03 agosto 2020

ETERNAS: TARPÉ MILLS (1918-1988)


  Celebrou a feminilidade e implodiu estereótipos quando os comics eram ainda um restrito clube de cavalheiros. Espírito livre à frente do seu tempo, foi a primeira mulher a criar uma super-heroína e escandalizou o patriarcado com a sua ousadia.

Prestes a tornar-se octogenária, a Mulher-Maravilha continua a ser um ícone feminista e o arquétipo da super-heroína. Contrariamente, porém, à crença instalada, a Princesa Amazona idealizada por William Moulton Marston não foi a primeira justiceira fantasiada da Banda Desenhada.
Com efeito, o seu debute, em outubro de 1941, foi precedido por, pelo menos, uma vintena de congéneres apadrinhadas por diferentes editoras. Uma, em particular, sobressaiu pelo seu carisma e disputou à campeã das Amazonas a coroa da popularidade ao longo de toda a Idade de Ouro. Miss Fury, assim se chamava a rival, era uma personagem sui generis, desde logo por ter saído da imaginação de uma mulher. Facto por si só assinalável numa época em que os comics eram ainda um restrito clube de cavalheiros.
Também ela, à sua maneira, uma heroína de carne e osso, Tarpé Mills tornar-se-ia figura lendária da 9ª Arte. E, como é comum nestes casos, quase nada se sabe acerca da sua filiação, da sua infância ou da sua primeira juventude. Acrescentando um segmento ao labirinto do seu passado, nem a data de nascimento da autora é consensual.
Dependendo da fonte consultada, June Tarpey Mills terá vindo ao mundo a 25 de fevereiro de 1912 ou, mais provavelmente, nesse mesmo dia no ano da graça de 1918. Em contrapartida, não subsistem dúvidas no que concerne ao seu local de nascimento. Nova-iorquina de gema,  o Brooklyn serviu-lhe de berço e de base de operações.
June Mills cresceu num modesto lar desprovido de referências masculinas e onde todos os dias se provava que sexo fraco era um conceito machista que não se aplicava às mulheres que o habitavam. A essa espécie de república matriarcal presidia a sua mãe, jovem viúva que garantia o sustento das duas filhas com o seu emprego num salão de beleza.
Senhora de invulgar formosura e silhueta esbelta, ainda adolescente June Mills começou a trabalhar como modelo. Expediente que, a um só tempo, lhe permitia ajudar a família - à qual se haviam juntado os dois filhos da sua irmã recém-enviuvada - e custear os seus estudos no Pratt Institute, a mais prestigiada das escolas de arte nova-iorquinas.
Antes de tentar a sua sorte na florescente indústria dos comics, June Mills trabalhou como ilustradora de moda. Cortes e tecidos eram a sua verdadeira paixão e sonhava com uma carreira na alta costura. Com o tempo, June aprenderia a conciliar o melhor dos dois mundos, conferindo glamour às histórias de Miss Fury.
Algures entre 1938 e 1939, June Mills criou Daredevil Barry Finn para a Centaur Publications. Assim batizado por apreço ao seu sobrinho favorito, tratava-se de um garboso e destemido explorador que, qual antepassado de Indiana Jones, calcorreava o mundo em busca de tesouros e aventuras.

Daredevil Barry Finn | Tarpe Mills
Daredevil Barry Finn (1938) foi a primeira criação de Tarpé Mills.
Ainda ao serviço da Centaur, escassos meses mais tarde June Mills conceberia The Cat Man. Barton Stone, homem endurecido pela estada na prisão por um crime que não cometera, partilhava com a sua criadora uma afinidade quase sobrenatural com gatos. Tinha também por hábito disfarçar-se de velhinha indefesa para combater o crime. Bizarria que chocou alguns espíritos conservadores e que, com elevada quota de probabilidade, fez dele o primeiro travesti dos comics.


The Cat Man, um travesti justiceiro.
Nenhuma destas criações iniciais de June Mills se enquadrava, porém, nos preceitos do género super-heroico. O primeiro ensaio da autora nesse sentido aconteceu com The Purple Zombie.
Criado para a Eastern Color Printing em 1940, The Purple Zombie era um morto-vivo de cor púrpura e dotado de superpoderes que usava para proteger a sociedade que o temia e odiava. Como sempre, as suas histórias eram assinadas por Tarpé Mills. Sem que o público suspeitasse, por detrás desse pseudónimo andrógino escondia-se uma mulher de rara beleza e pluma virtuosa.
Coloquialismo francês para cigarro de enrolar, Tarpé derivava de Tarpey, apelido de solteira da avó irlandesa de June Mills. Levando em conta que June era uma fumadora inveterada - vício que, de resto, lhe prejudicaria gravemente a saúde no decurso dos anos - esse era um nom de plume que lhe assentava como um vestido feito por medida.
Seguindo as pisadas de outras pioneiras da indústria dos comics, foi essa a forma que June Mills encontrou para singrar num mundo de homens, e para evitar dececionar os seus jovens leitores. Numa das primeiras entrevistas cedidas após a saída do anonimato, a autora reconheceu que seria um enorme desapontamento para os rapazes que liam Daredevil Barry Finn ou The Purple Zombie se viessem a descobrir que as aventuras de heróis tão viris eram afinal escritas por uma mulher.

O primeiro protótipo de um super-herói com assinatura de Tarpé Mills.
1941 trouxe a consagração definitiva e o fim do segredo de Tarpé Mills. Desde abril desse ano - seis meses antes do surgimento da Mulher-Maravilha - que a tira Black Fury - como era inicialmente conhecida Miss Fury - vinha sendo publicada em vários jornais de âmbito nacional.
Se, à época, os comics eram um fenómeno de massas em franco crescimento, as tiras publicadas nos tabloides, mormente as inclusas nos respetivos suplementos dominicais, continuavam a ser o formato mais prestigioso. A ele tinham acesso apenas os autores mais talentosos. Tarpé Mills conseguiu fazer a transição e o estrondoso sucesso de Miss Fury colocou-a na berlinda.

Miss Fury foi uma das mais bem-sucedidas
 super-heroínas da Idade de Ouro.
Utilizando um estilo artístico que combinava harmoniosamente alta costura com aventureirismo no feminino, Tarpé Mills apresentou aos seus leitores Marla Drake. Uma bonita socialite - fac-símile da autora - que, depois de descobrir que uma rival usaria uma fantasia idêntica à sua num baile de máscaras, decidiu caprichosamente enfiar-se na pele de uma pantera negra.
Na verdade uma veste cerimonial africana herdada de um tio aventureiro, a pele estava imbuída de misteriosos poderes místicos. Fruto de uma suposta maldição, os poderes do traje causavam sempre algum tipo de infortúnio ao seu usuário. Recomendava, por isso, a prudência que fossem usados somente em casos de vida ou morte.
Assim, por contraponto à Mulher-Maravilha, semideusa com habilidades formidáveis, Miss Fury dependia essencialmente da sua astúcia e capacidades atléticas para triunfar sobre os seus adversários. As contra-indicações do traje constituíram, ademais, o álibi para Tarpé Mills privilegiar a identidade civil da heroína, a quem dotou de um exuberante guarda-roupa. Era, pois, comum ver Marla Drake a correr de saltos altos ou a saltar de paraquedas dentro de um elegante vestido de cetim. E, mesmo quando se apresentava com os seus paramentos felinos, destoava da generalidade das super-heroínas que combatiam o crime em trajes sumários. À tradicional objetificação sexual das mulheres na cultura popular, respondeu Tarpé Mills com a celebração da feminilidade e o culto do glamour.
Por outro lado, a origem de Miss Fury ridicularizava algumas convenções masculinas que permeavam o género super-heroico. A caminho do supramencionado baile de máscaras, Marla encontra dois malfeitores que prontamente subjuga com uma hilariante combinação de golpes de Karaté, pisadelas com os seus saltos agulha e uma baforada de pó de arroz nos olhos. No subversivo universo de Miss Fury, os presumíveis instrumentos do patriarcado - maquilhagem, sapatos de salto alto, vestidos vaporosos, etc. - eram usados contra o sistema.

Nas mãos de Miss Fury, até pó de arroz virava arma.
Alternando entre a sua identidade civil e a sua persona heroica, ao longo de uma década Marla Drake enfrentou, com inesgotável energia, desde reles bandidos a espiões, passando pelos inevitáveis cientistas insanos. Seria, no entanto, a condessa Erica Von Kampf - femme fatale nazi com uma suástica tatuada na testa - a ser erigida a sua arqui-inimiga. Sem que, no campo da sensualidade e da inteligência, alguma se assumisse como vencedora inequívoca, tal era o equilíbrio da disputa.
Sempre empenhada em implodir estereótipos sexistas e em desafiar o status quo, Tarpé Mills fez de Marla Drake uma mãe solteira depois de adotar o filho perdido da sua némesis. Isto numa época em que as famílias monoparentais eram olhadas de soslaio por uma sociedade americana cada vez mais influenciada por valores conservadores.
Malgrado a personalidade independente da protagonista, nas histórias de Miss Fury havia também espaço para o romance. Como em quase tudo o que dizia respeito à heroína, este assumia, porém, contornos pouco ortodoxos.
Denunciando a irreverência da autora, Marla Drake era o vértice de um triângulo amoroso com o seu ex-noivo, Gary Hale, e com o detetive Dan Carey. Este último investigava as operações de Miss Fury sem suspeitar que a heroína era o alter ego da sua namorada. Nessa frágil cadeia de afetos, os homens eram, inquestionavelmente, os elos mais fracos.
Numa radical inversão dos papéis tradicionais, no universo de Miss Fury eram os homens quem, invariavelmente, precisavam ser salvos - não raro, deles próprios. Durante a Segunda Guerra Mundial, a ausência dos homens abriu caminho ao ingresso das mulheres no mercado de trabalho e para representações menos convencionais delas na cultura popular. Em sintonia com o ar do tempo, Tarpé Mills criou um símbolo do crescente poder feminino.
Foi também durante esse período histórico que Miss Fury atingiu o zénite da sua popularidade. As suas tiras eram então publicadas numa centena de jornais e, em 1942, foram vendidos mais de um milhão de exemplares de cada um dos oito volumes antológicos editados pela Timely Comics.
Inquéritos realizados na altura concluíram que as façanhas de Miss Fury cativavam em igual medida leitores de ambos os géneros. A pensar na sua crescente audiência feminina, Tarpé Mills passou a incluir nas suas tiras bonecas de papel recortáveis de Marla Drake e da condessa Von Kampf que permitiam às leitoras escolher as toilletes de cada personagem. Era tal o apelo de Miss Fury que a sua imagem chegou a adornar a fuselagem de bombardeiros americanos envolvidos no esforço de guerra aliado.

As bonecas de papel recortáveis permitiam escolher
 as indumentárias de Marla Drake e da condessa Von Kampf (baixo).



Por essa altura, já Tarpé Mills se tornara tão famosa quanto a sua criação. Rendida à sua beleza e talento, a imprensa transformou-a numa pop star, explorando trivialidades como o facto de a mascote de Miss Fury ter sido inspirada em Perri-Purr, o exuberante gato persa da autora. Esses dias resplandecentes de glória começariam, contudo, a embaciar-se no pós-guerra.

Bombardeiro americano com uma imagem de Miss Fury desenhada na fuselagem.
June Tarpé Mills era inseparável do seu gato persa de estimação.
Ironicamente, foi o glamoroso guarda-roupa de Marla Drake - que fazia as delícias das fãs - a estar na origem de um controverso episódio de censura. Em 1947, 37 jornais recusaram publicar um painel onde uma sensual coadjuvante dançava num clube noturno fantasiada de Eva, vestindo apenas um biquíni feito de folhas.
Essa não foi, todavia, a primeira vez que Miss Fury foi visada pela brigada dos costumes. Alguns anos antes, outro painel mostrando a condessa Von Kampf fazendo as suas abluções numa banheira fora igualmente vetado. Num aparente contrassenso, inúmeras outras imagens de mulheres em lingerie ou no duche haviam passado no crivo dos censores. Mas os tempos eram agora de mudança.

Um dos painéis censurados de Miss Fury.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o consequente regresso massivo dos homens ao mercado de trabalho, as mulheres voltaram a ser relegadas para as suas funções tradicionais de esposas e mães. Refletindo esse retrocesso social, a cultura popular deixou de promover personagens femininas com caráter forte e independente. Ademais, um significativo número de políticos e de psicólogos alinhados com o conservadorismo atribuíam o aumento da delinquência juvenil a essas representações heterodoxas das mulheres. Consequentemente, no início da década de 1950 as histórias de super-heroínas cederam lugar às historietas românticas nas quais se plasmavam toda a sorte de estereótipos sexistas.
Após o cancelamento de Miss Fury em 1951, Tarpé Mills trocou os quadradinhos pela publicidade comercial, rapidamente regressando ao anonimato. De onde emergiria apenas em 1971 para, ironicamente, produzir um conto romântico para Our Love Story, série mensal da Marvel Comics destinada ao público feminino. Antes de dobrar a esquina da década, Tarpé Mills começou a trabalhar numa graphic novel de Albino Joe, coadjuvante brasileiro de Miss Fury. A deterioração da saúde da autora impediu-a, no entanto, de finalizar a obra.
Tarpé Mills sofria de Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica e os seus últimos anos de vida passou-os confinada no seu apartamento no Brooklyn devido à sua dependência de oxigénio. Apesar desse ocaso penoso, nunca deixou de fumar cigarro atrás de cigarro. Solteira e sem filhos, faleceu a 12 de dezembro de 1988, tendo sido sepultada num cemitério de Nova Jérsia sob uma singela lápide onde surge apenas identificada como criadora de Miss Fury. Epitáfio deveras redutor para uma mulher extraordinária cujo exemplo pioneiro na 9ª Arte continua a inspirar muitas congéneres a contrariarem a hegemonia masculina nesse segmento cultural.
Em 2019, num imperativo de memória e de justiça, Tarpé Mills seria finalmente resgatada da obscuridade, ao ser postumamente distinguida com um Eisner Award. Figurando agora o seu nome no Comics Hall of Fame (equivalente do Passeio da Fama de Hollywood) ao lado de outros demiurgos da Arte Sequencial,  como Jack Kirby, Lee Falk ou Bill Finger.
Quanto à sua criação suprema, após mais de meio século no domínio público, Miss Fury é desde 2012 propriedade da Dynamite Entertainment. Enquanto passeia a sua insolência felina por diferentes títulos da editora, Marla Drake vai seduzindo toda uma nova geração de leitores e mantendo vivo o legado daquela que foi a prima donna da era dourada dos comics.

Agora sob a égide da Dynamite Entertainment,
Miss Fury parte à conquista do século XXI.

*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Artigo sobre a Timely Comics disponível para leitura suplementar.
*Conheçam aqui as 20 super-heroínas que antecederam a Mulher-Maravilha: https://www.syfy.com/syfywire/20-superheroines-who-were-saving-world-wonder-woman
*Agradecimento muito especial ao meu bom amigo Sebastião Nicolau, autor da belíssima montagem que abre este artigo. 





































































6 comentários:

  1. Foi um prazer colaborar com este artigo tão informativo e que traz justiça a uma das grandes damas dos primórdios das HQs. Como já dizia o grande Andrew Martin, "isto fica feliz em ser útil".

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  2. Gostei de conhecer mais da heroína, e tb da autora; mas precisava msm toda essa conversa feminista?

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  3. Fiquei em êxtase! Como pode uma personagem de tal quilate ter sido relegada ao ostracismo? Como faço para ler algumas aventuras de Miss Fury, que me parece um misto de Batman com January Jones???? Parabéns!

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  4. José de Arimatheia Custódio8 de agosto de 2020 às 08:24

    Mais uma vez, um personagem serve de cortina para vislumbrar um período histórico peculiar, provocando curiosidade sobre os modismos e etiquetas da época. É curioso ver o autor expor um sentimento feminista de 1 século atrás, é meio século antes do movimento feminista que todos conhecem. E por falar nisso, aposto que as feministas de hoje ignoram a existência da personagem que muito teria a ensiná-las. De quebra, um herói travestido, 100 anos atrás? Olha aí a necessidade de conhecer a História, inclusive em quadrinhos.

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