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03 dezembro 2020

HERÓIS EM AÇÃO: DEMOLIDOR


  Noite após noite, a cidade profana é velada pelo seu Diabo da Guarda. Aquele a quem os ímpios temem e os deserdados clamam por justiça cega. O tipo de justiça que somente um homem sem medo pode servir.

Denominação original: Daredevil
Editora: Marvel Comics
Criadores: Stan Lee (história) e Bill Everett (arte conceptual)
Estreia: Daredevil #1 (fevereiro de 1964)
Identidade civil: Matthew Michael Murdock
Espécie: Humano mutado 
Local de nascimento: Cozinha do Inferno, Nova Iorque
Parentes conhecidos: Jonathan Murdock (pai, falecido); Margaret Murdock (mãe); Mila Donovan (ex-cônjuge)
Ocupação: Advogado, aventureiro, vigilante urbano
Base operacional: Cozinha do Inferno, Nova Iorque
Afiliações: Ex-parceiro da Viúva Negra e ex-membro dos Marvel Knights, integra atualmente os Defensores.*
Némesis: Rei do Crime

*Grupo de vigilantes urbanos ( adaptado em 2017 ao pequeno ecrã) de que também fazem parte Luke Cage, Jessica Jones e Punho de Ferro, sem qualquer ligação à pandilha homónima liderada pelo Doutor Estranho.

Poderes e parafernália: A mesma substância radioativa que roubou a visão a Matt Murdock na infância ampliou-lhe os restantes sentidos a níveis sobre-humanos e dotou-o de um novo. Similar ao sistema de ecolocalização dos morcegos, o radar interno do Demolidor permite-lhe visualizar mentalmente pessoas e objetos através da captação de sons ambientes.
Apesar das semelhanças com o sentido de aranha, o radar do Demolidor ganha na comparação com este porquanto permite antecipar as ameaças com maior antecedência. Até mesmo a materialização de teleportadores pode ser detetada antecipadamente através de subtis alterações na atmosfera envolvente.

O radar do Demolidor imita a ecolocalização dos morcegos.

Graças aos seus sentidos hiperaguçados, o Demolidor consegue, por exemplo, perceber se alguém está a mentir, devido às oscilações no respetivo ritmo cardíaco ou temperatura corporal. De tão apurado, o seu paladar permite-lhe contabilizar com precisão o número de grãos de açúcar presentes num donut.
Com uma perceção perfeita de cada objeto móvel ou imóvel ao seu redor e dono de reflexos e agilidade sem paralelo, o Demolidor, indiferente à sua cegueira, pode realizar proezas incríveis - como aparar balas com o seu bastão - ou executar acrobacias impossíveis mesmo para um ginasta de alta competição.
Treinado por aquele que é, possivelmente, o melhor sensei do mundo, o Demolidor desenvolveu um estilo de luta que combina harmoniosamente várias artes marciais, designadamente Ninjutsu, Krav Maga e Boxe. É também exímio no manejo de diferentes tipos de armas, desde facas a espingardas, passando pelo arco e flecha. Salvo em situações extremas, o seu código moral impede-o, porém, de empregar força letal contra os seus adversários.
A mente analítica de Matt Murdock aliada ao seu traquejo como advogado e profundo conhecimento das ruas fazem dele um detetive bastante competente. Igualmente eficazes são os seus métodos de interrogatório. Frequentemente baseados na coação, permitem-lhe extorquir informação mesmo dos criminosos mais renitentes.
O Demolidor é inseparável do seu bastão especial disfarçado como a bengala de cego que usa quotidianamente na sua identidade civil. Trata-se de uma arma versátil e multifuncional vocacionada tanto para manobras defensivas como ofensivas. Contém no seu interior nove metros de cabo metálico com um pequeno gancho de aço temperado na extremidade. Os mecanismos internos do bastão permitem que o cabo seja enrolado e desenrolado de forma controlada, enquanto o gancho é lançado por uma mola poderosa. Por ser extensível e desdobrável, o bastão pode ser usado como peça única ou em duas peças separadas.
Contudo, o principal "poder" do Demolidor - aquilo que verdadeiramente o diferencia de outros heróis de rua - é a sua vontade férrea e a ausência de medo. Mesmo quanto tem de arrostar oponentes mais poderosos, fá-lo sem vacilar e com um sorriso desafiador nos lábios. Tal como o seu pai costumava fazer nos ringues.

O bastão do Demolidor é uma extensão do corpo do herói.

Fraquezas: Conquanto desconhecida da generalidade dos seus inimigos e aliados, a cegueira do Demolidor constitui, indubitavelmente, a sua maior fraqueza. Devido a essa deficiência, o herói é incapaz de discernir imagens e só pode adivinhar as cores com base na quantidade de calor que  elas absorvem ou refletem.
De tão amplificados, os sentidos remanescentes do Homem Sem Medo são particularmente suscetíveis a ruídos e/ou odores excessivos. Além de extremamente dolorosos, os efeitos disruptivos de uma sobrecarga sensorial desabilitam o radar do herói, deixando-o paralisado e desorientado. Situação análoga àquela que se verifica quando tem o seu corpo imerso em água.
Dada a sua condição de simples humano, o Demolidor é tão vulnerável a lesões físicas e doenças como qualquer outra pessoa. Dentre estas últimas destaca-se o seu historial de depressões, que ciclicamente o prendem em espirais autodestrutivas. Durantes essas fases, o seu comportamento tende a tornar-se errático e impulsivo, ao ponto de fazer perigar a própria vida.

Sobrecargas sensoriais são extremamente dolorosas
 para o Homem Sem Medo. 



Justiça cega

Um dos mais antigos, torturados e carismáticos residentes da Casa das Ideias, o Demolidor chegou à meia-idade assombrado pelas dúvidas relacionadas com a sua filiação. Ainda que esta tenha sido oficialmente atribuída a Stan Lee e Bill Everett ( criador de Namor, o Príncipe Submarino), ignora-se o real contributo de Jack Kirby na conceção visual da personagem. Mas vamos por partes.
Na esteira do sucesso do Quarteto Fantástico, Homem-Aranha, X-Men e tantos outros, o Demolidor assinalou, de certa forma, o fim desse dilúvio criativo por parte dos demiurgos da Marvel. Como é sabido, a equipa-maravilha capitaneada por Lee privilegiava heróis mais humanos com os quais as pessoas comuns pudessem identificar-se mais facilmente. Em harmonia com essa filosofia, Lee idealizou um justiceiro cego cuja audácia compensava a sua deficiência. Um exemplo de superação que teria a sua força de vontade como "superpoder".
Um herói invisual não era, contudo, novidade. Em 1941, a DC apresentara o seu Doutor Meia-Noite. A grande diferença é que este consegue ver perfeitamente no escuro e nunca ficou sequer próximo dos níveis de popularidade do seu homólogo da Marvel.
Apesar desse precedente, Lee receava uma reação adversa por parte da comunidade invisual ao lançamento de um super-herói com essas características. Receio que se esfumaria quando, nas semanas imediatas à estreia da personagem, a redação da Marvel foi inundada por cartas de associações de cegos a louvar a iniciativa e a solicitar donativos para as suas causas sociais. 

Doutor Meia-Noite, o primeiro super-herói cego.

No momento de batizar o neófito, Lee tomou emprestado o nome de um antigo conceito da Lev Gleason relegado para o domínio público desde o final da Idade de Ouro: Daredevil.
Diabo Destemido numa tradução literal, "daredevil" é um termo da gíria americana vulgarmente utilizado para designar acrobatas, duplos, pilotos de corridas ou qualquer indivíduo que ultrapassa as barreiras do senso comum para alcançar feitos únicos. Com o tempo tornou-se, também, sinónimo de "corajoso" ou "audaz". Porém, quando, em 1968, a EBAL adquiriu os direitos de publicação do herói em terras de Vera Cruz, crismou-o de Demolidor. Apesar de canhestra, esta adaptação da nomenclatura original (aproveitando o duplo D estilizado que adorna o uniforme) prevalece até hoje dos dois lados do Atlântico. Mesmo depois de outra editora brasileira, a GEA, ter provisoriamente renomeado o Demolidor de Defensor Destemido. 
Numa referência aos trajes de cores berrantes usados por artistas circenses (e, quiçá, ao do Daredevil original), o Demolidor começou por vestir de vermelho e amarelo. Sem que ninguém saiba ao certo de quem terá partido a ideia. São tantos aqueles a afirmar que foi Kirby o autor dos primeiros esboços modificados por Everett como aqueles que defendem o contrário. 

O Daredevil original.


Uma pista importante para ajudar a desvendar o mistério poderá ser a capa de Daredevil #1 onde, em abril de 1964, o Homem Sem Medo fez a sua estreia. A capa em questão foi assinada por Jack Kirby, o que poderá, com efeito, indicar que foi ele o primeiro a desenhar a personagem. Isto porque, à época, era prática consagrada a produção das capas preceder a arte interior de cada edição.
Alguns investigadores da 9ª Arte aventam uma terceira possibilidade. Kirby terá sido chamado a desenhar a capa do número inaugural de Daredevil porque Everett, a braços com o seu alcoolismo, falhou o prazo de entrega da mesma. Numa tentativa de relançar a carreira do artista, Stan Lee tê-lo-á creditado como cocriador do Demolidor.
Teorias à parte, certo é que o uniforme amarelo depressa saiu de moda. Logo em Daredevil #7 (abril de 1965), Wally Wood, o novo artista das histórias do Demolidor, substituiu-o, sem qualquer justificação, pelo icónico modelo vermelho. Essa evolução estética não foi, porém, acompanhada por uma mudança do tom das histórias, que conservaram o seu registo ligeiro. Com efeito, nas suas primícias o Demolidor era adepto do mesmo humor coriscante com que o Homem-Aranha brindava os seus leitores. Muito longe, portanto, do cunho dramático que posteriormente assumiria.


Em cima: A estreia do Homem Sem Medo em Daredevil #1;
em baixo: a primeira aparição do traje vermelho em Daredevil #7.

Apesar disso, as vendas do título mensal do Demolidor, mesmo após a saída de Stan Lee, mantiveram-se sólidas durante toda a década de 60. Quando, na segunda metade da década seguinte, ficou evidente que a personagem perdera gás, Daredevil, para descontentamento dos fãs, passou a bimestral.
Essa alteração de periocidade coincidiu com a chegada de um novo escritor às histórias do Demolidor. Com grande experiência em contos de terror, Roger McKenzie começou a explorar a faceta mais sombria do herói. No fundo, essa fase continha o gérmen do renascimento do herói orquestrado pouco tempo depois por Frank Miller. 
McKenzie não só fez o Demolidor enfrentar demónios interiores, amiúde refletidos em antagonistas que personificavam a Morte, como também o colocou perante as perturbadoras consequências da exposição da sua identidade secreta pelo repórter Ben Urich. Em virtude disso, o Demolidor enveredou por caminhos que nunca antes havia trilhado e de que não mais voltaria a afastar-se. 
A despeito dos esforços de McKenzie, as vendas não descolavam e Daredevil estava prestes a ser cancelado. Numa tentativa desesperada de reverter a situação, McKenzie foi rendido no posto por Frank Miller (que já vinha desenhando o Demolidor há um par de meses). Obreiro de perspetivas revigorantes, Miller foi o piloto da mudança que se impunha. Manteve a aposta do seu antecessor de explorar o potencial dramático da personagem, mas a uma escala dez vezes superior. 
Pela mão de Miller, o Demolidor adentrou nas trevas psicológicas e saiu das trevas editoriais. Miller não se quedou, porém, pela drástica mudança de tom. Levou a cabo uma profunda reinterpretação do herói introduzindo sucessivos retcons e personagens memoráveis, como Stick ou Elektra, sem se preocupar em enfurecer os fãs mais ardorosos. À parte a aparência física, o seu Demolidor tinha pouquíssimo em comum com as versões pregressas. Em resultado disso, foi nos anos 80 que o herói que conhecemos teve os seus momentos definidores e de maior glória.

Duro, sofrido e violento. Assim era o novo Demolidor de Miller.


Diabo da Guarda

A jornada heroica do Demolidor teve como ponto de partida a Cozinha do Inferno, um mal-afamado bairro operário nova-iorquino maioritariamente habitado por imigrantes irlandeses. Foi pela mão calejada do seu pai, um pugilista decadente chamado Jack "Batalhador" Murdock, que o pequeno Matt Murdock deu os primeiros passos.
Fazendo jus à alcunha conquistada nos ringues, Jack enfrentou muitos desafios para criar o filho sozinho. Desejoso de proporcionar-lhe as oportunidades que não tivera, incentivava constantemente Matt a estudar em vez de praticar desporto. Jack não queria que o filho tivesse, também ele, de ganhar a vida com os punhos.
Aos olhos das outras crianças, Matt era, pois, um rato de biblioteca com medo da própria sombra. Foi assim que ganhou a alcunha trocista de Destemido (Daredevil, no original). Alcunha que lhe moldaria o caráter para sempre.
Incapaz de desobedecer ao pai que diariamente se sacrificava para que nada lhe faltasse, Matt dava secretamente vazão à frustração acumulada no ginásio onde o seu ídolo treinava.
Quando os combates de boxe começaram a rarear, Jack não teve outro remédio senão aceitar trabalhar para um mafioso local conhecido apenas como Arranjador. Da sua descrição de funções faziam parte, entre outros expedientes, a cobrança de dívidas e a intimidação de comerciantes que recusavam pagar pela proteção do Arranjador.
Certo dia, ao caminhar pela rua, Matt, então um pré-adolescente, apercebeu-se que um cego estava prestes a ser atropelado por um camião. Sem pensar duas vezes, Matt saltou para a frente do veículo e empurrou o homem para fora do caminho, salvando-lhe a vida. Ato contínuo, o camião, que transportava resíduos tóxicos, entrou em despiste deixando cair parte da carga na via. Um dos tubos soltos partiu-se com o impacto e Matt teve as vistas salpicadas por uma substância radioativa. Foi essa a última vez que viu a luz do dia antes de mergulhar nas trevas eternas.

Um acidente mudaria para sempre a vida de Matt Murdock.

Enquanto recuperava no hospital, Matt descobriu que os seus outros sentidos haviam sido intensificados a níveis sobre-humanos e que desenvolvera uma espécie de radar mental que lhe permitia descortinar formas difusas.
Passado o desnorte inicial, Matt guardou segredo das suas novas habilidades ao regressar a casa. Anos mais tarde, Stick, um cego mestre em artes marciais, ensinou-o a controlá-las e transformou-o numa arma viva.
Apesar do seu infortúnio, Matt continuou a estudar com denodo. A sua dedicação foi recompensada com a admissão na prestigiada Universidade de Direito de Columbia. Foi lá que conheceu Franklin "Foggy" Nelson - seu melhor amigo e futuro associado - e Elektra Natchios, a bela filha de um diplomata grego que seria o maior e mais trágico amor da sua vida. Após o assassinato do pai, Elektra desapareceu sem deixar rasto, deixando Matt de coração destroçado. O casal voltaria, no entanto, a reencontrar-se anos mais tarde, já não como amantes mas como adversários.
Entretanto, o velho Batalhador continuava a sua carreira como pugilista. Apesar de estar na mó de cima, aceitou perder, a troco de uma choruda maquia, um combate combinado pelo Arranjador. Na hora H, Jack mudou porém de ideias ao avistar Matt na plateia. Com uma sequência de golpes demolidores levou o seu oponente ao tapete. Audácia que lhe custaria caro. Nessa mesma noite, o pai de Matt foi morto às mãos dos homens do Arranjador.

O último combate de um pai herói.

Agora órfão, Matt conseguiu diplomar-se em Direito e abriu um pequeno escritório de advocacia na Cozinha do Inferno. Tendo Foggy Nelson como sócio e Karen Page como secretária, Matt prestava, frequentemente pro bono, assistência jurídica aos mais desfavorecidos. Entre a sua clientela contavam-se prostitutas, homossexuais, mães solteiras e outros deserdados do sistema legal. Todos eles clamavam pelo tipo de justiça que tribunal algum lhes poderia servir.
Foi a pensar neles - e na sua vingança - que Matt usou os velhos robes do pai para confecionar o traje vermelho e amarelo do Demolidor. 
Católico devoto seduzido pelo profano, Matt Murdock não procura penitência para o que fez mas perdão para o que terá de fazer. Porque, quando a Lei emudece e Deus ensurdece, todas as preces aflitas se viram para o Diabo da Guarda.

Entre o sagrado e o profano.


Miscelânea

*Além de Homem Sem Medo, o Demolidor é igualmente cognominado de Diabo da Guarda, Chifrudo, Vermelho,  Aventureiro Escarlate e O Homem Mais Perigoso do Mundo;
*A identidade da mãe de Matt Murdock - uma freira católica chamada Irmã Maggie - só foi revelada na saga A Queda de Murdock (já aqui esmiuçada). Sofrendo os efeitos de uma depressão pós-parto, Maggie desenvolveu uma personalidade paranoide tornando-se uma ameaça para si própria e para o filho. Em resultado disso, Matt era ainda bebé quando foi abandonado pela mãe. Num ato de contrição,  Maggie ingressaria anos depois num convento;

Só o amor de mãe pode curar certas feridas.

*Matt sente-se sufocado nas suas roupas civis, mormente nos elegantes fatos que a sua profissão de advogado o obriga a usar no dia a dia. Por considerar o Demolidor a parte mais importante da sua personalidade dual, é na pele do herói que se sente mais confortável. Um pouco à semelhança de Bruce Wayne, Matt Murdock é tão-somente uma persona criada pelo Demolidor para conservar o anonimato;
*Velho inimigo do Homem-Aranha, Electro foi o primeiro supervilão com quem o Demolidor mediu forças. Antes de ser erigido a némesis do Homem Sem Medo, o próprio Rei do Crime havia antagonizado o Escalador de Paredes;
*Após a revelação acidental da sua identidade secreta por parte do Homem-Aranha, Matt Murdock conseguiu manter o seu segredo a salvo inventando um irmão gémeo com personalidade contrastante com a sua. Mike Murdock (personagem interpretada pelo próprio Matt) cumpriu o propósito de convencer Foggy Nelson e Karen Page de que era ele o Homem Sem Medo. Como forma de tornar a farsa ainda mais convincente, Matt (que se gaba do seu talento de representação) disfarçava a cegueira quando encarnava o irmão imaginário. Apesar de bizarra, a ideia funcionou e Mike foi "morto" pouco tempo depois. Mas não sem antes provocar uma pequena crise de identidade a Matt que, a dado momento, começou a ter dúvidas sobre quem seria o seu verdadeiro eu;
*Muito mais do que meros parceiros no combate ao crime, Demolidor e Viúva Negra formaram o primeiro casal de super-heróis a viver maritalmente sem estarem ligados pelos laços do matrimónio;

Heróis em união de facto.

*Naturalmente sedutor, Matt Murdock coleciona conquistas amorosas, mas só por uma vez subiu ao altar. Durante algum tempo, foi casado com Mila Donovan, também ela invisual. O enlace seria, contudo, rapidamente desfeito, depois de Mila constatar que Matt era ainda apaixonado por Karen Page; 
*A história do Demolidor serviu de inspiração à origem das Tartarugas Ninja, que, tal como ele, sofreram mutações genéticas após terem sido acidentalmente expostas a um isótopo radioativo;
*De longe o escriba mais influente do Homem Sem Medo, Frank Miller não foi, porém, aquele que durante mais tempo assinou as histórias do herói. Esse recorde de longevidade é detido por Brian Michael Bendis, que escreveu Daredevil durante 5 anos (contra os 4 de Miller);
*Desde 2011 que o Demolidor encerra o Top 10 dos Melhores Heróis da Banda Desenhada divulgado pelo IGN. Por sua vez, a revista Wizard colocou-o em 21º lugar na sua lista das 200 Melhores Personagens de Sempre da Banda Desenhada;
*Fora dos quadradinhos, o Demolidor fez a sua primeira aparição em 1981, num episódio avulso da série animada Spider-Man and his Amazing Friends. Com a sua estreia em ação real a ter lugar 8 anos mais tarde, no telefilme O Julgamento do Incrível Hulk no qual foi interpretado por Rex Smith. A estreia a solo no segmento audiovisual aconteceu apenas em 2003, ano em que a longa-metragem do herói cego estrelada por Ben Affleck chegou aos cinemas de todo o mundo. Em 2015, foi a vez do britânico Charlie Cox assumir o papel em Daredevil, série televisiva com a chancela da Marvel e da Netflix.

 Da esq. para a dir.: Rex Smith, Ben Affleck e Charlie Cox, três Diabos da Guarda de carne e osso.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa;
*Artigos sobre Bill Everett, Frank Miller, Rei do Crime e A Queda de Murdock disponíveis para leitura complementar.












09 maio 2020

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «BATMAN: ANO UM»


  Durante demasiado tempo, os intocáveis banquetearam-se com a riqueza e o espírito da sua cidade. Chegou, porém, a hora de o príncipe de Gotham interromper o festim de ganância e impunidade. Faminto de justiça, ele travará a coberto da noite uma guerra que não poderá vencer sozinho, mas que fará dele uma lenda.

Título original: Batman: Year One
Editora: Detective Comics (DC)
País: Estados Unidos da América
Autores: Frank Miller (argumento) e David Mazzucchelli (arte) 
Publicado em: Batman Vol.1 # 404-407 (fevereiro a maio de 1987)
Personagens: Bruce Wayne / Batman; James Gordon; Selina Kyle / Mulher-Gato; Arnold Flass; Gillian Loeb; Alfred Pennyworth; Carmine Falcone; Sarah Essen; Holly Robinson; Harvey Dent; Barbara Eileen Gordon
Cenários: Várias localizações de Gotham City, incluindo a sede do Departamento de Polícia, a Mansão Wayne e a Batcaverna. 

Edições em Português

Ao longo das últimas três décadas, Batman: Ano Um foi contemplado, em cada uma das margens do Atlântico, com uma miríade de edições e reedições na língua de Camões.
Seguindo o modelo de publicação original, no Brasil Ano Um foi inicialmente apresentado aos leitores nos quatro primeiros números da segunda série de Batman, dados à estampa pela Abril entre setembro e dezembro de 1987. Esta primeira versão em Português tropical - distribuída no ano seguinte em terras lusitanas - teve a particularidade de ser a única a ser lançada no chamado formatinho económico.
Ainda sob os auspícios da mesma editora - e inserida nas comemorações do 50º aniversário do Homem-Morcego - em 1989 foi lançada a primeira de várias compilações em formato americano, algumas das quais com capa dura.

Primeira compilação de Ano Um  (Abril Jovem, 1989).
Desde que, em 2002, obteve os direitos do Universo DC em terras de Vera Cruz, também a Panini vem lançado sucessivas reimpressões de Ano Um, a mais recente das quais remonta a dezembro de 2016.
Já a primeira versão lusa da saga teve a chancela da Devir e chegou às bancas nacionais em finais de 2001. Mercê do sucesso comercial da iniciativa (7 mil exemplares vendidos), em 2005 seria lançado um segundo volume encadernado da obra, cuja única diferença relativamente ao anterior era a inclusão de um livro de esboços (sketchbook) de David Mazzucchelli.
Em 2015, seria a vez de a Levoir selecionar Ano Um para inaugurar a sua coleção evocativa dos 75 anos do Batman, originalmente distribuída com o semanário Sol.
Agora com o mote da chancela norte-americana Black Label, em novembro do ano passado a Levoir brindou os leitores portugueses com nova republicação desta história clássica do Cavaleiro das Trevas.

Bertrand.pt - Batman: Ano Um
Ano Um abriu a coleção da Levoir evocativa dos 75 anos do Batman.

Morcego renascido

Foi em maio de 1939 - há precisamente 81 anos, portanto - que Batman debutou em Detective Comics #27. Numa historieta intitulada The Case of the Chemical Syndicate, o Homem-Morcego começava a construir a sua reputação de melhor detetive do mundo ao deslindar o mistério por detrás do homícidio de um industrial de Gotham City.
Criado por Bob Kane e Bill Finger a reboque do sucesso do Super-Homem no ano anterior, a Batman serviram de inspiração diversas personagens clássicas saídas da literatura pulp. O Sombra e o Zorro foram duas delas, conquanto sejam igualmente notórias as influências do Fantasma, de Lee Falk. A sua origem só seria, no entanto, revelada vários meses depois.
Em novembro de 1939, Detective Comics #33 incluía uma história escrita por Bill Finger que levantava, por fim, o véu que até aí cobrira o traumático passado do circunspecto defensor de Gotham City. Foi, pois, através dela que os leitores ficaram a par da tragédia pessoal de Bruce Wayne, um órfão milionário que, ainda criança, vira os seus pais serem assassinados a sangue-frio durante um assalto de rua.
De coração enlutado, o pequeno Bruce jurou vingar a morte dos seus pais, devotando a sua vida a combater o crime e a injustiça. Para esse efeito, ele criou um disfarce inspirado no morcego que, certa noite, invadira a Mansão Wayne. Sendo esse, de resto, um dos vários elementos referenciados por Frank Miller na sua releitura  da origem clássica do Batman, em Ano Um.

A origem de Batman foi revelada em Detective Comics #33 (1939).
Com o rolar das décadas, a cronologia da DC foi-se tornando, porém, cada vez mais convulsa e contraditória. Devido à sua natureza de simples vigilante urbano, Batman foi menos afetado pela bagunça instalada do que, por exemplo, Super-Homem ou Mulher-Maravilha. Mas nem por isso deixou de ter a sua origem sucessivamente retocada.
Em 1948, Bill Finger atribuiu, pela primeira vez, um nome ao assassino de Thomas e Martha Wayne. Até então um meliante anónimo, o homem que mudou as agulhas do destino de Bruce Wayne passou a ser identificado como Joe Chill.
Menos de uma década após esta primeira alteração, em 1956,  Finger acrescentou outro dado novo. A morte dos Waynes não resultara, afinal, de um crime aleatório, mas de uma execução sumária encomendada pela Máfia. Ao mesmo tempo que era sugerido que, para criar o seu alter ego noturno, Bruce se inspirara não num morcego, mas numa fantasia usada pelo pai num baile de máscaras.
Histórias subsequentes relatariam ainda as muitas viagens de Bruce à volta do mundo, com o propósito de desenvolver os talentos necessários para empreender a sua cruzada contra o crime.
Num esforço para corrigir erros de continuidade como estes, em 1985 - ano em que comemorava as suas bodas de ouro - a DC resolveu iniciar uma nova cronologia. Graças a Crise nas Infinitas Terras, a mãe de todas as sagas, os leitores puderam presenciar o alvorecer de uma nova era.
Coincidentemente, foi durante a produção de Crise nas Infinitas Terras que Frank Miller, uma das estrelas em ascensão na Marvel, assumiu as histórias do Demolidor. Miller começara por desenhar a série mensal do Homem Sem Medo mas o editor Dennis O'Neil desafiara-o a trocar o lápis pela máquina de escrever.

Comic Con Experience 2015 terá presença de Frank Miller
Da pena de Frank Miller saíram sagas memoráveis.
Provando o seu valor como obreiro de perspetivas revigorantes, poucas semanas depois Miller presenteava os leitores com um clássico instantâneo: A Queda de Murdock. Obra que deu um novo elã ao Demolidor e que foi  produzida a meias com David Mazzucchelli, cuja arte mereceu quase tantos elogios como a trama de Miller.
Foi com o currículo abrilhantado por essa obra-prima da 9ª Arte que, em 1986, Miller trocou a Marvel pela DC. Na Editora das Lendas assinou, nesse mesmo ano, aquele que muitos consideram ser o seu magnum opus: O Regresso do Cavaleiro das Trevas.
O contrato celebrado entre Miller e a DC previa igualmente que o escritor produzisse uma nova origem do Batman. Contrariamente ao que sucedera com O Regresso do Cavaleiro das Trevas, desta feita Miller preferiu não transformar a empreitada num projeto unipessoal. Por sua sugestão, a DC recrutou ninguém menos do que David Mazzucchelli para desenhar a história, reunindo assim a dupla-maravilha que fizera do Demolidor um caso sério de popularidade.

David Mazzucchelli (Person) - Comic Vine
Depois do Demolidor, o traço de David Mazzucchelli
ajudou a redefinir o Batman.
Miller concebera inicialmente Ano Um como uma graphic novel. Mostrando-se, por isso, reticente em acolher a sugestão de Dennis O'Neil - o novo editor de Batman - para que a história fosse apresentada ao longo dos quatro primeiros números da nova série mensal do Homem-Morcego. Miller temia que esse formato prejudicasse a dinâmica narrativa, ou que, em última instância, comprometesse o seu estatuto canónico.
A amizade com Dennis O'Neil - cunhada durante a passagem de ambos pela Casa das Ideias - acabaria, contudo, por falar mais alto, levando Miller a ceder. Mas apenas depois de O'Neil lhe ter asseverado que continuaria a dispor de total liberdade criativa no protocolo modificativo de um dos maiores ícones da cultura pop do século XX.
Apesar dessa carta de alforria, a abordagem de Miller revelou-se menos arrojada do que se previa. Consistindo, basicamente, em expandir a premissa glosada por Bill Finger em 1939, focalizando-se em aspetos da origem do Batman que permaneciam por explorar. Em contrapartida,  resumiu elementos fundamentais do mito à sua expressão mínima. O assassinato de Thomas e Martha Wayne, por exemplo, foi evocado sob a forma de breves flashbacks.
Por considerá-las desinteressantes, Miller suprimiu também as aventuras do jovem Bruce Wayne ao redor do mundo. Em vez de apresentar Batman como uma lenda viva, à semelhança do que fizera em O Regresso do Cavaleiro das Trevas, Miller caracterizou-o como um homem comum e inexperiente a tentar fazer a diferença numa sociedade de regras viciadas.
Do ponto de vista de Miller, a eficiência de um herói é inversamente proporcional ao seu apelo junto do público. Quanto mais falível, mais relacionável se torna uma personagem conotada com o Bem. Razão pela qual Ano Um apresentou um Batman imprudente que, não raro, subestimava os seus adversários.
Ao conferir-lhe uma atmosfera lúgubre, quase asfixiante, a arte de David Mazzucchelli enfatizava o tom realista imprimido por Miller à narrativa. O artista concebeu a sua interpretação de Gotham City para simbolizar a devassidão que contagiava os habitantes da cidade.

Na capital do crime, Batman é um alvo a abater.
Quando Dennis O'Neil sugeriu que o capítulo de abertura de Ano Um fosse publicado no número inaugural da segunda série de Batman, Miller mostrou-se irredutível. Em seu entender, a exploração de partes desconhecidas da origem do herói não justificava que fosse feita tábua rasa de quase meio século de aventuras.
Evitando um corte radical com o passado, Ano Um seria inserto nos números 404 a 407 de Batman. A saga de Miller e Mazzucchelli foi um sucesso comercial (mais do que duplicou a tiragem da série) e conservaria o seu estatuto canónico até 2011. Apesar de o ter perdido nesse ano para Ano Zero, no âmbito dos Novos 52, sobretudo entre os leitores veteranos Ano Um continua a ser percecionada como a origem definitiva do Cavaleiro das Trevas.

FORTALEZA DA SOLIDÃO: DO FUNDO DO BAÚ: «BATMAN - ANO UM»
Uma lenda em quatro atos.

Aurora negra

Bruce Wayne regressa a Gotham City após uma ausência de doze anos. Durante esse prolongado interregno longe da cidade que o viu nascer, o jovem milionário viajou pelo mundo, estudando artes marciais e ciências forenses. De volta a casa, traz uma missão na bagagem.
Transferido de Chicago e acompanhado pela esposa grávida, também James Gordon desembarca em Gotham ansioso por reabilitar a sua carreira policial. Os dois homens não demoram a ter o seu primeiro contacto com a sórdida e violenta realidade daquela que é reputada como a capital do crime.
Na sua primeira patrulha com o detetive Arnold Flass, Gordon vê o seu novo parceiro agredir um adolescente negro apenas por diversão. À medida que incidentes desta natureza se sucedem, cresce em Gordon a determinação de endireitar as coisas.
Depois de se registar num hotel para garantir um álibi, Bruce, irreconhecível no seu disfarce, aventura-se na sua primeira missão no terreno. Ao adentrar no nada recomendável Distrito da Luz Vermelha, é abordado por uma prostituta menor de idade chamada Holly Robinson. Perante a recusa do falso cliente, o proxeneta de Holly arrasta-a por um braço para um beco escuro. Bruce segue-os com a intenção de confrontar o homem, mas vê-se cercado por um grupo de meretrizes que investem sobre ele.
Prestes a desenvencilhar-se das suas agressoras, Bruce é surpreendido pela entrada em cena de Selina Kyle, uma dominatrix de elegância e agilidade felinas. Enquanto luta com a recém-chegada, Bruce é esfaqueado numa perna por Holly. Essa não será, porém, a única cicatriz que ganhará naquela noite.
Chegados ao local, dois polícias fardados ferem Bruce a tiro, transportando-o, em seguida, no carro-patrulha. A caminho da esquadra, Bruce consegue abrir as algemas e neutralizar os agentes. A viatura onde seguem entre em despiste, acabando por capotar violentamente. Antes de abalar, Bruce retira, porém, os agentes inconscientes do interior dos destroços em chamas.
Debilitado pelos vários ferimentos recebidos, Bruce consegue, a muito custo, regressar à Mansão Wayne. Enquanto, sentado sozinho na penumbra, roga ao seu falecido pai por orientação, um morcego atravessa subitamente a vidraça de uma janela antes de pousar em cima de um busto de Thomas Wayne. A criatura noturna foi a resposta às suas preces e inspira-o a criar uma persona capaz de infundir medo no coração dos criminosos.

Batman: Year One, Franck Miller & David Mazzucchelli | Batman year ...
Sob o signo do morcego.
Nas semanas imediatas, Gordon propõe-se limpar o Departamento de Polícia de elementos indesejáveis, colecionando inimizades no seio da corporação. Por ordem do Comissário Gillian Loeb, um grupo de agentes policiais encapuzados espancam brutalmente Gordon. Um deles - que Gordon reconhece como sendo Flass - chega mesmo a vociferar ameaças à sua esposa.
Tão logo fica restabelecido, Gordon visita a casa do agente onde o grupo de Flass se costuma reunir para noitadas de póquer regadas a álcool. Flass é ó ultimo a sair e, devido ao seu estado ébrio, é facilmente subjugado por Gordon.
Após espancar o ex-parceiro com um taco de basebol, Gordon deixa-o algemado e desnudo no meio da neve. Apesar de dolorosa,a lição não servirá de emenda a Flass.
Na noite seguinte é a vez de Bruce ter o seu batismo de fogo como Batman. Três adolescentes que roubavam um televisor de uma loja são rapidamente deixados fora de combate. O Cruzado Encapuzado logrou a sua primeira vitória mas esta não aplacou a sua fome de justiça.
O lauto banquete em que participavam alguns dos intocáveis de Gotham City torna-se indigesto quando Batman irrompe e anuncia que a sua impunidade tem os dias contados. Em resposta a essa afronta, o Comissário Loeb autoriza Gordon a usar todos os meios para capturar o vigilante. Batman tem agora a cabeça a prémio.

Batman Really Takes The Urine This Week...
Banquete indigesto.
Enquanto Gordon tenta debalde cumprir as ordens de Loeb, Batman prossegue a sua cruzada por justiça. O seu próximo alvo é ninguém menos do que Carmine "O Romano" Falcone, o chefe mafioso que controla o submundo de Gotham. Pela calada da noite, o Homem-Morcego invade a mansão de Falcone e, após intimidá-lo, deixa-o atado à cama. Antes de partir, tem ainda tempo para atirar a limusina do mafioso ao rio.
Estas e outras façanhas rendem a Batman o seu primeiro aliado. O promotor público Harvey Dent apoia secretamente as ações do vigilante, e tenciona cavalgar a onda de justiça que se encapela sobre Gotham, prometendo limpar uma cidade que não quer ser limpa.
Agora assistido pela charmosa detetive Sarah Essen, Gordon prossegue a sua investigação às atividades do misterioso Homem-Morcego que assombra a noite gothamita. Essen está convicta que Batman e Bruce Wayne são a mesma pessoa. Segundo ela, somente o príncipe de Gotham disporia dos recursos necessários para financiar as operações do vigilante.
No final de mais uma noite desperdiçada a seguir pistas inúteis, Gordon e Essen testemunham incrédulos o salvamento de uma sem-abrigo prestes a ser trucidada por um camião desgovernado. Saído da escuridão, Batman consegue tirar a mulher do caminho no último instante. Ao desviar-se de um obstáculo na via, Gordon perde o controlo do carro onde segue o casal de detetives e fica inconsciente após embater com a cabeça.
Ao voltar a si, Gordon depara-se com um quadro perturbador: Essen tem Batman na mira. O herói aproveita, porém, uma breve distração da detetive para desarmá-la antes de procurar abrigo num edifício devoluto.
Alegando que o prédio onde Batman se encontra encurralado já aguardava demolição, o Comissário Loeb ordena que seja lançada uma bomba no seu interior, a partir de um helicóptero da polícia.
A explosão obriga Batman a refugiar-se na cave fortificada do edifício, deixando para trás o seu cinto de utensílios que, por incluir substâncias inflamáveis, havia pegado fogo.
Uma equipa SWAT invade, pouco depois, o edifício para recolher o cadáver de Batman. Ao serem surpreendidos pelo mascarado, os agentes abrem fogo indiscriminadamente. Além do Homem-Morcego, também vários civis, aglomerados no exterior, são feridos pela saraivada de balas.

Batman: Year One, SWAT hunt | Cartoon art, Comic books art, Art
Caça ao morcego.
Ao ver os agentes comportarem-se como assassinos contratados, Batman não hesita em derrubá-los um por um. Usando, em seguida, um dispositivo para atrair uma densa revoada de morcegos.
Em meio ao caos instalado, Batman desaparece ao raiar do dia. Com um misto de pavor e esperança, Gotham testemunha a aurora negra de uma lenda; a lenda do Cavaleiro das Trevas.
Sem que Batman sequer o imagine, as suas audaciosas ações inspiram Selina Kyle a criar o seu próprio alter ego. Por conta da sua afinidade com felinos, Selina transforma-se na Mulher-Gato. A arte de roubar não mais será a mesma, agora que nasceu a rainha das ladras.

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À noite, todos os gatos são pardos.
Nas semanas seguintes, Gordon e Essen vivem um breve affair. Batman, por seu turno, coage um traficante de drogas a testemunhar contra o detetive Flass, que acaba detido por Gordon.
Sem tempo sequer para colher os louros, Gordon é chantageado pelo Comissário Loeb com provas da sua relação extraconjugal com Essen. Disposto a arcar com as consequências, Gordon confessa o seu deslize amoroso à esposa. Barbara decide então abandonar Gotham a poucas semanas de dar à luz o primeiro filho do casal. Mas esse poderá muito bem ser o menor dos problemas de Gordon.
Ao invadir novamente a mansão de Falcone a coberto da noite, Batman escuta um plano para liquidar Gordon. A reunião é no entanto interrompida pelo advento da Mulher-Gato.
Frustrada pelo facto de os seus sofisticados golpes virem sendo atribuídos ao Batman, Selina Kyle resolveu não deixar os seus créditos por mãos alheias. Enquanto faz gato sapato dos guarda-costas de Falcone, é discretamente ajudada pelo Homem-Morcego, que se mantém camuflado entre as sombras.
Ao sair de casa na manhã seguinte, Gordon deteta as movimentações suspeitas de um motociclista que ronda a garagem do seu prédio. Decide investigar e encontra a sua família feita refém por um grupo de sequazes de Falcone liderados por Vitti, o sádico sobrinho do mafioso.
Tomado pelo instinto, Gordon abate os sequestradores, mas Vitti consegue fugir levando consigo o filho recém-nascido de Gordon.
Sempre com o misterioso motociclista no seu encalço, Vitti acaba por perder o controlo do seu automóvel quando tentava atravessar uma ponte sobre o rio. Vitti e Gordon envolvem-se numa luta corpo a corpo, durante a qual o detetive perde os óculos.
Disposto a tudo para salvar a pele, Vitti lança o bebé ao rio. Gordon corre para salvar o filho mas é o motociclista quem salta da ponte para lhe amparar a queda fatal.
Já com o filho, são e salvo, nos braços, Gordon percebe estar na presença do homem por trás da máscara do Batman. A quem tranquiliza dizendo que, sem os óculos, é "cego como um morcego", e que ele é livre de partir. Bruce aproveita a deixa para sair de cena, ciente de que ganhara um precioso aliado.

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O início de uma aliança improvável.
Caído em desgraça, o detetive Flass arrasta consigo praticamente toda a hierarquia do Departamento de Polícia de Gotham City (DPGC), incluindo o Comissário Loeb. Rende-lhe no posto o Comissário Grogan, que aparenta ser ainda mais corrupto do que o antecessor. Gordon, por sua vez, é recompensado com uma promoção e uma nova oportunidade para salvar o seu casamento.
No epílogo, o agora Capitão Gordon aguarda pacientemente no telhado da sede do DPGC pela chegada do Batman. Acaba de receber informações sobre os planos de um lunático para envenenar o reservatório de água da cidade. Diz-lhe a sua intuição que o tal Joker ainda dará muito que falar...

Apontamentos

*O título do capítulo inaugural de Ano Um - Quem eu sou e como vim a ser (Who He Is and How He Came To Be, no original) - referencia a primeira origem canónica do Homem-Morcego apresentada em novembro de 1939, nas páginas de Detective Comics Vol.1 #33.
*O verdadeiro motivo da transferência de James Gordon para Gotham City é vagamente sugerido na narrativa. A mudança de cidade não foi de todo voluntária, e ter-se-á ficado a dever a um incidente não especificado envolvendo elementos corruptos da Polícia de Chicago. Esse episódio só seria clarificado em Batman: Gordon of Gotham, um spin-off de Year One publicado em 1998 e que segue inédito em língua portuguesa;
*Carmine Falcone, o poderoso chefe da Máfia que durante muito tempo controlou o submundo de Gotham, fez a sua primeira aparição em Ano Um. O seu reinado seria, porém, interrompido tanto pela ação concertada de Batman e Gordon, como pelas disputas territoriais com outros barões do crime, como o Pinguim;

ULTIMATE BATMAN - Mickeys Tavern
Carmine Falcone, o Padrinho.
*Ano Um teve como colorista Richmond Lewis. Pintora consagrada, Lewis é casada com David Mazzucchelli e foi a convite do marido que colaborou no projeto;
*Ano Um estabelece que Bruce Wayne teria 25 anos de idade quando empreendeu a sua campanha para libertar Gotham do crime e da corrupção que a haviam feito refém. No que aparenta ter sido um lapso de Frank Miller, é referido que Bruce teria apenas sete anos quando assistiu ao assassinato dos seus pais. Outras fontes refutam, com efeito, esta informação. Na cronologia emanada de Zero Hora, por exemplo, é ponto assente que Bruce Wayne teria na verdade oito anos quando ficou órfão;
*O facto de o Super-Homem ser referenciado em Ano Um atesta que a sua entrada em cena precedera em vários meses a do Homem-Morcego. Essa referenciação ocorre em dois momentos distintos da trama: no primeiro deles, Barbara Gordon compara a tensão muscular acumulada nas costas do marido ao "Homem de Aço"; no segundo, Alfred sugere ironicamente que Bruce aprenda a voar como "aquele sujeito de Metrópolis";
*Vários locais emblemáticos de Gotham são referenciados ao longo da narrativa, designadamente Robinson Park, Finger Memorial e a Missão Sprang. Tratam-se de homenagens toponímicas a Jerry Robinson (cocriador de Robin), Bill Finger (cocriador de Batman) e Dick Sprang (o mais famoso dos artistas "fantasmas" de Bob Kane);
*A ideia de Batman usar um sonar para atrair morcegos para a sua localização seria revisitada no filme Batman - O Início (2005). De igual modo, a cena final daquele que foi o primeiro capítulo da trilogia cinematográfica do Cavaleiro das Trevas - quando Joker é mencionado por Gordon - remete para os últimos painéis de Ano Um;

Gotham Alleys: Comic Book references in movies Part V: 'Batman Begins'
A aurora negra de Ano Um recriada em Batman - O Início.

*Quando sucedeu a Tim Burton como realizador de Batman Para Sempre (1995), Joel Schumacher planeava adaptar Ano Um. Ideia que seria no entanto prontamente descartada pelos produtores da franquia, interessados numa sequela e não numa prequela. Schumacher incluiria, ainda assim, vários elementos da obra nos flashbacks que acometiam Bruce Wayne ao longo do filme;
*Após o fiasco de Batman & Robin (1997), na viragem do milénio a Warner Bros. contratou Darren Aronofsky para escrever e dirigir um reboot da Bat-franquia baseado em Ano Um. O argumento apresentado por Aronofsky era todavia apenas vagamente inspirado na história original, chegando mesmo a pôr em causa várias convenções da personagem. Em virtude disso, o projeto foi engavetado e Aronofsky defenestrado;
*Apresentado em plena Comic-Con de San Diego, o filme animado Batman: Year One foi, em 2011, a primeira (e, até à data, única) adaptação oficial de Ano Um ao segmento audiovisual;

Batman: Year One (dvd_video) : Target
A versão animada de Ano Um.
*Aclamada pela crítica e pela generalidade dos leitores, Ano Um surge em segundo lugar na lista das dez melhores histórias do Batman de todos os tempos divulgada na plataforma IGN. A encabeçar o ranking, outro épico com assinatura de Frank Miller: O Regresso do Cavaleiro das Trevas;
*Desde a publicação de Ano Um, foram várias as histórias que expandiram o conceito glosado por Frank Miller. Logo em 1987, Mike W. Barr escreveu Ano Dois, colocando Batman na peugada de Joe Chill, o assassino dos seus pais. Um par de anos volvidos, em 1989, foi a vez de Marv Wolfman recontar a origem de Robin em Ano Três. Ambos os arcos seriam, porém, desconsiderados na sequência dos ajustes cronológicos impostos por Zero Hora. Em sentido oposto, O Homem Que Ri foi consagrada como sequência direta de Ano Um. Saída da pena de Ed Brubaker em 2005, a história revisita o primeiro encontro entre Batman e Joker, e antecede cronologicamente os eventos de O Longo Halloween (outro desdobramento de Ano Um).

Amazon.com: Batman: The Man Who Laughs (8601400566909): Brubaker ...
Em 2005, Ed Brubaker assinou
 a única sequela oficial de Ano Um.

Vale a pena ler?

A despeito das suas oscilações criativas (nos últimos anos parece ter desaprendido de desenhar), Frank Miller sempre foi um autor visionário. O meu primeiro contacto com o seu trabalho deu-se através desse épico moderno chamado O Regresso do Cavaleiro das Trevas. Mesmo sendo ainda pessoa de palmo e meio, percebi de imediato que tinha em mãos algo verdadeiramente especial, muito diferente de tudo que lera até àquele momento. Só então tomei consciência de que as histórias de super-heróis poderiam abordar temas mais complexos e adultos, em vez de se resumirem à eterna luta entre as forças do Bem e do Mal.
Em Ano Um, Miller desenvolve a trama com simplicidade, embora sem perder o requinte narrativo, para o qual muito contribui o magistral traço de David Mazzucchelli. A trama equilibra-se bem entre Batman e Gordon, demonstrando serem ambos peças fundamentais na representação de um mesmo ideal: o primado da Lei e da Justiça. Com Gordon a personificar a primeira e Batman a segunda.
O amadurecimento das duas personagens é, com efeito, perfeitamente observável na obra. Após erros e acertos em campo, Batman adota progressivamente a rigidez e disciplina que o caracterizam; Gordon, único elemento incorruptível da corporação, paga um preço alto pela sua integridade. A retidão de caráter é-lhes comum e, por isso, ambos se admiram mutuamente, antes mesmo de se conhecerem.
Se Batman é a figura heroica vista com ligeiro distanciamento por conta do luto e revolta que carrega desde a infância, Gordon é concebido como o homem comum que realiza o possível na medida das suas forças. O futuro Comissário é um herói falho, que trai a esposa grávida e sofre violência física e emocional por parte dos seus companheiros. Mas cujas boas intenções acabam por sobressair num quadro de absoluta amoralidade. Não é por acaso que Gordon é uma das personagens mais empáticas do imaginário do Cavaleiro das Trevas.
Outro aspeto positivo de Ano Um radica na ausência de qualquer representante da burlesca galeria de vilões do Batman. Desse modo fica claro que, nos primórdios da sua carreira heroica, o Homem-Morcego tinha como principais inimigos a sua consciência e uma sociedade profundamente corrupta. Não obstante, futuros antagonistas, como Harvey Dent (Duas-Caras) e Selina Kyle (Mulher-Gato), são introduzidos de forma brilhante.
Ano Um é, sem margem para dúvidas, uma das melhores histórias do Batman e uma obra-prima da 9ª Arte. É também um tratado sobre como (re)contar histórias tão grandiosas e imorredouras como o herói que as protagoniza. Ditando a mais elementar justiça que esse mérito seja dividido, em partes iguais, pelos seus autores. Frank Miller e David Mazzucchelli foram os homens certos no tempo certo.

Dois homens e um destino.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à variante europeia da Língua Portuguesa;
**Artigos sobre A Queda de Murdock, Zero Hora, Dennis O'Neil, Crise nas Infinitas Terras e Bill Finger disponíveis para leitura complementar.




04 junho 2016

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A QUEDA DE MURDOCK"



   O que move um homem que perdeu tudo? O que o faz levantar-se do fundo do poço? Caído em desgraça devido à traição de um antigo amor, o Demolidor embarca numa épica jornada de redenção. Uma admirável fábula de ruína e renascimento impregnada da genialidade de Frank Miller e que sinaliza um momento definidor na trajetória do herói cego.

Título original: Born Again
Licenciadora: Marvel Comics
Autores: Frank Miller* (trama) e David Mazzucchelli (arte)
Data de lançamento: Fevereiro a junho de 1986
Títulos abrangidos: Daredevil nº227 a 231
Personagens principais: Matt Murdock/Daredevil (Demolidor) e Wilson Fisk/Kingpin (Rei do Crime)
Coadjuvantes: Karen Page, Foggy Nelson, Ben Urich, Captain America (Capitão América) e Nuke (Bazuca)
Cenário: Cozinha do Inferno e outros pontos da cidade de Nova Iorque

* Perfil disponível em http://bdmarveldc.blogspot.pt/2012/11/eternos-frank-miller-1957.html


Capa da edição encadernada da saga original.

Edições em Português

Pouco mais de um ano transcorrido sobre o lançamento da saga nos EUA, Born Again (traduzido no Brasil como A Queda de Murdock) chegou às páginas de Superaventuras Marvel (SAM), almanaque mensal editado pela Abril. Dividida em sete capítulos, a história foi apresentada pela primeira vez aos leitores lusófonos entre agosto de 1987 e fevereiro de 1988, nos números 62 a 68 de SAM.
Ainda sob os auspícios da Abril, em 1999 chegaria às bancas a minissérie A Queda de Murdock, composta por quatro fascículos publicados quinzenalmente entre agosto e setembro desse ano.
Já este século, a saga teve direito a duas republicações por outras tantas editoras, em ambos os casos sob o formato de volumes únicos. A primeira, com a chancela da Panini Comics, remonta a julho de 2010. Inserida na  Coleção Oficial das Graphic Novels Marvel da Salvat, três anos depois A Queda de Murdock  foi uma vez mais revisitada na língua de Camões (ainda que na sua variante tropical).





O início da saga em SAM nº 62 (acima)
 e a sua última revisitação pela Salvat.

Antecedentes: Há precisamente 30 anos, a série mensal do Demolidor tentava ainda recuperar da perda de Frank Miller, que a abandonara em 1982. Denny O'Neil, o senhor que se seguiu, mesmo contando com a arrojada arte de um talentoso novato chamado David Mazzucchelli, revelava-se incapaz de manter a dinâmica narrativa incutida pelo seu antecessor.
Daredevil foi, de facto, o primeiro título regular da Marvel Comics assumido por Mazzucchelli após desenhar histórias avulsas em Indiana Jones, Star Wars e Master of Kung Fu. Impressionado com o trabalho do jovem ilustrador de ascendência italiana, Bud Budinsky, o então editor da série, convidou-o a desenhar o Homem Sem Medo. Coincidindo, no entanto, a estreia de Mazzucchelli na série com o período de férias de Denny O'Neil. Assim, a primeira história do Diabo da Guarda a que emprestou o seu traço era da autoria de Harlan Ellison, consagrado escritor de ficção científica e confesso apaixonado por super-heróis. Algo que desde logo foi considerado como um bom prenúncio.
Com efeito, a cada edição de Daredevil, evidenciava-se o crescimento artístico de Mazzucchelli que aos poucos foi seduzindo os leitores com o seu design  impressionista e arrojadamente simplista.

À data do lançamento de Born Again,
David Mazzucchelli era um talentoso novato.

Frank Miller, por seu turno, vinha traçando uma trajetória meteórica na indústria dos quadradinhos que, por esses dias, se pautava por profundas transformações. Tendo recebido carta branca da DC Comics, lançou Ronin (uma minissérie experimental que lhe valeu rasgados elogios) antes de ser colocado num pedestal devido à ovacionada saga Batman: The Dark Knight (Batman, o Cavaleiro das Trevas, Abril, 1987). No entanto, embora ausente do título do Homem Sem Medo, Miller não se afastara por completo do herói. Nesse período, produziu, numa bem-sucedida parceria criativa com Bill Sienkiewicz, a igualmente aclamada graphic novel Daredevil:Love and War (Demolidor: Amor e Guerra, Abril, 1988)).
O Demolidor, propriamente dito, chapinhava em águas pantanosas. Malgrado a competência narrativa  do veterano Denny O'Neil, os seus enredos não empolgavam os leitores, porventura mal habituados pela genialidade com que Miller infundira a série. O venerável escriba dera, entretanto, mais um sinal da sua intenção de reassumir uma personagem que tão bem conhecia.Presentando os seus saudosos fãs com uma pequena história ilustrada pelo lendário John Buscema e publicada em Daredevil nº219.
Quando O'Neil abandonou a série no final de 1985, Miller assumiu interinamente as histórias do Homem Sem Medo, exigindo que David Mazzucchelli, por cuja arte se dizia fascinado, continuasse a desenhá-las. O seu retorno efetivo só se verificaria, porém, alguns meses depois, começando de imediato a preparar o terreno para Born Again.

Frank Miller marcou uma era
nas histórias do Homem Sem Medo.

Em Daredevil nº227, edição onde foi dado a conhecer o primeiro dos sete capítulos que compunham a saga, a dupla Miller/Mazzucchelli, trabalhando numa harmoniosa simbiose criativa, tratou logo de estabelecer quem seriam os protagonistas. Além de Matt Murdock, estariam em evidência as seguintes personagens:

- Ben Urich, astuto e temerário repórter do Clarim Diário e um dos poucos conhecedores da verdadeira identidade do Demolidor;
Foggy Nelson, sócio e melhor amigo de Matt que, na esteira de importantes reveses, procurava relançar a sua carreira jurídica;
- Glorianna O'Breen, fotógrafa e atual namorada de Matt;
- Wilson Fisk, o Rei do Crime e arqui-inimigo do Homem Sem Medo;
- Karen Page, ex-secretária da firma de advogados Nelson & Murdock e antiga amante de Matt, desaparecida há vários anos após largar o emprego para rumar a Hollywood em busca de fama e fortuna como atriz. É ela, de resto, a personagem-chave da trama ao expor o maior segredo do Demolidor. Colocando dessa forma em movimento uma sinistra engrenagem que mudará para sempre a vida do herói.

Escrava do vício, Karen Page está disposta
 a tudo pela próxima dose de heroína.

Desde o início, Miller e Mazzucchelli tinham uma ideia muito clara do que pretendiam com Born Again. Era para ser uma fábula de ruína e redenção. Nesse sentido, eles testariam os limites do herói, levando-o à miséria, à loucura e, por fim, à beira da morte. Para, então, trazê-lo de volta purificado, praticamente renascido. Daí o título original da saga (Born Again = Renascido). Já o título adotado no Brasil - A Queda de Murdock - enfatiza somente a primeira etapa dessa longa e árdua provação.
Além da oportunidade de explorar novas possibilidades para os coadjuvantes já conhecidos, Born Again permitiu a Miller e Mazzucchelli elaborar uma gama de conceitos que os interessavam naquela época.
Assim se explica, por exemplo, o acréscimo tardio à obra de Basuca (Nuke, no original), personagem que não figurava do esboço original. Desde a sua primeira passagem por Daredevil - e, sobretudo, após Batman, The Dark Knight - Miller vinha demonstrando um nítido interesse pela dimensão mítica do herói e pelo seu lugar no mundo moderno.
Basuca, o perturbado supersoldado dos anos 1980, serve portanto o duplo propósito de levar o leitor a questionar-se sobre esses temas, servindo ao mesmo tempo de mote para a entrada em cena do Capitão América. A polarização que se estabelece entre ambos chega a ser tão intensa e impactante como o confronto entre Batman e o Super-Homem em The Dark Knight.
Born Again tem ainda o condão de desvendar parcialmente um dos principais mistérios propostos por Miller aquando da sua primeira passagem pelas histórias do Homem Sem Medo: o verdadeiro destino da mãe de Matt Murdock. Rezam as crónicas que, meses antes, Denny O'Neil chegara a discutir com David Mazzucchelli o desenvolvimento de uma saga para abordar o assunto. Projeto que, devido à saída extemporânea do escritor, seria posto na gaveta antes mesmo de poder ser definida a respetiva tónica. Deixando assim via aberta para a inusitada revelação feita por Miller sobre uma das mais enigmáticas personagens do passado do Demolidor.
Resta apenas acrescentar que o fim de Born Again não encerrou a parceria entre Miller e Mazzucchelli. Dupla de sucesso que se reuniria logo em 1987 para, agora ao serviço da DC, produzir o magistral arco de histórias Batman: Year One (Batman: Ano Um, Abril, 1987).

Basuca, o reflexo distorcido do Capitão América.

Enredo: Karen Page, antiga secretária da Nelson & Murdock e ex-namorada de Matt, partira anos atrás para Hollywood no encalço do sonho de construir uma carreira ligada ao cinema. Após algumas experiências positivas como atriz, tornou-se uma heroinómana, vendo-se obrigada a participar em filmes pornográficos rodados no México para sustentar o vício. Tolhida pela ressaca, ela aceita vender um segredo que guardava há largos anos a troco de uma dose de droga: o de que Matt Murdock é o Demolidor. Informação que não tardaria a ser repassada ao Rei do Crime.
Nos meses seguintes, o poderoso chefe do submundo do crime nova-iorquino usa a sua influência junto de diversas entidades para arruinar a vida ao seu ódio de estimação. Para começar, Matt tem as suas contas bancárias congeladas pelo Fisco. Segue-se uma ordem de despejo do seu apartamento interposta pelo banco com o qual ficara em incumprimento. A estocada final é desferida sob a forma de um falso depoimento prestado em tribunal por um agente policial corrupto que, a mando de Fisk, acusa Matt Murdock de ter subornado uma testemunha para cometer perjúrio.
Como se tudo isso não fosse suficiente para desmoralizar qualquer um, Glorianna O'Breen, a atual namorada de Matt, anuncia a sua intenção de pôr um ponto final à relação de ambos. Reatando de seguida o seu romance com Foggy Nelson, sócio e melhor amigo de Murdock.
Acossado, o Homem Sem Medo pressente que está a ser alvo de uma cabala para o destruir e resolve descobrir quem está por detrás dela. As suas investigações iniciais levam-no até um sujeito chamado Nick Manolis. A troco de tratamento médico para o seu filho gravemente doente, Manolis tem ajudado a tramar Matt Murdock. No entanto, malgrado os seus esforços, o Homem Sem Medo não consegue descobrir quem está por detrás do complô, tampouco consegue provar a sua inocência.
Graças ao brilhante trabalho jurídico de Foggy Nelson, Matt escapa a uma pena de prisão efetiva, mas tem cassada a sua licença de advogado. Frustrado o seu plano original, o Rei do Crime ordena um ataque à bomba ao apartamento de Matt. Ordena também que o traje do Demolidor seja deixado entre os destroços fumegantes, para que o herói tome consciência de que a sua identidade deixou de ser secreta para o seu maior inimigo. E que é ele o responsável pelo seu tormento.

Uma mensagem do Rei do Crime deixada
entre as ruínas fumegantes do lar de Matt Murdock.
Tentando tirar o maior proveito possível dessa vantagem tática, o Rei do Crime ordena a morte de toda e qualquer pessoa que conheça a verdadeira identidade do Demolidor. Karen Page consegue, porém, iludir os seus carrascos e planeia retornar a Nova Iorque na esperança de conseguir chegar até Matt.
Agora um sem-abrigo, Matt desenvolve uma personalidade paranoide e assume comportamentos extremamente agressivos. A sua paranoia é, todavia, real visto que ele é constantemente vigiado por esbirros do Rei do Crime, que lhe fornecem relatórios detalhados do estado de saúde de Matt.
Impelido por um fortíssimo desejo de vingança, Matt Murdock confronta Wilson Fisk no seu próprio escritório. Física e mentalmente diminuído, o herói acaba, porém, brutalmente espancado às mãos do seu arqui-inimigo. De seguida, visando prevenir uma eventual investigação policial à morte de Murdock, o seu corpo manietado é regado com uísque antes de ser enfiado no interior de um táxi roubado, que é, depois, empurrado para o East River. A água gelada faz no entanto com que Matt recupere os sentidos e consiga libertar-se da armadilha fatal, nadando depois até à superfície.
Ferido com gravidade, Matt cambaleia pelas ruas da Cozinha do Inferno até conseguir chegar ao bafiento ginásio onde o seu pai outrora treinara como pugilista. Local onde é encontrado pela sua mãe, cujo paradeiro era incerto desde o seu nascimento. Mas que tinha, afinal, abraçado uma carreira religiosa como freira numa igreja das redondezas. É ela quem cuida dos ferimentos do filho, velando e orando por ele enquanto o seu corpo se cura.

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Matt Murdock derrotado às mãos do seu arqui-inimigo.
Entrementes, Ben Urich, repórter do Clarim Diário e confidente de Matt, inicia uma investigação por contra própria aos recentes acontecimentos na vida do amigo. Investigação essa  que o conduz ao hospital onde o filho de Nick Manolis luta pela vida. Quando o menino exala o seu último suspiro, o pai confidencia a Ben o seu envolvimento numa cabala para arruinar Matt Murdock. Dando-lhe igualmente conta  das suas suspeitas de que por detrás dela estará ninguém menos do que o Rei do Crime. A conversa é, contudo, abruptamente interrompida por Lois,  uma espadaúda enfermeira a soldo de Fisk.  Depois de partir os dedos de uma mão a Urich, ela espanca Manolis quase até à morte.
Dias depois, Manolis telefona a Urich a partir da sua cama de hospital com o objetivo de retomar a sua confissão. Antes que o possa fazer é novamente atacado pela enfermeira Lois que, desta vez, não tenciona deixar o serviço a meio. Manolis é assim lentamente esganado por ela enquanto do outro lado da linha Urich escuta, impotente, a sua agonia. Contudo, em vez de ficar intimidado, o repórter ganha novo alento para prosseguir com a sua investigação, alertando o seu jornal e as autoridades para o sucedido.
Karen Page chega entretanto a Nova Iorque após uma viagem de pesadelo.Que só foi possível graças à  boleia de um pervertido chamado Paul Scorcese que, a troco de favores sexuais, lhe fornece heroína. Sem demora, ela entra em contacto com Foggy Nelson a fim de se inteirar da condição de Matt Murdock. Ao detetar os sinais de agressão no corpo da jovem, Foggy insiste em levá-la para sua casa.
Cada vez mais obstinado em liquidar o Demolidor, o Rei do Crime recorre aos seus contactos nas altas esferas do Exército americano para assegurar os serviços de Bazuca, um supersoldado gerado pelo mesmo programa militar que criara o Capitão América. Para atrair o Homem Sem Medo para fora do seu esconderijo, Fisk envia um maníaco homicida - cuja fuga do hospício engendrara entretanto - para assassinar Foggy Nelson usando um uniforme idêntico ao do herói.
Depois de ter salvo Ben Urich de nova tentativa de homicídio perpetrada pela enfermeira Lois, Matt toma conhecimento da conspiração em curso para tirar a vida ao seu amigo e decide tomar providências para impedir que isso aconteça. Lois, por seu turno, fica sob custódia policial.
Longe dali, Karen Page surpreende Paul Scorcese a rondar o prédio onde Foggy Nelson reside. Receando que ele tencione matar o seu amigo, a jovem vai ao encontro de Scorcese na rua. Sendo ambos prontamente alvejados por atiradores furtivos a quem o Rei do Crime ordenara que abatessem qualquer pessoa que saísse do edifício. Instantes depois, é a vez do falso Demolidor chegar ao local, ansioso por executar a sua macabra missão. Deparando-se, porém, com Matt Murdock que facilmente neutraliza o impostor e salva Karen que fora apenas atingida de raspão pelo disparo do sniper.
Consumida pela culpa, a rapariga confessa-lhe ter sido ela a revelar o seu segredo. Mas Matt tranquiliza-a dizendo-lhe que já superara a perda dos seus bens materiais. Os dois refugiam-se em seguida num apartamento devoluto onde Matt ajuda Karen a suportar os efeitos da ressaca.

Karen Page expia os seus pecados
 nos braços de Matt Murdock.

Enquanto isso, a enfermeira Lois dispõe-se a testemunhar contra Wilson Fisk a troco de uma pena mais leve. Antes que possa fazê-lo, é assassinada a sangue-frio por um falso jornalista do Clarim Diário a quem concordara conceder uma entrevista. Falhado o seu plano para descobrir o paradeiro do Demolidor, o Rei do Crime ordena a Basuca um ataque generalizado à Cozinha do Inferno.
Basuca mata dezenas de civis inocentes e destrói o restaurante onde Matt Murdock vem trabalhando anonimamente. Ressurgindo em público pela primeira vez desde a destruição do seu lar, o Demolidor não tem outra alternativa se não provocar a queda do helicóptero em que o vilão se faz transportar. Embora ferido com gravidade, Basuca sobrevive e fica sob a custódia dos Vingadores que haviam entretanto acorrido ao local.
Perturbado pelo facto de Basuca ter uma bandeira dos EUA tatuada na face, o Capitão América resolve investigar o seu passado. Perante as respostas evasivas que obtém por parte das chefias militares, o Sentinela da Liberdade infiltra-se na base do Exército para onde Basuca fora entretanto transferido e vasculha arquivos confidenciais. A descoberta de que Basuca é um produto do mesmo programa militar que, durante a II Guerra Mundial, o transformou num formidável supersoldado, deixa o herói mortificado.

Diabo da Guarda renascido.
Basuca consegue entretanto evadir-se, sendo prontamente detido pelo Capitão América. Contudo, o Rei do Crime ordenara que Basuca fosse morto, acabando assim alvejado pelos militares. Chegado entretanto ao local, o Demolidor arranca o moribundo vilão das mãos do Sentinela da Liberdade e apressa-se a levá-lo à redação do Clarim Diário, na esperança de que ele possa testemunhar contra Fisk. Não é, porém, lesto o suficiente e Basuca morre antes de poder incriminar o seu ex-empregador.
Numa tentativa para resgatar Basuca, o Capitão América tropeça acidentalmente nos franco-atiradores  enviados para matá-lo. Um deles denuncia Wilson Fisk como tendo sido o mandante do ataque à Cozinha do Inferno que se saldou na perda de dezenas de vidas humanas. Rebenta o escândalo na comunicação social e chovem processos judiciais sobre Fisk. Este, apesar de conseguir ser ilibado de todas as acusações tem a sua imagem pública de respeitável homem de negócios destruída. Facto que motiva a deserção dos seus lugares-tenentes.
Mais obcecado do que nunca, o Rei do Crime logo começa a congeminar os seus planos de vingança contra Matt Murdock. Este, por sua vez, reencontra a felicidade na Cozinha do Inferno e ao lado de Karen Page, agora livre do vício. Mesmo sabendo no seu íntimo que, apesar de ter saído vencedor de mais esta batalha contra o seu némesis, a guerra entre ambos está longe de terminar...
     
Matt Murdock e Karen Page
 reencontram a esperança um no outro.

Simbolismo: Pejada de elementos religiosos relacionados com a mitologia cristã, a saga assume-se na sua essência como uma parábola bíblica. O próprio título original invoca uma frase que, segundo o Evangelho de João, terá sido proferida por Jesus Cristo para expressar a necessidade de preceder o início de uma nova vida com o fim da antiga.
Note-se, à guisa de curiosidade, que apesar de a história se desenrolar em plena quadra natalícia, a temática nela aflorada remete quase exclusivamente para a Páscoa (celebração da morte e ressurreição de Cristo). Senão vejamos: as páginas de abertura dos quatro primeiros capítulos mostram sempre Matt Murdock prostrado. Com a particularidade de, no segundo e terceiro capítulos, ele surgir enroscado em posição fetal. Ainda no terceiro capítulo, o herói - agora convertido num pária - arrasta-se ensanguentado pelas ruas da Cozinha do Inferno, numa óbvia alegoria da Via Sacra calcorreada pelo Messias até ao local da sua crucificação. Não faltando sequer as três quedas que terão marcado esse tortuoso percurso levado a cabo pelo Filho de Deus enquanto carregava uma pesada cruz de madeira.
Já a imagem que encerra esse capítulo (e que serve de ilustração principal deste artigo) invoca claramente a icónica Pietá de Michelangelo. Nela, um agonizante Matt Murdock jaz inerte no regaço da Irmã Maggie, que assim faz as vezes da Virgem Maria. Há ainda a ressaltar o pormenor de na referida imagem ser visível uma pomba branca pousada acima de ambos. Ave que, como é sabido, é tradicionalmente usada na iconografia cristã para simbolizar o Espírito Santo. Finalmente, a página de abertura do quinto capítulo da saga mostra Matt de pé, numa representação metafórica da ascensão de Cristo.
No que concerne ao simbolismo religioso subjacente à obra, importa ainda observar que todos os títulos dados aos capítulos que a compõem advêm de conceitos do Cristianismo (Apocalipse, Purgatório, etc.). Tudo elementos que refletem as raízes profundamente católicas de Frank Miller.

Apocalipse, Purgatório e Pária:
conceitos bíblicos titulam 3 primeiros capítulos da saga.

Sequela: Embora produzido por um conjunto de autores totalmente diverso do da saga original, o arco de histórias Last Rites, publicado nos números 297 a 300 de Daredevil, corresponde a um desdobramento de Born Again. Com a respetiva trama centrada na forma como o Homem Sem Medo destrói metodicamente a reputação pública de Wilson Fisk, ao mesmo tempo que o desapossa do seu vasto património espalhado pelo globo. Retribuindo assim as agruras que o Rei do Crime lhe infligira. Paralelismo que fica bem explícito quando, no desfecho da saga, o vilão, num momento de devaneio, balbucia "born again".
A história mostra também como Matt Murdock consegue recuperar a sua licença para exercer advocacia, a qual fora cassada em consequência da campanha difamatória orquestrada por Fisk na saga original.

Capa do capítulo final de Last Rites
(em Português traduzida como A Queda do Rei do Crime).

Notas finais:

Anos atrás, o realizador Mark Steven Johnson deu conta do seu interesse em dirigir uma sequela de Daredevil (longa-metragem de 2003 protagonizada por Ben Affleck), baseada em Born Again. Projeto que seria oficialmente descartado pela Fox em agosto de 2012, escassos meses antes de os direitos do filme reverterem para os Estúdios Marvel;
* Sob a égide da IDW Publishing, em 2012 foi dada à estampa David Mazzucchelli's Daredevil: Born Again - Artist's Editon. Trata-se de uma coletânea de 200 páginas impressas nas dimensões da  arte original de Mazzucchelli. Entre outros extras que fizeram as delícias dos fãs, o volume incluía notas editoriais e correções feitas ao trabalho da dupla de autores.

David Mazzucchelli autografa um exemplar
 da Artist´s Edition na Midtown Comics de NY em 2012.

Vale a pena ler?

Em 2001, o explosivo capítulo inaugural de Born Again foi votado pelos leitores como a 11ª melhor história da Marvel de todos os tempos.
É, no entanto, difícil explicar porque é tão fantástica a saga. É algo que o leitor terá de descobrir por si próprio. Pode até nem ser o tipo de  história que, pela sua intensidade psicológica e nível de violência, agradará a todos. Mas será certamente um bom entretenimento.
Na minha modesta opinião, Born Again poderá mesmo ser a melhor história alguma vez produzida pela Marvel. Mostrando-nos como um homem íntegro que perdeu tudo consegue reerguer-se mais forte do que nunca. Porque, mais do que o Demolidor, é Matt Murdock quem sobrevive a tão grande provação. É, pois, ele o verdadeiro herói da saga. Dispensando poderes espalhafatosos e pondo em evidência os seus maiores predicados: coragem e perseverança.
Uma palavra ainda para o magnífico trabalho desenvolvido por Frank Miller que  a par de Batman, The Dark Knight, tem em Born Again as suas obras-primas. Muitos foram os escritores que, ao longo das décadas, assumiram - com maior ou menor brilhantismo - as histórias do Homem Sem Medo. Mas nenhum deles sequer chegou perto da genialidade de Miller. Cuja visão marcou uma era no género super-heroístico, pavimentando caminho para a adultização que o caracteriza nos dias de hoje.