A história da primeira equipa de super-heróis - aliança de velhas glórias da Idade de Ouro - confunde-se com a da própria DC. Tantas vezes arrastado pelo inelutável caudal de uma continuidade convulsa, o seu legado mantém-se teimosamente à tona na memória coletiva.
Denominação original: Justice Society of America
Editora: DC
Criadores: Sheldon Mayer e Gardner Fox
Estreia: All-Star Comics #3 (dezembro de 1940)
Local de formação: Casa Branca, Washington D.C.
Membros fundadores: Lanterna Verde (Alan Scott), Flash (Jay Garrick), Homem-Hora (Rex Tyler), Senhor Destino (Kent Nelson), Átomo (Albert Pratt), Gavião Negro (Carter Hall), Espectro (Jim Corrigan) e Sandman (Wesley Dodds)
Base operacional: Civic City, um subúrbio de Filadélfia, foi o primeiro quartel-general da equipa, sediada desde o pós-Crise num discreto edifício de arenito no centro da Nova Iorque da Terra-2.
Némesis: Sociedade da Injustiça
Cavaleiros da Távola Redonda
Qual figuração moderna dos Cavaleiros da Távola Redonda, a Sociedade da Justiça da América (SJA) vem combatendo o Mal nas suas diferentes formas desde 1940, ano em que inaugurou uma nova e bem sucedida tendência. Foi ela, com efeito, a primeira equipa de super-heróis da história dos comics, pavimentando o caminho para uma multidão de epígonos.
De tão inextricavelmente ligada à fundação da DC, a origem da SJA confunde-se com a da própria editora que a apadrinhou. Tudo começou em 1939, quando o proprietário da National Comics, Harry Donenfeld, se associou ao pioneiro da indústria dos quadradinhos Max Gaines para formar uma empresa irmã chamada All-American Publications. A despeito do seu estatuto de subsidiária, a nova companhia disporia de ampla autonomia editorial, bem como do seu próprio acervo de personagens.
Ao cabo do primeiro ano de existência, no inventário da All-American Publications pontificavam ativos tão valiosos como Flash, Lanterna Verde ou Gavião Negro. Todos eles desfilavam o seu heroísmo pelas páginas de All-American Comics, título antológico que serviria de inspiração ao lançamento de All-Star Comics, em junho de 1940.
A proposta editorial de All-Star Comics consistia inicialmente em reunir numa mesma revista os heróis mais populares das duas empresas que, pouco tempo depois, se fundiriam para dar origem à DC. Um almanaque pejado de justiceiro fantasiados representava, por si só, uma novidade, logo replicada pela concorrência. Nos meses seguintes, a MLJ (subsidiária da Archie Comics) apostaria forte em Jackpot Comics, ao passo que a Timely (antepassada da Marvel) brindaria os leitores com All-Winners Comics.
A verdadeira inovação chegaria, porém com o terceiro número de All-Star Comics, datado de dezembro de 1940. Por sugestão de Sheldon Mayer, editor-chefe da All-American Publications, os habitués da série foram, pela primeira vez, reunidos numa mesma história. Assinada por Gardner Fox, nela participaram dois representantes de cada uma das quatro antologias então publicadas pela National e pela All-American: Flash & Gavião Negro (Flash Comics), Átomo & Lanterna Verde (All-American Comics), Senhor Destino & Espectro (More Fun Comics) e ainda Homem-Hora & Sandman (Adventure Comics). Oito titãs da justiça que nunca antes haviam trabalhado juntos. Mas isso estava prestes a mudar.
O ato fundador da SJA teve lugar em All-Star Comics #3 (1940). |
Conscientes de que haviam tropeçado numa mina de ouro, a National e a All-American apressaram-se a alterar a periodicidade de All-Star Comics de trimestral para bimestral. Ao invés de apenas revisitarem os seus feitos individuais, os heróis passaram, também, a operar como um verdadeiro coletivo.
Nas suas primícias, All-Star Comics apresentava aventuras a solo de vários heróis (frequentemente desenhados pelas seus equipas criativas regulares), culminando com a reunião da SJA contra um inimigo comum na ponta final de cada história. Com uma extensão até 58 páginas, os contos de recorte épico enlevavam os leitores, aparentemente indiferentes à arte tosca e às muitas inconsistências cronológicas (à época, continuidade era mera abstração).
Ao elenco estelífero da SJA começou por presidir o Flash, mas o seu mandato seria curto. Devido às suas obrigações como defensor de Keystone City, o Velocista Carmesim viu-se obrigado, logo em All-Star-Comics #7, a renunciar à liderança da recém-fundada equipa. Em boa verdade, o motivo para essa circunstância foi outro. Flash acabara de ganhar a sua própria série mensal, prerrogativa que ditou a sua inapelável expulsão da antologia.
Flash foi o primeiro líder da SJA. |
Com o tempo, All-Star Comics passara a ter como objetivo primordial a promoção de personagens de segunda linha. Em razão dele, qualquer herói que protagonizasse a sua própria série seria considerado inelegível para participar na antologia. De modo a prevenir os perigos subjacentes à sobre-exposição, era pois esse o principal critério de admissão na SJA. O mesmo que explica a atribuição do estatuto de membros honorários ao Super-Homem e ao Batman, reduzidos a participações esporádicas nas histórias do grupo.
No entanto, a recíproca também era aplicável: se uma personagem perdia destaque noutra série era prontamente desfiliada da SJA. A primeira vítima dessa regra foi o Homem-Hora, após ter tido o respetivo segmento cancelado em Adventure Comics.
Após a saída forçada do Flash, a SJA seria brevemente capitaneada pelo Lanterna Verde. Cujo mandato seria ainda mais curto do que o do antecessor, ao ser-lhe, logo em seguida, atribuída uma série epónima. Sucedeu-lhe então o Gavião Negro, que lideraria a equipa até ao cancelamento de All-Star Comics, no início de 1951.
Desfalcada de dois dos seus membros mais proeminentes, a SJA admitiria logo depois nas suas fileiras Johnny Trovoada (até então uma espécie de mascote da equipa) e Starman (Ted Knight), em quem os editores depositavam grandes esperanças. Menores, ainda assim, do que aquelas que depositavam na Mulher-Maravilha, cuja estreia ocorreu em All-Star Comics #8 (dezembro de 1941). Em nome da diversidade, Diana juntar-se-ia à equipa quatro números depois, mas como sua secretária(!). Uma indignidade para a Princesa Amazona, que deixaria qualquer feminista moderna de cabelos em pé. No entanto, eram os anos 1940 e a descrição de funções da novata incluía, por exemplo, a redação das atas das reuniões da SJA.
A Mulher-Maravilha rejubila com a sua "promoção" a secretária da SJA. |
No final de 1944, coincidindo com o auge de All-Star Comics, Max Gaines dissolveu inopinadamente a sua sociedade com Harry Donenfeld. Decisão tomada no rescaldo de uma querela entre ambos motivada pela entrada de Jack Liebowitz (o contabilista da National Comics) no Conselho de Administração da All-American Publications. Consequentemente, Espectro e Starman, ambos detidos pela National, foram expulsos da SJA. Castigo idêntico àquele que já havia sido aplicado a Sandman e Senhor Destino, após o cancelamento dos respetivos títulos a solo.
Quando a poeira assentou, Gaines vendeu a Donenfeld a sua participação na All-American Publications, e esta foi formalmente fundida com a National, dando origem à neófita Detective Comics. Surpreendentemente, o elenco da SJA continuou a ser composto na totalidade por heróis da All-American.
Indiferente a tudo isto, o grupo continuava a medir forças com alguns dos mais formidáveis vilões da Idade de Ouro. De Vandal Savage a Solomon Grundy, passando pelo Pirata Psíquico, eram muitos os adversários que punham à prova as capacidades da SJA. Seguindo o velho mantra "A união faz a força.", alguns desses supervilões formariam entretanto a Sociedade da Injustiça, depressa elevada a némesis da SJA.
A Sociedade da Injustiça reunia alguns dos mais poderosos vilões da Idade de Ouro. |
Com os regressados Flash e Lanterna Verde e a arte aprimorada de uma nova leva de talentosos desenhadores encabeçada, entre outros, por Alex Toth e Andy Kubert, All-Star Comics escapou à primeira onda de cancelamentos determinada pela perda de tração do género super-heroico no pós-guerra. Em 1947, quando esse declínio era já uma evidência solar, a SJA daria as boas-vindas à sua segunda integrante feminina. Canário Negro juntou-se à equipa em All-Star Comics #38, preenchendo a última vaga no elenco clássico.
Quando, em 1949, a DC cancelou praticamente toda a sua linha de super-heróis, à razia foram somente poupados os títulos solo da Trindade e All-Star Comics. Foi nele que as personagens antes queridas da All-American se entrincheiraram para resistir às investidas do oblívio. Mas o melhor que conseguiram foi adiar o inevitável.
Sem pompa nem circunstância, a SJA fez a sua última aparição na Idade de Ouro em All-Star Comics #57 (março de 1951). Na edição seguinte, a série foi renomeada All-Star Western, assinalando o fim de uma era. E o início do longo purgatório da Sociedade da Justiça da América.
Regresso ao futuro
Contrastando com a miríade de super-heróis relegados ao ostracismo nos anos terminais da Idade de Ouro, após a sua saída de circulação a SJA converteu-se num fenómeno de culto entre os fãs. Mesmo longe da vista, o grupo manteve-se, assim, perto do coração do público.
Na segunda metade da década de 1950, quando a DC começou a apresentar versões modernas de algumas das suas velhas glórias, a SJA inspirou a criação da sua sucessora espiritual da Idade de Prata: a Liga da Justiça da América.
Para explicar a (co)existência de dois Flashes, dois Lanternas Verdes, dois Gaviões Negros, etc., a DC inventou outras tantas realidade paralelas. Ficando desse modo estabelecido que os integrantes da SJA e demais heróis clássicos eram, na verdade, originários, da Terra-2, servindo a Terra-1 de lar aos seus congéneres contemporâneos. Um jogo de espelhos geracional que lançou as bases do complexo Multiverso da Editora das Lendas.
Em 1963, o intenso clamor dos fãs pelo regresso da SJA motivou Julius Schwartz (à época, editor da Liga da Justiça) a produzir um crossover entre as duas equipas. Perante a reação entusiástica dos leitores, Schwartz resolveu transformar o evento numa tradição anual, apenas interrompida em 1985 pelos efeitos disruptivos da Crise nas Infinitas Terras.
O primeiro encontro SJA/LJA ocorreu em Justice League of America #21-22 (1963). |
Essa renovada onda de afeição pela SJA culminaria em 1976 com a revivificação de All-Star Comics retomando a sua numeração original, um quarto de século após a chegada da última edição às bancas.
A nova vida de All-Star Comics não foi, contudo, um mero exercício nostálgico a pensar nos leitores da velha guarda. Recém-contratado à Marvel, o escritor Gerry Conway encarregou-se de injetar sangue fresco na série.
Nos seus últimos anos de atividade, a SJA, já curada da sua misoginia, funcionara como monstra para as suas integrantes femininas. Tanto a Mulher-Maravilha como a Canário Negro vinham ganhando cada vez maior preponderância no grupo. Dentro do mesmo espírito, a SJA admitiu duas novas heroínas: Caçadora e Poderosa (respetivamente, a filha do Batman e da Mulher-Gato e a versão madura da Supergirl, ambas da Terra-2). Nem o poder combinado da SJA evitou, porém, o cancelamento de All-Star Comics. Cujo número 78, dado à estampa em outubro de 1978, sinalizou a segunda morte desse histórico título da DC.
O último número de All-Star Comics. |
Concebida como a solução final para a convulsa continuidade da DC, em 1985 a saga Crise nas Infinitas Terras implodiu o Multiverso. Dada a existência de uma única Terra, os editores, prevenindo novas incongruências cronológicas, entenderam por bem desembaraçar-se de vez da SJA. Com o seu desaparecimento a ser explicado através da recriação do mito de Sísifo.
Numa desesperada tentativa para inverter o rumo do conflito, nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial Adolf Hitler pusera em marcha o Ragnarok, equivalente do Apocalipse na mitologia nórdica. Para travá-lo, Espectro e Senhor Destino transportaram a SJA para o Limbo, onde o grupo enfrentou e derrotou os deuses antigos. No entanto, sempre que o faziam a batalha recomeçava. À semelhança do ordálio de Sísifo, a SJA viu-se obrigada a combater os mesmos inimigos até ao fim dos tempos.
Objeto de sucessivos revivalismos ao longo de toda a década de 1990, sob a forma de séries e minisséries, a SJA teve finalmente a sua origem revelada em Secret Origins Vol.2 #31. Saída da pena de Roy Thomas (que, desde a infância, idolatrava o grupo), a história mostrava como, em finais de 1940, o Presidente Franklin D. Roosevelt, contornando o isolacionismo americano imposto pelo Congresso, recrutara um contingente de justiceiros fantasiados para colaborarem secretamente com os aliados europeus que resistiam como podiam ao ímpeto conquistador do III Reich. Findo o conflito, a SJA mantivera-se ativa no combate ao crime e à corrupção.
Num outro retcon foi igualmente aduzida a verdadeira razão para a saída de cena da SJA. Intimados, em 1951, a depor perante o Comité de Atividades Antiamericanas presidido pelo senador republicano Joseph McCarthy, os seus membros recusaram revelar as suas identidades civis, preferindo a reforma antecipada e uma velhice tranquila.
A SJA desafia o todo-poderoso Comité de Atividades Antiamericanas. |
No contexto dos Novos 52, o último evento redefinidor do Universo DC, diversas personagens da Idade de Ouro foram reimaginadas por forma a torná-las apelativas para as novas gerações. Cinco anos após a morte da Trindade às mãos do Lobo da Estepe, o poderoso general de Darkseid, a Terra-2 testemunhou o alvorecer de uma nova era heroica. Flash (agora adolescente), Lanterna Verde (agora homossexual), Senhor Incrível (agora negro) e outras maravilhas uniram forças para repelir nova invasão massiva das hordas de Apokolips. Apesar de o espírito ser o mesmo, o grupo não reclamou para si o legado nominal da Sociedade da Justiça da América. Aquele que, em 2010, marcou presença em dois episódios da 9ª temporada de Smallville e que, por estes dias, desempenha papel central na série Stargirl. Neste seu regresso ao futuro pelas estradas digitais do terceiro milénio, a SJA terá ainda oportunidade de brilhar no vindouro filme do Adão Negro.
À luz dos padrões contemporâneos, os heróis da Idade de Ouro parecem demasiado simplistas, mas personificavam uma visão esperançosa e moralizadora do mundo, bastante revigorante neste século XXI sob o signo do relativismo. Nas suas diferentes encarnações, a SJA provou ser notavelmente resistente às ondas de revisionismo e cinismo que, de tempos a tempos, varrem a indústria dos comics. Em vários aspetos, estas reminiscências da Idade de Ouro representam o passado da DC (e, por extensão, de toda uma subcultura), e por mais que a empresa tente matá-las ou apagar o seu lastro histórico, elas aí estão para enriquecer novas gerações de leitores. Porque não existe futuro despido de passado e porque certos valores, tal como os heróis que os representam, nunca saem de moda.
Heróis de ontem, hoje e amanhã. |
*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
* Artigos sobre Gardner Fox, Gavião Negro, Lanterna Verde, Vandal Savage, Roy Thomas e Crise nas Infinitas Terras disponíveis para leitura complementar.
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Ah, estes senhores de respeito. Evocam tempos mais simples, mas não menos problemáticos. A SJA é mais que um pilar; é uma pedra angular sobre a qual se construiu o edifício dos super heróis da DC. Enquanto pelo menos um dos "velhos" integrantes fizer parte da equipe, sua memória estará garantida, mesmo com a chegada de novos membros (ou membros atualizados), como Sandman e a Stargirl. Porém, é impossível, para quem leu, não se recordar da SJA Pré-Crise, uma reunião de signos de integridade, ética, coragem e defesa da justiça. Bem acomodados na Terra 2, protagonizavam histórias atrativas, além de promover encontros marcantes com suas contrapartes da Terra 1.
ResponderEliminarMais recentemente, em "Mundos em Guerra" (2001, nos EUA), a SJA recebeu uma grande missão e a cumpriu sem sequer uma baixa (nem feridos), deixando perplexo o presidente Luthor. É só um exemplo de como a equipe é.
É pena que os personagens da SJA tenham, a exemplo de tantos outros, sofrido nas bizarras "crises" da DC. Porém, eles retornam e, sempre que o fazem, vêm como símbolo de valores positivos, desejáveis e atemporais.
Vida longa à SJA.
Bons tempos em que a genialidade dos roteiristas mesclava realidade e ficção para compor uma trama coesa e sem furos, algo raro, praticamente inexistente, nos dias que correm. Devido a mudanças que não comentarei para não correr o risco de ser crucificado como preconceituoso, parei de acompanhar essa equipe a partir de sua reformulação nos Novos 52. Desde então, vivo da releitura dos números antigos e da nostalgia a que, cada vez mais, nós, leitores, estamos sendo forçados nestes tempos cada vez mais desprovidos de valores corretos e de noção. Excelente texto, como sempre. Aplaudo!
ResponderEliminarNão entendi uma coisa: se a SJA vive sendo cancelada por este ou aquele motivo, por que seus editores voltam com ela?
ResponderEliminarPorque, conforme é explicado no último parágrafo do texto, a SJA não só representa um conjunto de valores positivos e atemporais, como integra o acervo museológico da Editora das Lendas, de cujo universo continua a ser pedra angular. A resistência e resiliência do grupo face aos sucessivos cancelamentos de que tem sido vítima ao longo das décadas só reforça esse seu estatuto.
EliminarUm brilhante e esclarecedor texto sobre a SJA, terminado com uma ainda mais brilhante premissa do seu autor.
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