10 setembro 2021

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A ÚLTIMA CAÇADA DE KRAVEN»


  Pressentindo o próprio fim, o rei dos caçadores regressa à selva urbana na peugada da única presa que o derrotou. A morte do Homem-Aranha, a astuta fera que o atormenta, será a coroa de glória sob a qual poderá descansar em paz. Mas será que os heróis também se abatem?

Título original: Kraven's Last Hunt (também conhecida como Fearful Simmetry: Kraven's Last Hunt)
Editora: Marvel Comics
País: Estados Unidos da América
Data de lançamento: Outubro e novembro de 1987
Autores: John Marc DeMatteis (argumento), Mike Zeck (arte) e Bob McLeod (arte-final)
Personagens: Homem-Aranha, Kraven, Mary Jane Watson e Rattus
Cenários: Nova Iorque
Edições em português: Os leitores lusófonos tomaram contacto pela primeira vez com esta saga na sua língua materna em 1991, quando ele foi editada pela Abril brasileira. Em vez do tradicional formatinho económico, A Última Saga de Kraven foi publicada como uma minissérie em três volumes em formato americano, sendo compilada em álbum de capa mole no final desse mesmo ano. Ainda por terras de Vera Cruz, desde o início deste século que a obra teve direito a várias reimpressões - sempre em capa dura -, com a chancela alternada da Panini e da Salvat. Em Portugal, foi pela mão da Levoir que, em julho de 2014, ganhou a sua primeira versão em português europeu, inserida na coleção Universo Marvel e originalmente distribuída com o jornal Público.

Em 2015, a Panini Comics republicou pela segunda vez a saga.
Tal como na primeira edição, optou por não usar a icónica capa mostrando
o Homem-Aranha a soerguer-se da campa.

Terrível simetria

Peter Parker bem poderia ser o protagonista da desdita. Órfão desde o berço, viu morrer-lhe nos braços o tio que o criou como filho e foi incapaz de salvar o grande amor da sua vida de uma queda fatal. A tragédia ensombrou sempre a periferia da vida de Peter, enlutando-lhe, uma e outra vez, o coração. Ao longo do percurso editorial do Homem-Aranha, iniciado em 1962, raras foram no entanto as incursões por terrenos mais sombrios. Apesar dos pesares, a natureza otimista de Peter prevaleceu.
Porém, até o mais ensolarado dos heróis tem um lado lunar. Aquele que, antes de A Última Caçada de Kraven, nunca tinha sido devidamente aprofundado. Filha do seu tempo e dos demónios interiores do seu autor, a saga justifica a reputação de ser uma das mais perturbadoras no extenso repertório do Escalador de Paredes.
A segunda metade da década de 1980 foi, de facto, pródiga em reinterpretações adultas e tingidas de negro de algumas personagens que sempre tinham sido alvo de abordagens ligeiras, se não tanto no conteúdo, pelo menos na forma. Batman - O Regresso do Cavaleiro das Trevas (1986) e Watchmen (1987), ambas com a chancela da DC, foram obras pioneiras dessa nova tendência que mudaria sem recuo o género super-heroico.
De um dia para o outro, heróis inabaláveis nas suas convicções viram-se enleados em dilemas morais plasmados em narrativas complexas. Reflexo tanto da mudança geracional entre autores como de uma maior sofisticação intelectual dos leitores.
Com as vendas da rival, impulsionadas por esse fenómeno, a subirem em flecha, a Marvel não quis ficar para trás e decidiu responder com uma história de tintas carregadas. O protagonista não poderia, contudo, ser mais inesperado: ninguém menos que o Simpático Amigo da Vizinhança. Escolha tão mais surpreendente se considerarmos a natureza sensível e afável do Homem-Aranha, assim como a circunstância de a história em questão ter sido imaginada com outra personagem da Casa das Ideias.
Algures entre 1984 e 1985, o escritor J.M. DeMatteis, obreiro de perspetivas revigorantes, propôs a Tom DeFalco, à época editor-chefe da Marvel, uma minissérie em que Magnum (Wonder Man, no original), após um duelo com o seu meio-irmão Ceifador (Grim Reaper), seria enterrado vivo, emergindo mais tarde do túmulo para se vingar. Quiçá desagradado com a morbidez da proposta, DeFalco não hesitou em rejeitá-la.

Magnum e Ceifador eram os protagonistas originais da saga.

Quando trocou a Marvel pela DC, em finais de 1985, DeMatteis substituiu Magnum por Batman e o Ceifador por Joker. Na sinopse fornecida aos editores, o escritor sustentava que essa seria a cura definitiva para a insanidade mental do Príncipe Palhaço do Crime. Numa (in)feliz coincidência, Alan Moore desenvolvia por aqueles dias A Piada Mortal. Dada a existência de alguns pontos de contacto entre as duas histórias, DeMatteis teve de voltar a enfiar a sua na gaveta.
Mas DeMatteis não se deu por vencido. Nas semanas seguintes, reescreveu a história introduzindo-lhe mais umas quantas alterações. Em vez do Joker, o Batman seria agora subjugado por Hugo Strange (outro velho inimigo do Cavaleiro das Trevas) que, em seguida, assumiria o manto do morcego. A ideia voltou, no entanto, a ser rejeitada.
De regresso à Casa das Ideias, DeMatteis fez uma derradeira tentativa para vê-la aprovada. Agora com o Homem-Aranha como protagonista e com um novo vilão criado propositadamente para o efeito, o projeto recebeu finalmente luz verde por parte dos editores.
Vários elementos importantes foram sendo acrescentado, à medida que DeMatteis limava as arestas de um enredo cada vez menos decalcado da trama original. Com Peter Parker e Mary Jane Watson recém-casados, o escritor optou por fazer do casal o eixo emocional da narrativa. Já a ideia de usar Kraven como antagonista surgiu após DeMatteis ter lido o seu perfil em The Official Handbook of the Marvel Universe (espécie de "Quem é quem" da editora). Grande admirador da obra literária de Dostoievski - especificamente de Crime e Castigo -, DeMatteis ficou fascinado com a herança russa de Sergei Kravinoff.

J.M. DeMatteis teve a sua história
 rejeitada por 3 editores.

Quando soube que Mike Zeck (com quem colaborara anteriormente em Captain America) fora o escolhido para trabalhar com o lápis, DeMatteis considerou que seria interessante a inclusão de uma personagem criada por ambos. Foi assim que o repulsivo Rattus (Vermin) assegurou a sua participação na saga que redefiniria o Homem-Aranha.
Publicada originalmente entre outubro e novembro de 1987, a história em seis capítulos teria sido incluída apenas em Spectacular Spider-Man se o editor Jim Salicrup não tivesse tido a brilhante a ideia de a espalhar pelos outros dois títulos mensais do Homem-Aranha (Amazing Spider-Man e Web of Spider-Man), cujo alinhamento preencheu em exclusivo durante dois meses. Decisão ditada por razões comerciais (obrigava os leitores a comprarem as três revistas para acompanhar a saga), mas também por questões de lógica editorial. Se Kraven presumivelmente matava o Homem-Aranha, seria absurdo que a vida de Peter Parker seguisse a sua rotina normal nos outros títulos. Embora consagrada hoje em dia, foi a primeira vez que essa estratégia editorial foi testada (ainda por cima, com resultados muito positivos).
A atravessar uma fase conturbada na sua vida pessoal, DeMatteis projetou nos protagonistas o seu próprio sofrimento emocional. Ao fazê-lo, sujeitou o Homem-Aranha a uma dilacerante tortura psicológica. Isto ao mesmo tempo que adicionava camadas de complexidade a Kraven.
Depois de abater o Homem-Aranha, Kraven tomaria o lugar do herói. Porém, aquilo em que ele se transforma não é o Homem-Aranha, mas sim a sua perceção equivocada dele. As ações brutais do falso Homem-Aranha ilustram a terrível simetria entre a crueldade do vilão e a benevolência do herói. Que, mesmo levado ao limite, resiste a abrir mão dos seus princípios éticos.
Anos mais tarde, num texto intimista divulgado no seu blogue, DeMatteis reconheceu que teria sido incapaz de escrever a história se, naquela época, o seu estado de espírito fosse diferente. Segundo ele, as grandes histórias possuem vida própria, servindo os escritores de meros veículos para a mensagem que elas desejam transmitir. A Última Caçada de Kraven parece endossar esta teoria.

A última caçada de Kraven teve início em Web of Spider-Man #31.


Réquiem pelo caçador

Houve um tempo em que o mundo admirava a sua astúcia e coragem. Uma época debruada a ouro em que a sua virilidade inspirava reverência e as suas façanhas eram lendárias. Uma época em que ele foi coroado rei dos caçadores e imperador da savana. Mas isso foi antes de ambientalistas e ativistas dos direitos animais lhe arruinarem a reputação. Antes de ele se cruzar com a única presa que o derrotou e que o atormenta desde então: o Homem-Aranha.
Sergei Kravinoff, celebrizado nesse passado glorioso como Kraven, o Caçador, está ciente de que a morte o ronda. Pressente a sua presença nas sombras e quase consegue perscrutar o seu tétrico semblante. Mas ele não está preparado para reencontrar o Criador. Não sem antes recuperar a honra e a dignidade perdidas. Não sem antes curar o seu orgulho ferido, provando a sua superioridade. E isso só será possível fazendo do Homem-Aranha o seu supremo troféu de caça.
Reunindo as forças que ainda lhe restam, Kraven regressa à selva urbana na peugada da sua derradeira presa. Apesar de ser ainda ágil como uma gazela e forte como um leão, Kraven sabe que está longe do seu ápice físico de outrora. Mas sabe, também, que nunca descansará em paz se não vergar o Homem-Aranha.
Para aguçar os sentidos e aumentar a sua força, Kraven ingere poções secretas e infusões de ervas trazidas das selvas mais profundas. Vai precisar de estar no seu melhor para consumar o macabro plano que concebeu: abater o Escalador de Paredes e enterrá-lo com centenas de aranhas.
Recém-regressado da sua lua-de-mel com Mary Jane, Peter Parker ignora que o seu alter ego tem a cabeça a prémio. Absorto em divagações, o Homem-Aranha baloiça-se nas suas teias no que deveria ser um ameno passeio noturno. Mas acaba emboscado por Kraven que, emergindo das sombras, o alveja e captura com uma rede.
Sob o efeito de um potente sedativo, o herói aracnídeo impende no abismo da inconsciência. Tem, contudo, um vislumbre da espingarda e do olhar maníaco de Kraven enquanto este se prepara para executá-lo a sangue-frio. Por entre palavras balbuciadas sobre a restauração da sua honra, o vilão alveja o Homem-Aranha à queima-roupa.

A presa à mercê do caçador.

Transportando o corpo inerte do herói, Kraven coloca-o num ataúde repleto de aranhas, antes de sepultá-lo em local desconhecido. No entanto, abater a grande fera de azeviche não basta. É imperativo demonstrar a sua superioridade sobre ela. E, para isso, o caçador terá de vestir a pele da sua presa.
Nessa mesma noite, envergando uma cópia do traje negro do Homem-Aranha, Kraven começa a patrulhar os desfiladeiros de néon da cidade que nunca dorme. Impelido pelo seu distorcido conceito de justiça, não se inibe de liquidar alguns dos criminosos que tiveram a desventura de lhe cruzar o caminho.
Depois de dias e noites de angústia causada pelo inexplicável sumiço do marido, Mary Jane é assediada por um bando de delinquentes no seu caminho de regresso a casa. Apesar de salva pelo Homem-Aranha, ela percebe estar na presença de um impostor. Kraven, por seu lado, nem imagina que acabou de salvar a vida à esposa do seu inimigo e volta a desaparecer na escuridão da noite. As lágrimas de Mary Jane diluem-se na chuva que não cessa de cair, como se o céu estivesse em pranto pelo infortúnio da jovem.

O caçador veste a pele da presa.

Entrementes, um novo predador começa a semear o terror em Nova Iorque. Rattus, um híbrido canibal de homem e rato, vem atacando aleatoriamente transeuntes indefesos. As suas sangrentas ações atraem a atenção do falso Homem-Aranha, que lhe move feroz perseguição através da rede subterrânea de esgotos. Quando, por fim, encurrala a sua presa, Kraven espanca Rattus quase até morte, levando-o, em seguida, para o seu covil.
Enquanto Kraven se regozija com mais este seu triunfo, o verdadeiro Homem-Aranha desperta do seu longo coma e rasteja para fora da sua sepultura. Tinha, afinal, sido atingido por um dardo tranquilizante e, depois, enterrado vivo pelo seu algoz. Sem que o soubesse, o seu sórdido calvário durara duas semanas. Apesar da fúria que lhe revira as entranhas, o seu primeiro pensamento vai para Mary Jane.
Desesperado por rever a sua adorada esposa, o herói aracnídeo vai ao encontro de Mary Jane. Após certificar-se de que ela está em segurança, parte no encalço de Kraven. Peter sabe que o caçador vira caça quando subestima a sua presa. E sabe que Kraven o atirou às profundezas daquilo que um homem comum é capaz de suportar. Mas ele não é um homem comum.

Um amor mais forte do que a morte.

Com recurso a toda a sorte de sevícias, Kraven subjugara Rattus, agora reduzido a um animal assustado. Algo que o Homem-Aranha fora incapaz de fazer sozinho no seu último confronto com a criatura, em que tivera o Capitão América como aliado.
Ao pressentir a presença do Homem-Aranha no seu covil, Kraven liberta Rattus para testar as capacidades do seu renascido rival. Mas Peter nada tem a provar e compadece-se do sofrimento de Rattus. O monstro, porém, não hesita em investir violentamente sobre o herói e está prestes a matá-lo. Kraven interfere para salvar a vida do Escalador de Paredes. Não pode conceder a outrem o privilégio de matar a sua presa suprema. Confuso, Rattus aproveita a oportunidade para escapar. 

A ferocidade de Rattus.

Tomando enfim consciência de tudo aquilo que Kraven lhe tirou, o Homem-Aranha ataca-o com uma ferocidade nunca antes vista. O vilão limita-se, porém, a encaixar os golpes do seu adversário, com um sorriso trocista. 
Apesar daquela reviravolta, Kraven vencera. Permitira que a sua presa vivesse quando podia facilmente tê-la matado. Dessa forma provara a si mesmo a sua superioridade relativamente ao rival que o humilhara. Não havia razões para continuar a lutar. Nem para continuar a viver. Estava consumada a sua vingança final.
Kraven nada faz para impedir que o Homem-Aranha parta no encalço de Rattus. De volta à sua taciturna mansão, o caçador suicida-se com a mesma arma com que alvejara o Escalador de Paredes. Junto ao seu corpo sem vida jazem fotografias e uma confissão escrita em que assume a culpa pelas mortes causadas pelo falso Homem-Aranha.
Longe dali, o herói aracnídeo consegue, a dura penas, neutralizar Rattus, acabando mesmo por salvar a vida da criatura. Também a violenta tempestade que há dias fustigava Nova Iorque deu finalmente lugar à bonança.
Terminado o pesadelo, Peter regressa para junto de Mary Jane, radiante ao ver o marido são e salvo. O amor que os une curará as feridas e o casal anela por nova etapa de felicidade conjunta. O Sol voltou a brilhar, mas é a esperança que lhes aquece os corações.
Na mansão Kraven, os serviçais homenageiam o seu malogrado amo com um réquiem silencioso antes de depositarem o seu cadáver sob sete palmos de terra. O rei dos caçadores pode finalmente repousar em paz sob a sua coroa de glória.

A morte do caçador.


Apontamentos

*O primeiro e último capítulos da saga terminam, respetivamente, com os enterros do Homem-Aranha e de Kraven enquadrados pela frase "Aranha! Aranha! Flamejando nas florestas da noite. Que mão ou olho imortal poderia plasmar a tua terrível simetria?". Trata-se de uma das muitas citações extraídas do poema The Tyger (escrito em 1794 pelo britânico William Blake) que permeiam A Última Caçada de Kraven. Com efeito, os seis capítulos da saga correspondem ao número de quadras que compõem o poema em questão;
*Apenas aquando do lançamento da sua primeira compilação, em 1989, a saga foi titulada como A Última Caçada de Kraven. A sugestão partiu de Jim Salicrup, na altura editor das séries mensais do Homem-Aranha, e não convenceu DeMatteis. O autor preferia Terrível Simetria (Fearful Simmetry, a expressão que remata The Tyger);
*Também o suicídio de Kraven teve inspiração literária. A cena em que o vilão usa a própria carabina para pôr termo à vida reproduz a morte de Ernest Hemingway, em tempos conhecido como Grande Caçador Branco;
*Aranhas e ratos assumem funções simbólicas na história. Aparentemente, estes motivos animais representam, respetivamente, o medo e o instinto primitivo de sobrevivência. Kraven refere mesmo que todo o homem tem a sua aranha e consome várias delas antes de enfrentar o Escalador de Paredes. Pouco antes  da "ressurreição" de Peter, um rato é visto a rondar o seu túmulo;

Manjar aracnídeo antes da batalha.

*O icónico uniforme negro usado à época pelo Homem-Aranha foi criado em 1982 por Randy Schueller. Um jovem fã do Illinois, Schueller foi o vencedor do concurso organizado pela Marvel com vista à captação de novos talentos e aceitou vender o conceito por uns módicos 220 dólares. Apesar de a mudança de visual ter ocorrido em maio de 1984, no histórico Amazing Spider-Man #252, a origem da nova vestimenta só seria revelada mais de meio ano depois, em Secret Wars #8. Na verdade um simbionte alienígena, o traje, depois de rejeitado por Peter, encontrou em Eddie Brock um novo hospedeiro. Da fusão de ambos nasceu Venom, um dos mais perigosos inimigos do Escalador de Paredes. Que, na sequência desses eventos, passou a usar um modelo de tecido normal oferecido pela Gata Negra. É, pois, esse segundo traje negro que aparece na saga. Para desapontamento de muitos fãs, o Homem-Aranha voltaria a vestir de azul e vermelho em maio de 1988 (precisamente quatro anos após a estreia do uniforme negro);
*Em resposta às acusações de glorificação do suicídio, em agosto de 1992, cinco anos após a obra original ter sido dada à estampa, J.M. DeMatteis e Mike Zeck reataram o seu casamento criativo para produzir uma continuação de A Última Caçada de Kraven. Intitulada Soul of the Hunter (Alma de Caçador), a história revela a existência de um vínculo espiritual entre Peter Parker e Sergei Kravinoff, cuja alma não descansa em paz devido ao facto de ter acabado com a própria vida. Apesar dessa e de outras revisitações posteriores, o vilão permaneceria morto até 2009.

Vingança aquém e além-túmulo.


Vale a pena ler?

Em 2012, os visitantes do site canadiano Comic Book Resources votaram A Última Caçada de Kraven como a melhor história do Homem-Aranha alguma vez contada. Ainda que esse resultado seja debatível, ela merece, com toda a certeza, figurar no Top 5 das aventuras do Escalador de Paredes.
À primeira vista, a história tinha, porém, tudo para dar errado. Transpor o herói mais otimista da Marvel para um contexto de trevas e desespero prefigurava-se um exercício deveras arriscado. Mais ainda tendo como antagonista um vilão como Kraven que, desde a sua criação em 1964, nunca ultrapassara a condição de personagem secundária.
No entanto, a abordagem de DeMatteis foi genial. A sua escrita dá um salto quântico em complexidade e qualidade, como pouquíssimas vezes tinha acontecido até então nas histórias de super-heróis - e nunca nas dos Homem-Aranha (nem mesmo aquando da morte de Gwen Stacy). As notas poéticas, os diálogos psicologicamente reveladores e a análise profunda das motivações dos dois protagonistas são bons exemplos do virtuosismo narrativo de um escriba consagrado que assina aqui uma das obras mais candentes da sua carreira.
Além de esculpir tridimensionalidade a Kraven, DeMatteis aflora temas muito interessantes, designadamente a dicotomia entre o Homem-Aranha e Peter Parker. Quem é, afinal, o mais nobre? O herói ou o homem por detrás da máscara? O autor inclina-se claramente para a segunda opção e, nesse sentido, socorre-se de diversos subterfúgios narrativos para ressaltar a importância da figura de Peter Parker. A sua humanidade, as suas emoções e as suas ações perante os problemas e dilemas que a vida lhe apresenta são a quintessência do Escalador de Paredes. Ao contrário do Super-Homem, por exemplo, Peter não é um disfarce para o Homem-Aranha, mas sim o inverso. A sua personalidade não transmuda de cada vez que ele enfia o uniforme. Seja este preto ou azul e vermelho.
Apesar do excelente enredo, A Última Caçada de Kraven dificilmente teria tido o mesmo impacto sem a sensacional arte de Mike Zeck. Poucos artistas conseguem traçar movimentações com tal maestria, conferindo uma fluidez cinematográfica às sequências, ao mesmo tempo que preenchem uma atmosfera dramática com minuciosos retratos emocionais das personagens.
A única ressalva reside nos monólogos de Kraven que, a espaços, soam repetitivos, conquanto se perceba o seu propósito de imergir o leitor na retorcida psique do vilão. Sem embargo para a sua qualidade global, a saga poderia perfeitamente acabar no penúltimo capítulo, onde a caçada de Kraven de facto termina. Funcionando, assim, o sexto e último capítulo como uma espécie de epílogo estendido que, à parte o destino de Rattus, pouco acrescenta à história.
A Última Caçada de Kraven é também a prova provada que não precisamos de mudanças arbitrárias de género, raça ou orientação sexual para produzir boas histórias de personagens com longos históricos de publicação. O que precisamos mesmo é de menos ativismo identitário e de mais bons autores e bons desenhadores. Tendo isso, as histórias serão sempre refrescantes, por mais vetustos que sejam os protagonistas.
Trágica, filosófica e com fino recorte literário, esta é uma obra que não pode faltar na bedeteca de nenhum aficionado da Arte Sequencial. E que, como qualquer clássico, merece ser revisitada de tempos em tempos.

O traje negro do Homem-Aranha marcou uma era
 e acentuou o tom fúnebre da saga.




*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à variante europeia da língua portuguesa.
*Prontuário de Kraven, o Caçador disponível para leitura complementar.