06 março 2020

ETERNOS: STEVE DITKO (1927-2018)


   Foi um dos virtuosos arquitetos da Casa das Ideias, mas bateu com a porta quando esta se provou acanhada para as suas convicções. Esquivo como uma sombra de vidro, esculpia totens da cultura popular com o implacável cinzel do Objetivismo. 

Quando, em 2007, o popular apresentador televisivo britânico Jonathan Ross se propôs realizar um documentário sobre Steve Ditko para a BBC Four, sabia que teria de perseguir um fantasma arisco. Avesso a entrevistas (a última remontava a 1968) e aparições públicas, o lendário cocriador do Homem-Aranha e do Doutor Estranho vivia há anos em reclusão voluntária. Qualquer jornalista, fã ou simples curioso que pisasse a soleira da sua porta era, ademais, prontamente enxotado. Nada disso desencorajou, porém, Ross de tentar a sua sorte, confiante que esta tende a bafejar os audazes.
Ao cabo de meses de aturada investigação, Ross localizou finalmente o seu alvo num anónimo edifício de escritórios nova-iorquino. Escoltado pelo seu compatriota Neil Gaiman (outro assumido admirador da obra de Ditko), conseguiu um breve, porém cordial, tête-à-tête com o velho mestre da Arte Sequencial, no seu modesto estúdio.
O que nesse encontro foi discutido permanece até hoje no segredo dos deuses. Fiel aos seus rígidos princípios, Ditko não autorizou a gravação do mesmo e tudo indica que terá exigido máxima discrição aos seus visitantes. Mas nem por isso Ross voltou para casa de mãos vazias. Do ex-parceiro criativo de Stan Lee e Jack Kirby recebeu uma seleção de histórias da sua autoria. Resumindo-se a essa inesperada oferenda o contributo de Ditko para um projeto que, à semelhança de tantos outros, o teria como protagonista omisso.
Uma vez mais, era por meio da sua exuberante obra que Steve Ditko, o eremita, comunicava com o mundo. O homem por trás do artista genial e do filósofo espontâneo, esse, permaneceria um enigma.
Apontado como uma referência no género, o documentário de Ross - apropriadamente intitulado In Search of Steve Ditko (À procura de Steve Ditko) - falhou, previsivelmente, em decifrar o biografado.

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Jonathan Ross, autor do documentário À Procura de Steve Ditko.
A despeito de ter colocado um pouco de si em todas as suas criações - mesmo aquelas alcandoradas a ícones globais - Ditko será para sempre um livro proibido trancado a sete chaves numa biblioteca secreta a que quase ninguém teve acesso. Passagens avulsas, quase sempre encriptadas, foi tudo o que ele alguma vez nos permitiu ler.
Aqui ficam algumas delas, na certeza de que, tal como o próprio Ditko, personagem desconcertante,  suscitarão numerosas interpretações.
Stephen John Ditko Jr. nasceu a 2 de novembro de 1927 em Johnstown, pequena cidade industrial no estado da Pensilvânia martirizada ao longo da sua história por violentas cheias. Segundo filho de uma ninhada de quatro de um humilde casal de imigrantes originários da antiga Checoslováquia - ele mestre carpinteiro numa fábrica de aço local, ela dona de casa - do pai herdou o nome e a paixão pelas histórias aos quadradinhos. Às quais foi apresentado através das tiras do Príncipe Valente à época publicadas nos jornais. Batman e The Spirit seriam, no entanto, os verdadeiros catalisadores do fascínio do pequeno Steve Ditko em relação à 9ª Arte.
A passagem de Ditko pelo liceu coincidiu com a entrada dos EUA na II Guerra Mundial. No auge do conflito, participava no Clube de Ciências e num outro que fabricava modelos em madeira de aviões alemães para serem utilizados nos treinos de observadores aéreos.
Concluído o secundário, em 1945 Ditko alistou-se no Exército, sendo destacado no ano seguinte para a Alemanha sob ocupação aliada, onde o seu talento artístico lhe rendeu o posto de ilustrador num jornal castrense. Durante essa temporada longe de casa, produziu também uma banda desenhada que enviava todos os meses para um dos seus irmãos.

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Postal ilustrado da cidade natal de Steve Ditko e o mestre nos seus tempos de juventude.
De regresso à vida civil e aos EUA, em 1950 Steve Ditko matriculou-se na Cartoonists and Illustrators School (atualmente conhecida como School of Visual Arts), em Nova Iorque. Jerry Robinson, pupilo de Bob Kane e cocriador do Menino-Prodígio, foi o professor que mais influenciou o seu estilo e a sua vontade de abraçar uma carreira como desenhador profissional.
Com Eric Stanton, seu colega de turma e futuro artista e fotógrafo fetichista, Ditko cunharia amizade para a vida. Entre 1958 e 1968, os dois partilharam um estúdio em Manhattan e, ao que consta, ter-se-ão assistido mutuamente nos seus trabalhos (algo que ambos sempre negaram). Stanton terá sido, de resto, uma das raras pessoas que terão conhecido o homem por trás da lenda. Mas também ele levou esse segredo para o túmulo.
Em finais de 1953, então com 26 anos, Steve Ditko conseguiu o seu primeiro trabalho profissional ao ser contratado pela Key Publications para ilustrar um conto de terror intitulado Stretching Things. A história em questão seria, contudo, vendida à Ajax-Farrell, que a publicou em Fantastic Fears nº5.´

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Fantastic Fears nº5  (1954) apadrinhou
 a estreia profissional de Steve Ditko.
Ansioso por fazer parte da indústria dos comics, poucos meses depois Ditko reforçaria o staff do estúdio Crestwood dirigido por Joe Simon e Jack Kirby, a ex-dupla maravilha da Timely. A principal função de Ditko consistia em arte-finalizar os esboços de Mort Meskin, um dos mais talentosos e respeitados artistas da Idade de Ouro.
Quase sem tempo para aquecer o lugar, no trimestre seguinte Ditko migrou para a Charlton Comics. O ano de 1954 marcou, assim, o início da sua longa, porém intermitente, ligação à editora sediada no Connecticut. Que compensava as modestas remunerações com as amplas liberdades criativas concedidas aos seus colaboradores. Prerrogativa que contribuiu sobremodo para o florescimento artístico de Ditko, que por lá viveu uma das suas fases mais prolíficas.
Em menos de um ano, Ditko desenhou 170 páginas e 19 capas para a Charlton. Feito ainda mais notável se levarmos em conta que essa produção frenética coincidiu com um diagnóstico de tuberculose.
Sob os cuidados da mãe, Ditko restabeleceu-se em tempo recorde e, logo no início de 1955, estava pronto para voltar à liça. Contudo, durante a sua convalescença um furacão arrasara as instalações da Charlton. Novamente saudável mas sem emprego, no ano seguinte Ditko bateu à porta da Atlas Comics (sucessora da Timely e antecessora da Marvel), para a qual começou então a desenhar contos de terror publicados em títulos emblemáticos da editora, como Journey into Mystery ou World of Suspense. Dada a sua experiência prévia em histórias desse género, Ditko sentiu-se como peixe na água e depressa se tornou um dos artistas mais requisitados da companhia.
Em 1957, com a crise instalada na indústria dos comics, a Atlas foi forçada a dispensar a maior parte dos seus colaboradores. Ditko não escapou à razia mas teve a ventura de encontrar abrigo na rediviva Charlton. Nessa sua segunda passagem por uma casa que tão bem conhecia, dividiu com o escritor Joe Gill os créditos da criação do Capitão Átomo, herói espacial apresentado ao mundo em março de 1960, no 33º número de Space Adventures.
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Capitão Átomo, o primeiro super-herói criado por Steve Ditko.
Durante essa fase, Ditko desdobrava-se incansavelmente entre a Charlton e a Marvel, à qual aceitara regressar logo em 1958 e onde tinha agora como parceiro criativo Stan Lee. As sofisticadas histórias de suspense da autoria de ambos eram extremamente apreciadas pelos leitores e tinham dado novo elã a títulos clássicos como Strange Tales, Tales to Astonish ou Amazing Fantasy. Incidindo sobre este último a escolha do presidente executivo da Casa das Ideias, Martin Goodman, para acolher um novo super-herói.
Assistia-se, desde meados da década de 50, ao renascimento do género super-heroico e a Marvel teria uma palavra a dizer.  Com Stan Lee e Jack Kirby, Steve Ditko seria o terceiro vértice do triângulo de visionários que reinventaram os super-heróis. Revolução posta em marcha com o Quarteto Fantástico, em 1961, e que prosseguiria agora com a irreverência de um certo Escalador de Paredes.
O Sensacional Homem-Aranha fez a sua vibrante estreia em agosto de 1962, nas páginas de Amazing Fantasy nº15, e logo prendeu os leitores na sua teia. A ideia de apresentar o primeiro super-herói adolescente emancipado da tutela de um adulto partiu de Stan Lee. Tanto a conceção visual da personagem como boa parte da sua caracterização psicológica ficaram, todavia, por conta de Steve Ditko. Que projetou vários traços da sua personalidade no alter ego do herói.
Da aparência franzina ao isolamento social decorrente de uma timidez superlativa, Peter Parker era praticamente um autorretrato de Ditko. A identificação do público nerd com o Homem-Aranha foi instantânea fazendo-o atingir níveis estratosféricos de popularidade apenas comparáveis aos do Super-Homem e Batman.
Diversos dos elementos que compõem o imaginário do Escalador de Paredes, como os lançadores de teias ou o sentido de aranha, tiveram igualmente assinatura de Ditko. O mesmo se podendo dizer acerca dos principais antagonistas do herói, com o Duende Verde à cabeça.
Tudo isto só foi possível graças à aplicação extrema do famoso Método Marvel. A partir de uma sinopse de Stan Lee, Ditko narrava as histórias visualmente cabendo depois ao seu parceiro escrever os respetivos diálogos. Donde a dificuldade em atribuir a cada um deles uma quota-parte na criação do Homem-Aranha.

A partir de uma ideia de Stan Lee,
Ditko criou um dos mais icónicos super-heróis de todos os tempos.
Mesmo depois de ter visto reconhecido o seu estatuto de coautor do Escalador de Paredes, Ditko nunca escondeu o seu desconforto com o facto de, durante demasiado tempo, Stan Lee ter reclamado sozinho os louros pela criação daquele que se tornaria o maior símbolo da Marvel e um totem da cultura popular. Vicissitudes que não se repetiriam aquando da criação do Doutor Estranho, conceito totalmente desenvolvido por Ditko para a Casa das Ideias.
Em julho de 1963, o Mago Supremo debutou em Tales of Suspense nº110 e desde logo ficou claro que as suas histórias transbordantes de visões abstratas e espirais de ectoplasma seriam um desafio à imaginação dos leitores. Outrora um brilhante cirurgião com ego obeso, Stephen Strange tivera as suas mãos incapacitadas após um violento acidente rodoviário. Na demanda por uma cura milagrosa, viajou para o Tibete onde encontrou o misterioso Ancião. Sob os auspícios deste, foi iniciado nas artes arcanas e, de regresso a Nova Iorque, assumiu a missão de defender a Terra de ameaças místicas e extradimensionais.
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As aventuras psicadélicas do Doutor Estranho.
O psicadelismo das histórias do Doutor Estranho atraiu a atenção de muitos estudantes universitários e da comunidade hippie que, por aqueles dias, formavam a vanguarda da revolução cultural em curso. Instalando-se entre esses grupos sociais a crença de que as viagens extradimensionais do herói eram uma alegoria para os efeitos do LSD ou de qualquer outro potente alucinogénio. Ditko foi, assim, tomado por um expoente da contracultura que procurava implantar-se. Ledo engano.
Steve Ditko não só não era consumidor de substâncias psicoativas como desprezava profundamente qualquer movimento de massas. Enformado pelos austeros preceitos do Objetivismo - corrente de pensamento que teve a filósofa russa Ayn Rand (1905-1982) como principal impulsionadora - Ditko acreditava que cada indivíduo deve travar apenas a sua própria guerra; uma guerra contra o relativismo moral e outros venenos das sociedade modernas.
À luz dos ensinamentos objetivistas, Ditko via o mundo a preto e branco, sem espaço para áreas cinzentas. Perante o seu olhar, era nítida a fronteira entre Bem e Mal. E poderá muito bem ter sido essa ortodoxia moral a precipitar a sua saída da Casa das Ideias, que assim ficou desfalcada de um dos seus virtuosos arquitetos.
Donos de personalidades contrastantes, Steve Ditko e Stan Lee concordavam apenas em discordar uma do outro. Se "conservador" era um termo lisonjeiro para descrever o primeiro, "liberal" era um adjetivo que assentava ao segundo como um fato feito por medida.
Ditko passara a imbuir os seus valores morais nas histórias do Homem-Aranha e do Doutor Estranho, e as diferenças criativas e ideológicas com Lee aprofundaram-se ao ponto dos dois deixarem de se falar.  Finalmente, em 1966, Ditko abandonou, sem motivo aparente, a Casa das Ideias.
Alguns oficiais do mesmo ofício da privança de ambos apontam, no entanto, uma razão mais prosaica para a zanga. Segundo eles, as divergências de Lee e Ditko acerca da identidade secreta do Duende Verde (revelada após longos meses de suspense) teria sido o verdadeiro pomo da discórdia. Lee escolheu Norman Osborn - pai do melhor amigo de Peter Parker - ao passo que Ditko preferia que o vilão fosse uma personagem aleatória. A visão de Lee acabaria por prevalecer e, em resposta, Ditko terá batido com a porta. Versão nunca confirmada ou desmentida por nenhum dos intervenientes.

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Terá sido a identidade secreta do Duende Verde
 a ditar a saída de Ditko da Casa das Ideias?
Certo é que os anos passados na Marvel corresponderam ao auge da carreira de Steve Ditko, como bem atestam os oito Alley Awards conquistados entre 1962 e 1965. Mas o mestre da Arte Sequencial tinha ainda muito para oferecer a uma panóplia de editoras. As décadas seguintes seriam, com efeito, pautadas pelo seu nomadismo ao mesmo tempo que reforçaria a sua reputação de libertário.
Novamente ao serviço da Charlton, Ditko reencontrou o "seu" Capitão Átomo e reabilitou o Besouro Azul (originalmente detido pela Fox Comics) antes de criar um avatar do Objetivismo. Introduzido em Blue Beetle nº1 (julho de 1967), o Questão era um anti-herói que servia de alter ego a Vic Sage, um obstinado jornalista especializado em expor casos de corrupção. Tal como seu criador, o Questão obedecia a um rígido código moral e era implacável para com os transgressores. Assumindo com frequência o papel de juiz, júri e executor para impor a sua justiça sem rosto.

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Justiça ou vingança?
Eis a Questão.
Malgrado o radicalismo dos seus métodos, o Questão provou ser uma versão amenizada do impiedoso Mr. A. Assim crismado em referência a um dos axiomas de Ayn Rand - "Um A é só um A." - era um cruel vigilante que aterrorizava criminosos nas páginas (a preto e branco, como o mundo em que se movia) do fanzine Witzend, com o qual Ditko aceitara colaborar.
Em comum com a sua contraparte da Charlton, o facto de Mr. A levar a cabo a sua cruzada no duplo papel de jornalista e campeão mascarado da Justiça. Ao mesmo tempo que expressava sem filtros as convicções filosóficas de Ditko, visto que as suas histórias semiclandestinas escapavam ao escrutínio prévio da Comic Code Authority. Da fusão das duas personagens nasceria, duas décadas mais tarde, o insano Rorschach, de Watchmen.

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O crime é uma doença, Mr. A a cura.
Em concomitância com o trabalho desenvolvido sob a égide da Charlton, Ditko colaborava à época com várias editoras menores, transitando por uma multitude de géneros. Warren Publishing, Dell Comics e Tower Comics foram algumas das beneficiárias do seu génio antes da sua surpreendente mudança para a DC, em 1968.
A meteórica passagem de Ditko pela arquirrival da Marvel ficou marcada pela criação de um dos mais bizarros super-heróis de sempre.  Ao visual garrido, o Rastejante (Creeper, no original) somava um insólito poder: uma risada capaz de infligir dor física. Tal como o questão e Mr. A, tinha como identidade civil um destemido repórter chamado Jack Ryder. Destoava, contudo, das anteriores criações de Ditko pela sua personalidade irracional com laivos psicóticos. Alguns historiadores da 9ª Arte identificam a influência do Joker na conceção do Rastejante. Que, apesar do apelo inicial, veria a sua série mensal cancelada ao fim de apenas meia dúzia de números.
Coincidindo com o pico da contestação social à guerra no Vietname, Steve Ditko criou pouco depois uma parelha de heróis com posições assimétricas relativamente ao conflito. Rapina e Columba (Hawk and Dove, em inglês) tinham ainda a particularidade de serem irmãos. Mas enquanto o primeiro se caracterizava pela belicosidade, o segundo era assumidamente pacifista. Dicotomia que refletia na perfeição as profundas divisões que a intervenção militar dos EUA naquele longínquo país asiático suscitavam na sociedade americana. Sendo, ademais, facilmente reconhecíveis as influências objetivistas de Rapina, com cujas posições Ditko claramente se identificava.
Ditko seria no entanto obrigado a abandonar Rapina e Columba ao fim de apenas dois números, por motivos de saúde. A tuberculose que, na década anterior, lhe refreara o ímpeto criativo voltava a tolher-lhe o corpo e o espírito.

The Creeper by Steve Ditko

Duas séries da DC com a assinatura de Steve Ditko
 tiveram existência efémera.
Ditko recuperaria a saúde mas não o fulgor profissional de outrora. Ao longo das décadas seguintes, à medida que principiava a sua quarentena social autoimposta, deambularia por dezenas de editoras abraçando quase sempre projetos experimentais e de curta duração.
Ao serviço da DC, por exemplo, criou, em 1977 (ano do seu regresso), o Homem Mutável (Shade, The Changing Man), um herói alienígena com uma veste especial que lhe distorcia a aparência em função das emoções circundantes. Ditko tinha grandes planos para o néofito mas as dificuldades financeiras que a Editora das Lendas enfrentou a partir de 1978 obrigou ao cancelamento precoce da respetiva série.
Seria, porém, aquando da sua passagem pela defunta Pacific Comics que Ditko conceberia uma das suas mais desconcertantes e obscuras personagens. Com o improvável poder de desaparecer em pleno ar deixando para trás esboços cartunescos de si próprio, Missing Man é geralmente percecionado como uma representação caricatural do próprio Ditko. Cuja obra nimbada pela cintilante luz da genialidade encerra os únicos vestígios da sua passagem pelo mundo.

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Shade, o Homem Mutável.

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Missing Man. Uma caricatura de Ditko?
Solteiro inveterado e sem descendência biológica conhecida, não existe qualquer indício de uma ligação íntima de Ditko a qualquer outro ser humano. Will Eisner, seu velho compincha, declarou certa vez ter conhecido o filho de Ditko mas é quase certo que o terá confundido com um sobrinho.
De permeio, Ditko ensaiou repetidos regressos à Marvel. A cada um deles sentindo-se mais um fantasma que assombrava a Casa das Ideias que ajudara a pôr de pé e onde vivera alguns dos seus dias mais felizes.
Cada vez mais entrincheirado no seu fundamentalismo objetivista, sepultou velhas amizades (como aquela que o unia a Dick Giordano, que levara consigo para a DC) e recusou todo e qualquer projeto que colidisse com as suas ideias.
Cidadão mental de uma época distante, o presente afigurava-se a Ditko como uma distopia futurista. E por isso rejeitava o mundo moderno e tudo aquilo que ele tinha para oferecer. Nas suas histórias abundavam ainda personagens de chapéu e gabardina que pareciam saídas diretamente dos anos 1950.
Mesmo quando os trabalhos começaram a rarear e a subsistência era uma luta diária, Ditko recusou vender a arte original que lhe teria rendido boa maquia. Do mesmo modo que nunca reclamou um cêntimo dos lucros astronómicos gerados pelas adaptações do Homem-Aranha e do Doutor Estranho ao cinema. Fama e fortuna nada significavam para ele. A prová-lo, o facto de, em 1987, ter recusado o Comic-Con Inkpot Award com o qual fora distinguido à revelia.
No fatídico dia 29 de junho de 2018, em vésperas de cumprir o seu 91º aniversário, Steve Ditko foi encontrado sem vida pela Polícia no interior do seu modesto apartamento, em Nova Iorque. Curiosamente, poucos meses antes de também Stan Lee se despedir do mundo terreno.
No entanto, por contraste com a celeuma mediática em torno do óbito de Lee, a morte de Ditko pouco mais foi do que uma nota de rodapé na generalidade da imprensa.
Para a posteridade ficam as palavras pronunciadas numa das suas últimas entrevistas, concedida algures na década de 1960: "Steve Ditko é uma marca comercial. O meu trabalho é tudo o precisam conhecer sobre mim. É por ele que quero ser lembrado." O mundo fez-lhe a vontade.

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A criatura chora a morte do criador.

Agradecimento muito especial ao meu bom amigo Emerson Andrade, autor da montagem que abre este artigo, que espero estar à altura do seu talento e expectativas.

Nota 1: Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
Nota 2: Artigos sobre a Timely Comics, Charlton Comics e Homem-Aranha disponíveis para leitura complementar.































7 comentários:

  1. E, novamente, um excelente texto. Ditko foi um artista que espalhou mistério ao seu derredor: seja na obra, seja na vida. Um grande abraço!!!!!

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  2. Apesar de não querer chamar atenção e deixar sua obra falar por si,viveu da maneira que lhe agradava e isso era o fundamental em sua vida.Stan na direção oposta foi o showman da Marvel por todo seus 95 anos.

    Este que lhe escreve deseja que uma nota de rodapé não seja o destino final dos criadores da nona arte tal qual Ditko,e mais recentemente Nicola Cuti.

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  3. Saudações, Pedro. Começo por te agradecer o tempo dispensado à leitura do meu artigo sobre aquele que foi, sem sombra de dúvidas, um titã da 9ª Arte. E que, por isso, merece ter esse estatuto preservado através da evocação da sua monumental obra. Neste blogue os grandes criadores serão sempre tratados condignamente. Steve Ditko preferiu ser um leão solitário do que misturar-se com um rebanho medíocre. Uma opção de vida legítima que lhe trouxe, porém, alguns dissabores. Do mesmo modo que uma certa mumificação do pensamento decorrente do seu fundamentalismo moral lhe prejudicou a fase final da sua carreira, ainda assim fulgurante como poucas. Abraço.

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  4. Assim como outro gênio - só que da literatura - que não canso de admirar, que é H. P. Lovecraft, Ditko teve como principal característica a decisão de seguir por um caminho por poucos palmilhado, e, mais adiante em sua existência, por ninguém além dele mesmo. Também têm em comum os dois gênios o fato de terem sido materialmente prejudicados pela rigidez de suas posições filosófico-ideológicas. Gente como eles não há mais neste mundo de concessões que diminuem a obra de arte.
    Ótimo texto, como sempre trazendo a mim fatos que eu ignorava. Frequentar a Fortaleza da Solidão é sempre um privilégio!

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    1. Saudações, Celso. Grato pelo feedback. Steve Ditko foi, a vários títulos, uma figura ímpar da 9ª Arte, sobre a qual haveria muito mais a dizer. De tão rica, a sua obra perdurará no tempo representando o único legado que o seu misterioso autor desejou deixar às gerações seguintes.
      Muito me honra, por por outro lado, ser anfitrião de bedéfilos de alto coturno como tu. Que, tal como os leigos, terão neste blogue um reduto de informação fidedigna acerca de uma variedade de temas conexos com o género super-heroico que tanto nos fascina. Amplexo fraterno deste teu irmão lusófono.

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  5. O amigo acima citou o Lovecraft e é bem apropriado mesmo, pois tanto ele quanto o Ditko, acabaram sendo pessoas infelizes, levando em conta o que sabemos de suas vidas. Eu sinto pena, pois ele eram gênios e mereciam melhor sorte.

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