20 março 2017

FÁBRICA DE MITOS: FIRST COMICS



  No pioneirismo editorial e na excelência dos seus autores teve as coordenadas do seu surpreendente sucesso. Quando mordeu os calcanhares aos dois titãs que, nos alvores dos anos 80, dominavam a seu bel-prazer a indústria dos comics, foi atirada para fora de um jogo com regras viciadas. Apesar da deserção de um dos seus fundadores, volta agora a dar cartas, lançando novos e velhos trunfos.


Uma lufada de ar fresco

Na viragem da década de 80 do último século, a indústria dos comics estava capturada pela Marvel e pela DC que, assim, iam ditando as regras do jogo. Enquanto os dois colossos se procuravam abafar mutuamente, era o próprio mercado que tinha dificuldades em respirar.
Nessa atmosfera sufocante, o advento da First Comics funcionou, portanto, como um balão de oxigénio. Em especial para as licenciadoras independentes asfixiadas por uma concorrência que, como mais adiante se perceberá, nem sempre fazia jogo limpo.
Nascida do sonho de dois visionários-  Ken Levin e Mike Gold - e sob o signo da irreverência, em 1983 a First Comics elegeria Evanston, um subúrbio de Chicago, para sua primeira base operacional. Sob o lema Go for great! (algo como "Aposta no melhor!"), a empresa não demorou a atrair um naipe de autores tão talentosos quanto desejosos de uma oportunidade para darem a conhecer ao público os seus projetos pessoais. Projetos esses invariavelmente ignorados pelas grandes editoras para as quais trabalhavam ou vetados pelo Comics Code Authority (código regulador dos conteúdos publicados nos títulos norte-americanos com super-heróis e afins).

O logótipo original da editora.
Sem receio de arriscar nas suas opções editoriais e liberta dos atavios do CCA, a First Comics, ao mesmo tempo que piscava o olho aos leitores maduros, marcava igualmente a diferença noutros campos. Entre os seus princípios éticos pontificava, por exemplo, o inapelável respeito pelos direitos autorais. Exceção assinalável numa época onde era ainda frequente a apropriação indevida por parte das grandes licenciadoras de conceitos desenvolvidos pelos seus colaboradores.
Em vez de meros proletários, na First Comics os escritores e artistas eram tratados como criadores com uma palavra a dizer na edição das suas obras. Circunstância que, anos depois, motivaria um amplo debate em torno dos direitos autorais, do qual resultaria um primeiro esboço de legislação com vista à sua salvaguarda (a Creator's Bill of Rights).
Graças ao seu  faro apurado para talentos fora de série, Mike Gold conseguiu agrupar em pouco tempo uma verdadeira constelação de autores, na sua maioria desviados da Marvel e da DC. Mike Grell (Jon Sable), Jim Starlin (Dreadstar) e Howard Chaykin (American Flagg!) foram alguns dos astros descontentes com o tratamento recebido por parte das grandes editoras a abrilhantar um projeto em que, à partida, poucos colocariam fé.
Em 1984, na sequência da aquisição do lote de personagens até então publicadas sob os auspícios da extinta Capitol Comics, foi a vez de Mike Baron (Badger) e Steve Rude (Nexus) subirem a bordo de um navio que navegava agora a todo o vapor. No entanto, como em qualquer viagem por territórios não cartografados, esta não seria isenta de perigos e de obstáculos.


Dois dos títulos perfilhados pela First Comics
após a extinção das respetivas editoras.
Nesse mesmo ano, enquanto as pequenas editoras exploravam as potencialidades do comércio direto (dispensando intermediários entre elas e os pontos de venda), a First Comics interpôs uma ação judicial contra a Marvel. Em causa estariam alegadas práticas anticoncorrenciais adotadas pela Casa das Ideias. A sustentar a acusação, o facto de, logo após a entrada da First Comics no mercado, a editora de Stan Lee o ter inundado com uma enxurrada de novos títulos. Motivando dessa forma um processo que visava também a World Color Press.
Aquela que é, ainda hoje, uma das maiores gráficas a nível mundial - responsável, entre outras coisas, pela impressão da grande maioria dos títulos de super-heróis produzidos em terras do Tio Sam - teria, presumivelmente, inflacionado os preços dos serviços prestados às licenciadoras independentes e, em particular, à First Comics. Embaratecendo, em contrapartida, aqueles que prestava à Marvel.
Ainda com uma longa batalha jurídica no horizonte, em 1985 a First Comics mudou a sua sede para Chicago. Mike Gold, seu cofundador e presidente-executivo, mal teve no entanto tempo de aquecer a cadeira do seu novo gabinete. No final desse mesmo ano, apresentou demissão do cargo, para assumir funções como editor-chefe da DC, em Nova Iorque. A notícia caiu como uma bomba e as ondas de choque fizeram estremecer as próprias fundações da empresa.
Fazendo uso da sua influência junto dos autores para cuja emancipação contribuíra, Gold convenceu vários deles - com Howard Chaykin e Mike Grell à cabeça - a acompanharem-no nessa sua aventura na cidade insone. Contratações de luxo que valeriam à Editora das Lendas algumas das suas mais memoráveis séries dos anos 80:  Blackhawk, Hawkworld e Green Arrow: The Longbow Hunters foram fenómenos de vendas e deixaram a crítica em delírio.
Nem tudo foram, porém, reveses nesse conturbado ano de 1985. Mesmo desfalcada de algumas das suas coqueluches, e tendo agora Ken Levin como único timoneiro, a First Comics não só se manteve à tona como continuou a destacar-se através do pioneirismo das suas iniciativas.
Fazendo jus ao nome, a First Comics foi a primeira a lançar uma série periódica totalmente gerada por computador (Shatter!), a publicar um manga japonês traduzido em inglês (Long Wolf and Cub) e a fazer uma adaptação aos quadradinhos de uma peça de teatro (The Organic Theater's WARP). A coroa de glória seria, contudo, a atribuição do cobiçado Kirby Award para melhor álbum de 1985 a Beowulf. Galardão que distinguia assim a primeira graphic novel baseada no poema épico epónimo que se julga ter sido escrito no início do século XI.




A primeira série digital e a premiada adaptação de um poema épico
tiveram o selo da First Comics.
Em complemento a tudo isto, a notoriedade da First Comics estender-se-ia também a outros segmentos culturais. Em 1987, Jon Sable foi a primeira personagem de uma editora independente a ter as suas aventuras transpostas ao pequeno ecrã. A série, da qual foram gravados somente sete episódios, marcaria também a estreia da ex-top model Rene Russo na representação.

Jon Sable foi o primeiro herói
 de uma pequena editora a ganhar uma série televisiva. 
Com as vendas em declínio, e quando já se adivinhava o seu canto do cisne, no início de 1992, a First Comics foi uma das sete companhias adquiridas pela Classics International Entertainment (CIE). Contudo, em vez de uma tábua de salvação, o negócio serviria tão-somente para acelerar o fim de um projeto moribundo. O que aconteceu quando a CIE tomou a decisão de cessar toda a sua atividade editorial, convertendo-se ela própria numa plataforma digital.
Algum do material publicado pela First Comics seria contudo revisitado por outras editoras já este século. Depois de a Dark Horse ter reeditado em 2002 a série Lone Wolf and Cub, três anos depois seria a vez da IDW republicar os primeiros números de Jon Sable e Grimjack. Personagens icónicas que, juntamente com Badger, seriam revividas a partir de 2007 em novas séries regulares.
Ao fim de quase duas décadas de pousio, em julho de 2011, nas vésperas da edição desse ano da San Diego Comic-Con, Ken Levin anunciou, para gáudio dos fãs nostálgicos, que a First Comics reabriria portas dentro de alguns meses.

Ken Levin, o capitão que se recusou a abandonar o barco.
Ciente das profundas transformações operadas na indústria dos quadradinhos desde os anos 1990, a First Comics aposta agora em três vetores: títulos originais com a assinatura de alguns dos mais reputados autores da atualidade, republicação de material clássico e captação de novos criadores e personagens. Foi precisamente com este último objetivo em vista que, em 2015, a First Comics avançou com um processo de fusão com a Devil Due's Entertainment. Mantendo ambas, contudo, a sua independência editorial.
Com uma forte aposta nas edições digitais, além de Badger (do regressado Mike Baron), a atual linha de super-heróis da First Comics inclui títulos como Zen - The Intergalactic Ninja. Continuando o ecletismo das suas publicações a ser outro dos trunfos da editora. No seu catálogo online, os leitores encontram desde séries de ficção científica como Delete a paródias de humor negro como Killerdarlings, passando por histórias de pendor mais adulto como Blaze Brothers.
Fiel ao seu ADN, a First Comics tem na excelência dos seus autores a sua melhor resposta aos desafios do presente. De olhos postos no futuro, vai conquistado uma nova geração de leitores ao mesmo que reconquista alguns dos da velha guarda.




Killdarlings
Novas e velhas apostas
 de uma editora renascida das próprias cinzas.

O toque de  Midas ou o beijo de Judas?

Personagem-chave na história da First Comics, pelos melhores e piores motivos, Michael "Mike" Gold, escritor, editor e empresário nascido há 66 anos em Chicago, nunca foi homem de fugir às controvérsias. Antes daquela em que se envolveu ao trocar a First Comics pela DC, levando consigo alguns dos maiores talentos da empresa que ajudara a fundar um par de anos antes, já tinha assumido, em 1969, a coordenação da campanha mediática posta em marcha pela defesa dos Sete de Chicago. Um dos nomes pelos quais ficou conhecido o grupo de advogados, originalmente composto por oito elementos, acusados pelo Governo federal norte-americano de conspiração e incitamento à desobediência civil no contexto dos protestos contra a Guerra do Vietname convocados para a cidade durante a convenção do Partido Democrático lá realizada no ano anterior.
Se é verdade que muitos fãs da First Comics nunca lhe perdoaram a "traição", culpando-o pelo fim prematuro do projeto, não há como negar que muito do seu sucesso inicial se ficou a dever a Gold. Apelido que, de resto, soa premonitório, considerando que Mike parece possuir a sua própria variante do toque de Midas.
Senão vejamos: foi graças à sua visão que títulos como American Flagg!, Badger ou Jon Sable (ver texto seguinte) foram verdadeiras pedradas no charco em que se havia transformado o mercado dos comics no princípio da década de 1980. Apesar de essa ser uma luta desigual - a fazer lembrar a alegoria bíblica de David e Golias -, a First Comics chegou, como vimos, a ser bastante incómoda para a toda-poderosa Marvel.
De regresso à DC, de onde saíra em 1983 para fundar a First Comics, Mike Gold pôs a concorrência em sentido ao editar algumas das melhores séries do período pós-Crise nas Infinitas Terras. Hawkworld, The Question, Legends e Green Arrow: The Longbow Warriors tornar-se-iam referências incontornáveis na história da Editora das Lendas. Foi também sob a batuta de Gold que um dos seus títulos mais antigos, Action Comics, ganhou novo elã e nova periodicidade (de mensal passou a semanal).
Sempre atento às novas tendências, em 2006 Mike Gold foi cofundador da ComicMix, plataforma digital dedicada ao entretenimento e à cultura pop. Que, entre muitas outras coisas, serve para comercializar algum do material antigo publicado pela First Comics...

Mike Gold: Judas ou profeta?

As joias da Coroa

Sem demérito para as restantes, American Flagg!, Badger e Jon Sable foram, inquestionavelmente, as séries que maior contributo deram para a afirmação da First Comics no claustrofóbico mercado dos quadradinhos estadunidenses da década de 80. Seduzidos pelo arrojo das tramas e pelo carisma dos seus protagonistas, os leitores cedo fizeram delas casos sérios de popularidade.
No caso da primeira, da autoria de Howard Chaykin, boa parte do seu êxito ficou a dever-se à sua forte componente satírica. Ambientada em 2031 (um futuro ainda distante à data do seu lançamento), American Flagg! denunciava alguns dos pecados originais da sociedade norte-americana, designadamente a subordinação do poder político aos interesses das grandes corporações. As mesmas que, após um cataclismo global e subsequente fuga do Governo para Marte, geriam agora o país como se de um gigantesco negócio se tratasse.
É, pois, neste contexto de venalidade e corrupção moral que surge um improvável campeão da justiça. Antigo astro televisivo convertido em agente policial ao serviço da omnipresente Plexus (à evidência uma paródia a Ronald Reagan que, à época, ocupava a Sala Oval), Reuben Flagg procura ser, apesar das suas fraquezas carnais, um farol de decência num mundo a resvalar rapidamente para o precipício.

O reverso do sonho americano.

Considerada ainda hoje uma das obras capitais de Howard Chaykin, são notórias as suas influências narrativas em Watchmen e The Dark Knight Returns. Entre 1983 e 1988 foram publicados 50 volumes de American Flagg!, que não resistiu contudo à saída do seu criador da First Comics. Razões que fazem desta série um marco na história da 9ª Arte e um sonho de consumo de muitos colecionadores.
Badger, após uma meteórica passagem pela Capitol Comics, aterrou de paraquedas na First Comics, em 1985, para continuar a desafiar todos os estereótipos e regras inescritas das histórias com super-heróis.
Personagem multidimensional saída da imaginação de Mike Baron, o Texugo (tradução literal da sua denominação original) correspondia apenas a uma das seis personalidades desenvolvidas por Norman Skyes. Mestre das artes marciais e veterano da Guerra do Vietname,  Norman fora molestado na infância pelo padrasto, sofrendo por isso de graves perturbações mentais. Apesar das ocasionais temporadas passadas em instituições psiquiátricas, ele operava como um vigilante mascarado e com a capacidade de comunicar com os animais. Particularidade que o levava por vezes a envolver-se em causas ambientais, embora empregando métodos, no mínimo, questionáveis.

Texugo raivoso. 
Mesmo para os padrões da época, as histórias do Texugo eram já politicamente incorretas. Com um registo frequentemente delirante a raiar o absurdo, tinham no humor desbragado a sua pedra de toque, o que as tornava irresistivelmente divertidas. Ao mesmo tempo que convidavam a reflexões mais sérias. Acerca, por exemplo, daquilo que define um herói ou do relativismo moral que atola as nossas sociedades numa espécie de limbo ético. A tal "enorme zona cinzenta" em que muitas pessoas gostam de chafurdar mas onde o Texugo, que via o mundo a preto e branco, se sentia como um peixe fora de água.
Com a extinção da First Comics, o Texugo e o seu criador tornaram-se verdadeiros nómadas, migrando de editora para editora ao longo dos anos seguintes. Até em 2014 regressarem finalmente à casa que tão bem conheciam, para voltar a fazer de Badger um dos títulos de charneira da First Comics.
Muito antes de o realismo servir de bitola às histórias com super-heróis, já Mike Grell o infundia em Jon Sable. O quotidiano deste mercenário e escritor freelancer de contos infantis  (ou seria ao contrário?) era repartido entre as selvas de betão norte-americanas e as luxuriantes savanas africanas.
Fortemente influenciado pela literatura pulp e pelo James Bond de Ian Fleming, o título por ele estrelado teria 56 números publicados com o selo da First Comics até 1988, ano em que foi cancelado já depois de Grell se ter transferido para a DC, ficando as tramas a cargo de Marv Wolfman. Pelo meio, como já aqui foi referido, Sable teve direito a uma série televisiva onde foi interpretado por Lewis Van Bergen. Tornando-se, assim, a primeira personagem de uma licenciadora independente a lograr tal feito.
Vale a pena recordar ainda que todos estes títulos da First Comics, bem como Grimjack e Dreadstar, foram editados em português pelas brasileiras Abril, Cedibra e Globo, entre o final dos anos 80 e o princípio dos anos 90.

Caçador urbano.