve, pois, o duplo propósito de esmiuçar as motivações de cada personagem e de pôr à prova a amizade que une os heróis.
Mortes impactantes e revelações surpreendentes aguardam o leitor ao virar de cada página. Sem que Meltzer, em momento algum, nos insulte a inteligência com piruetas rebuscadas, pois cada momento é orquestrado com a precisão de um ourives. Nisso, a importância de Rags Morales é crucial. Morales pode não ter o mais deslumbrante dos traços mas o seu estilo de narrativa visual casa muito bem com a proposta de Meltzer.
O que os autores de Crise de Identidade nos mostram não é uma aventura do Super-Homem, do Batman ou da Mulher-Maravilha, mas um suspense de cortar a respiração que nos revela mais sobre a intimidade de Clark Kent, Bruce Wayne, Diana e tantos outros que abrilhantam o panteão da DC, removendo-os do pedestal e trazendo-os para junto do comum dos mortais. Recomendo.

Sob as máscaras coloridas 
escondem-se homens e mulheres imperfeitos.











5 comentários:

  1. Sempre esmiuçando a nona arte com qualidade,Dunamis.

    Obrigado por este texto de qualidade que sempre temos de você.

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    1. Agradeço as tuas palavras gentis. Espero continuar a ser merecedor delas. Abraço.

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  2. Apesar de um texto muito bem urdido, como de costume, não me empolguei a conhecer essa saga. A mim causa espécie quando se quer deixar os super-heróis "sérios e sombrios".
    Grand abraço!

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  3. Belo texto parabéns

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  4. Diferentemente da opinião do confrade Cappelli (de quem sou fã pelos excelentes trabalhos "O Extracurricular Cucaracha" e "Rastreadores da Taça Perdida", que recomendo muito!), gostei dessa saga, pois o que me agasta é justamente aquele bando de anjinhos em histórias onde ninguém é gravemente ferido ou - menos ainda - morre. Aceitando acionar a Suspensão da Descrença e aceitar os (super-)heróis como "reais", cumpre aceitar que são humanos (exceção para alguns, claro, mas a convivência conosco às vezes os torna mais humanos que nós, para o bem e para o mal), logo são falhos e nem sempre "bons", alguns guardando segredos terríveis, bem como alguns de nós. "Crise de Identidade" era algo que eu havia muito queria ler, mas achava que jamais o faria. O mesmo digo de "Asilo Arkham", outra obra que me impactou. Do texto acima, é chover no molhado exaltar sua profundidade na pesquisa e fluência na escrita, mas chovemos.

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