06 novembro 2019

ETERNOS: JOE SIMON (1913-2011)


  Pôs o seu Capitão América a esmurrar Hitler antes mesmo do Tio Sam declarar guerra ao Führer. Demiurgo da 9ª Arte, formou com Jack Kirby uma das mais poderosas forças criativas da Idade de Ouro e foi pioneiro em diferentes géneros narrativos.

Naquele tórrido final de tarde de julho de 2011, o mítico El Capitan Theatre de Los Angeles engalanou-se para receber a estreia mundial de Captain America - The First Avenger. De Chris Evans a Robert Downey Jr. passando pelo inevitável Stan Lee, foram muitas as celebridades que, para gáudio dos fãs, desfilaram pela passadeira vermelha.
O glamoroso evento ficou, contudo, marcado por uma ausência de peso: a de Joe Simon. A frágil saúde do nonagenário cocriador do Capitão América impediu-o de estar presente. Mas nem por isso deixou de se fazer representar, uma vez que os seus netos chamaram a si essa tarefa. E terão decerto sentido um frémito de emoção ao verem, pela primeira vez, o nome do avô associado a uma produção dos Estúdios Marvel.
Após longos anos de disputas judiciais com a Casa das Ideias motivadas por direitos de autor, Joe Simon e o seu saudoso compagnon de route Jack Kirby (falecido em 1994) eram finalmente reconhecidos como criadores do Capitão América. Consagração tão tardia quanto merecida da parelha que, em tempos de tirania e desesperança, animara a luta dos justos com o seu Sentinela da Liberdade.
Quis no entanto o destino, sempre pródigo em amargas ironias, que aquele ano da graça de 2011 fosse o primeiro do Capitão América no Universo Cinematográfico Marvel e o último na vida do seu criador. Uma vida que principiara quase um século antes e que se entrançara com a história dos comic books americanos.
Segundo filho de um humilde casal judaico de Rochester (a terceira cidade mais populosa do estado de Nova Iorque), Joseph "Joe" Henry Simon nascera Hymie Simon a 11 de outubro de 1913. Harry Simon, o pai, trocara em 1905 as terras de Sua Majestade pelas do Tio Sam em busca de um futuro menos austero do que aquele que a sua Leeds natal lhe poderia oferecer. Alfaiate de profissão, assentara arraiais em Rochester por ser este à época um importante centro de manufatura têxtil.

Rochester serviu de berço a Joe Simon, em 1913.
O pequeno Joe (assim rebatizado pela mãe, Rose, que abominava o nome original) cresceu com a irmã mais velha, Beatrice, no modesto apartamento da família Simon, que servia também de ateliê ao pai. Foi ainda nos seus anos de meninice, marcados pela pobreza, que Joe Simon começou a rabiscar os primeiros desenhos.
Esse seu talento precoce não mais cessou de evoluir, valendo-lhe, já adolescente, o cargo de diretor artístico do jornal do liceu Benjamin Franklin, onde estudou. O primeiro trabalho profissional chegaria por esses dias, quando duas universidades lhe encomendaram desenhos para ilustrar os respetivos anuários.
Em 1932, concluído o liceu, Joe Simon foi contratado como assistente do diretor artístico do Rochester Journal-American, um tabloide local de tiragem modesta. Posto em que, curiosamente, rendeu Al Liederman, seu futuro colega na Timely Comics.
Um par de anos volvidos, em 1934, Joe Simon assumiu as funções de cartunista e ilustrador da secção desportiva do Syracuse Herald. Sem que o soubesse, desenhar atletas prepará-lo-ia para desenhar super-heróis. Chamado a vestir ocasionalmente a pele de repórter, ganhou também tarimba na escrita.
Após essa enriquecedora experiência - abruptamente interrompida pela falência do jornal - Joe Simon, então um mancebo de 23 anos, achou que Rochester lhe ficara estreita e resolveu rasgar novos caminhos em Nova Iorque.

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Verdes de anos de um gigante da 9ªArte.
Na Grande Maçã, Joe Simon começou por trabalhar como freelancer para a Paramount Pictures, retocando fotos promocionais dos filmes produzidos pelo estúdio. Simon gabava-se mesmo de ter retocado os bustos de algumas das maiores divas de Hollywood, como Bette Davis e Joan Crawford.
Aos serviços prestados à Paramount, Joe Simon acrescentava o trabalho no departamento de arte da Macfadden Publications, editora que tinha na revista True Story a sua publicação mais popular.
Pouco tempo depois, o seu chefe, Harlan Crandall, recomendá-lo-ia a Lloyd Jacquet, dono da Funnies, Inc., uma das muitas agências que, nos primórdios da indústria dos comics, providenciavam matéria-prima às editoras que se aventuravam no mercado sem staff ou ideias próprias.
A estreia de Joe Simon no género super-heroico aconteceria logo em seguida. A pedido de Martin Goodman. presidente da recém-fundada Timely Comics, Lloyd Jacquet incumbiu-o de conceber um herói flamejante à imagem e semelhança do Tocha Humana, uma das estrelas da companhia.
Sem tempo a perder, Joe Simon arregaçou as mangas e deitou mãos à obra. Dias depois, apresentou aquele que seria o primeiro super-herói da sua lavra. Fiery Mask (Máscara Flamejante) debutou em Daring Mystery Comics nº1 (janeiro de 1940) numa história totalmente produzida por Simon.
Essa polivalência seria, de resto, uma das chaves do seu sucesso na indústria onde dava os primeiros passos. A outra seria a sua fecunda parceria com Jack Kirby, com quem cunharia amizade para a vida.

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Máscara Flamejante, o primeiro super-herói com assinatura de Joe Simon.
Joe Simon conheceu Jack Kirby em finais de 1939, quando ambos começaram a trabalhar na Fox Comics. Um encontro com contornos inusitados revisitado por Simon em 1998 na Comic-Con de San Diego: «Eu tinha um fato, o que impressionou Jack. Ele nunca tinha visto um desenhador vestido daquela forma. Expliquei-lhe que o meu pai era alfaiate e que fora ele a fazer-me o fato por medida. Jack disse-me que o pai dele também era alfaiate, mas só confecionava calças. Na altura, eu trabalhava como freelancer a partir de um pequeno estúdio alugado a poucos quarteirões do edifício onde estavam instaladas a DC e a Fox Comics, e tinha acabado de criar Blue Bolt para a Novelty Press. Quando Jack me mostrou alguns dos seus esboços fiquei de queixo caído. O traço dele era fantástico! Quando ele me perguntou se podíamos fazer alguns trabalhos em conjunto, levei-o de imediato para o meu estúdio. E, nesse mesmo dia, começámos a trabalhar no segundo número de Blue Bolt.»
Dessa aliança de talentos nasceria uma das mais poderosas e duradouras forças criativas da Idade de Ouro que ajudaria a definir a iconografia de várias editoras. São muitos os historiadores da 9ª Arte a sustentar que Joe Simon e Jack Kirby trouxeram a anatomia de volta aos comics. Sequências dinâmicas e painéis explosivos com personagens de corpos bem delineados seriam a pedra de toque da dupla.

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Joe Simon e Jack Kirby (em pé), a Dupla Dinâmica.
Mercê da sua atribulada saída da Fox Comics, Joe Simon (sempre com Kirby à ilharga) mudou-se de armas e bagagens para a Timely Comics. O ano de 1940 ia a meio e os EUA relutavam ainda em envolver-se na II Guerra Mundial, que não tardaria a invadir-lhes o quintal das traseiras. Prevendo essa inevitabilidade, o duo criou aquele que seria simultaneamente o epítome do patriotismo americano e a personagem que os imortalizaria no imaginário popular.
O Capitão América fez a sua primeira aparição em Captain America nº1. Edição histórica, lançada em dezembro de 1940, que vendeu um milhão de exemplares. E cuja capa, assinada por Joe Simon, se tornaria icónica. Nela, o Sentinela da Liberdade assestava um potente gancho de direita no queixo de Adolf Hitler. O líder supremo do III Reich fora, de resto, o principal fautor para o surgimento do herói.
Na sua autobiografia My Life in Comics (2011), Joe Simon explicitou os pormenores da ligação entre as duas personagens: «Um dos segredos por detrás das histórias de super-heróis eram alguns dos supervilões que enfrentavam. Por isso, quando Martin Goodman me pediu para criar um novo herói para a Timely, tratei logo de procurar o adversário perfeito. Ocorreu-me então usar um vilão da vida real. Com o seu bigode ridículo e os seus maneirismos teatrais, Hitler pareceu-me adequado para o papel. Afinal de contas. havia muito de caricatural nele.»

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O Sentinela da Liberdade fez a sua estreia
 em Captain America nº1 (1940).
Em consequência do seu retumbante sucesso comercial, rapidamente o Capitão América foi arvorado a porta-estandarte da Timely Comics. De igual modo os seus criadores subiram na hierarquia da editora. Joe Simon foi promovido a editor (o primeiro a ocupar esse cargo na história da companhia) e exigiu a nomeação de Jack Kirby como diretor artístico.
Apesar de todas as benesses recebidas, à medida que o Capitão América consolidava o seu estatuto de campeão de vendas Joe Simon começou a suspeitar que não estaria a receber a fatia dos lucros a que ele e Kirby tinham direito. Foi esse o motivo que o levou a oferecer os serviços da dupla à arquirrival National Comics (uma das antecessoras da DC). Fê-lo contudo em segredo, receando que se Martin Goodman descobrisse as suas intenções os despediria - o que, efetivamente, viria a acontecer.
Algures no curto ínterim que mediou a transição de Simon e Kirby para a National, a dupla produziu outra edição histórica. Captain Marvel nº1 (março de 1941) foi o primeiro título epónimo do Mortal Mais Poderoso da Terra e personagem charneira da Fawcett Comics.
Além de uma apreciável melhoria salarial, na National Comics Joe Simon e Jack Kirby beneficiaram de ampla liberdade criativa. À reabilitação de Sandman (um dos heróis mais antigos da editora), seguiu-se, em julho de 1942, a criação dos Boy Commandos. Traduzidos no Brasil como Patrulha Juvenil (EBAL) ou Comando Juvenil (Abril), a série acompanhava as aventuras de um grupo de jovens órfãos de diferentes nacionalidades que combatiam os nazis na frente europeia da II Guerra Mundial. Boy Commandos foram também o primeiro coletivo da National a estrelar o seu próprio título mensal. O qual depressa se tornaria o terceiro mais rentável da editora, abrindo dessa forma caminho para o lançamento de um sucedâneo.


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Boy Commandos foi  o terceiro título mais vendido da DC.
Meses mais tarde, Joe Simon e Jack Kirby apresentaram a sua Newsboy Legion, grupo de pequenos ardinas órfãos que combatiam a criminalidade nas ruas de Metrópolis. Muito popular entre os leitores de palmo e meio, a série tornar-se-ia um spin-off das histórias do Super-Homem. No Brasil, o grupo ficou conhecido como Legião Jovem.
Chamado a cumprir serviço militar na Divisão de Informação Pública da Guarda Costeira, em Washington D.C., Joe Simon criou True Comics, uma série de banda desenhada editada pela National, distribuída com todos os jornais dominicais e que tinha por objetivo divulgar as atividades daquele ramo das Forças Armadas estadunidenses. Dado o sucesso da iniciativa, Joe Simon e o jornalista Milt Gross seriam logo depois chamados a produzir um segundo título. Adventure is My Career serviria para aliciar novos recrutas para a Guarda Costeira, ficando a distribuição nacional por conta da Street & Smith Publications - a mesma editora do Sombra.

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Uma das séries criadas por Joe Simon
para a Guarda Costeira americana.
De volta à vida civil e a Nova Iorque, em 1946 Joe Simon, sempre acompanhado por Jack Kirby, teve fugaz passagem pela Harvey Comics, para a qual criou Stuntman. A personagem teria vida curta, ao contrário do casamento de Simon com Harriet Feldman, a secretária do patrão da Harvey. O casal permaneceria junto durante mais de meio século, trazendo ao mundo cinco filhos.
O declínio dos super-heróis no pós-guerra motivou Joe Simon e Jack Kirby a explorarem outros géneros narrativos. O primeiro ensaio foi realizado sob os auspícios da Crestwood Publications e não poderia ter corrido melhor. Série romântica criada a pensar no público feminino, Young Love vendeu mais de um milhão de exemplares e lançou uma nova tendência no mercado editorial.
Entre 1953 e 1955, Joe Simon e Jack Kirby foram donos da sua própria editora. Sediada num pequeno estúdio cedido por Al Harvey (o mandachuva da Harvey Comics), a Mainline Publications começou por apostar, com mediano sucesso, em títulos policiais e românticos.
No entanto, quando, em 1954, a Atlas Comics (herdeira da Timely Comics) decidiu tirar o Capitão América do congelador, Simon e Kirby, ainda ressentidos pela "traição" de Martin Goodman, criaram em resposta Fighting American. Inicialmente retratado como um patriota movido pelo anticomunismo (vivia-se o auge do macarthismo), essa espécie de paródia do Capitão América acabaria por evoluir para uma sátira ao próprio género super-heroico. O fracasso do projeto ditaria a separação da dupla, sem que saísse beliscada a amizade que os unia. Ao fim de década e meia, Simon e Kirby seguiam caminhos diferentes.

Young Love foi o maior sucesso comercial de Simon e Kirby.

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Um dos sete números publicados de Fighting American
 com o selo da Mainline Publications.
Ávido de novos desafios, nos anos seguintes Joe Simon tirou o seu sustento essencialmente da publicidade e da arte comercial. Não resistindo, contudo, a abrir pequenos parêntesis para matar saudades dos super-heróis. Foi o que aconteceu quando, no final da década de 1950, revitalizou The Shield (O Escudo), da Archie Comics. Ironicamente, tratava-se do mesmo herói que lhe valera acusações de plágio aquando da criação do Capitão América.
Em resposta à enorme popularidade da revista humorística Mad, em 1960 Joe Simon lançou a Sick, da qual foi editor ao longo da década seguinte. Período que ficou igualmente marcado por colaborações esporádicas com Jack Kirby na DC.

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A revista Sick teve Joe Simon como fundador e editor.
Desde a viragem do século que Joe Simon, agora viúvo, se dedicava quase exclusivamente à escrita e à venda de arte original. Em 2003, no âmbito de um acordo extrajudicial, a Marvel Comics concordou por fim em pagar-lhe direitos de autor e licenciamento do Capitão América.
Consumados 98 anos de vida terrena, no fatídico dia 14 de dezembro de 2011, o mundo dos mortos, governado por Hades, reclamou Joe Simon, acolhendo-o nos Campos Elísios, onde terá certamente reencontrado o seu velho amigo Jack Kirby.
Desaparecia assim uma lenda viva da 9ª Arte e um dos derradeiros detentores da memória descritiva da Idade de Ouro dos comics. Não sem antes lhe ter sido concedido o privilégio de assistir, numa sessão privativa em Nova Iorque, Captain America - First Avenger. Apesar dos seus problemas de audição e da ausência do seu amigo de sempre, consta que Simon terá saído da sala de cinema com um sorriso rasgado e um brilhozinho nos olhos.

Poster promocional do filme do Sentinela da Liberdade
 inspirado na icónica capa de Captain America nº1.


Agradecimento muito especial ao meu bom e incansável amigo Emerson Andrade, autor da belíssima montagem que abre este artigo. 





































2 comentários:

  1. Adorei o texto. Só conhecia Simon de nome. Que mente brilhante! Duas de suas criações venderam um milhão de exemplares! Era um abençoado.

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  2. Como sempre, um texto impressionantemente bem escrito, que muito de informações dignas de crédito nos acrescenta sobre esse gênio dos quadrinhos, infelizmente tendo Joe Simon sofrido,assim como os criadores do Superman, com a desonestidade da empresa para a qual criou um de seus maiores ícones.
    Considero uma honra e uma satisfação poder ler algo assim, e mais ainda privar da amizade (ainda que virtual) de seu artífice.

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