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25 junho 2024

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A MORTE DE JEAN DEWOLFF»

  Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha lança-se à caça do assassino de uma velha amiga. Um fanático de moralidade distorcida anda à solta nas ruas e promete continuar a lavar os pecados da sociedade com o sangue dos inocentes. Cederá o herói à tentação de fazer justiça pelas próprias mãos, perante mais esta tragédia pessoal?

Título original: The Death of Jean DeWolff
Editora: Marvel Comics
País: Estados Unidos da América
Data de lançamento: Outubro de 1985
Títulos abrangidos: Peter Parker, The Spectacular Spider-Man #107-110
Autores: Peter David (trama), Rich Buckler (ilustrações) e Josef Rubinstein (arte-final)
Protagonistas: Homem-Aranha, Demolidor e Devorador de Pecados
Cenários: Nova Iorque 
Edições em português: A primeira versão traduzida deste arco de histórias foi publicada, entre setembro e outubro de 1990, no tradicional formatinho da Abril brasileira. O primeiro capítulo da saga foi apresentado em Homem-Aranha nº87, sendo os restantes incluídos no número seguinte. Desde 2013, a Panini e a Salvat têm-se alternado no lançamento de encadernados, o mais recente dos quais data de 2021. 

Inédita em Portugal, a saga já foi várias vezes
republicada no Brasil.
Em 2017, a Salvat incluiu-a na sua
Coleção Definitiva do Homem-Aranha. 

Lei da bala 

A violência urbana sempre foi - e continua a ser - um dos maiores flagelos sociais nos EUA. Num país com mais armas do que habitantes, impera muitas vezes a lei da bala. As falhas da Justiça, que devia ser para todos, geram revolta e frustração. Sentimentos que demasiados cidadãos extravasam premindo o gatilho.
No início dos anos 80, o fenómeno adquiriu contornos epidémicos nas ruas das principais cidades americanas. Em Nova Iorque, onde as relações interpessoais sempre se caracterizaram pela agressividade, registou-se nesse período um aumento exponencial da taxa de homicídios. Para piorar o quadro, os crimes eram cometidos quer por indivíduos socialmente excluídos quer por cidadãos comuns sem motivo aparente para chegarem a vias de facto.
Um episódio, em particular, obteve grande ressonância mediática e chocou a opinião pública a nível nacional. Num daqueles acasos com hora marcada, a 22 de dezembro de 1984, Bernhard Goetz alvejou quatro jovens que o importunavam durante uma viagem noturna de metro. Prontamente apelidado de Vigilante do Metro pelos tabloides, Goetz alegou legítima defesa. Argumento insuficiente para prevenir a tempestade racial desencadeada pela cor da pele dos intervenientes: Goetz era branco, as suas vítimas negras.
Entre os milhões de nova-iorquinos que seguiam apaixonadamente o caso estava Peter David. À época assistente de vendas da Marvel após uma malsucedida carreira jornalística, David era um aspirante a escritor à espera de uma oportunidade para mostrar o seu valor.

Racismo ou legítima defesa?
Bernhard Goetz continua a dividir opiniões.

Por aqueles dias, o Homem-Aranha era o maior trunfo da Casa das Ideias, que o presenteou com quatro títulos mensais: Marvel Team-Up, Amazing Spider-Man, Web of Spider-Man e Peter Parker, The Spectacular Spider-Man. Este último, em circulação desde 1976, apresentava habitualmente histórias em que o herói aracnídeo, sozinho ou emparelhado com vigilantes urbanos como Manto e Adaga, combatia o tráfico de drogas ou punha fim a guerras de gangues. Nova Iorque era a meca do crime e os escribas da série, com Al Milgrom à cabeça, retratavam-na sem filtros.
Apesar das boas vendas de Peter Parker, The Spectacular Spider-Man, Jim Oswley, o novo editor do Cabeça de Teia, desejava refrescar o título com histórias mais adultas e temas mais complexos. Para levar a cabo essa pequena revolução, Oswley substituiu o veterano Al Milgrom pelo inexperiente Peter David. Sem floreados, Oswley informou David da sua intenção de matar uma personagem importante: ninguém menos do que a capitã Jean DeWolff.

Peter David, na altura com 29 anos, foi uma aposta pessoal
do novo editor do Homem-Aranha.

Criada, em 1976, por Bill Mantlo e Sal Buscema, Jean DeWolff era uma das coadjuvantes mais antigas das histórias do Escalador de Paredes. Os seus subordinados tinham aprendido a respeitá-la, os leitores a apreciar o seu guarda-roupa antiquado. À parte ser mulher, DeWolff incorporava praticamente todos os estereótipos dos detetives dos filmes e séries policiais daquela época: era dura e ranzinza, mas tremendamente competente. Era, também, uma preciosa aliada do Homem-Aranha, se bem que, com o tempo, a relação deles evoluiria para uma franca amizade. Como reagiria, portanto, o herói ao assassinato de alguém tão próximo?


Corajosa e determinada, a capitã DeWolff
cultivou uma relação especial com o Homem-Aranha.

Face às muitas perdas pessoais que enfrentou no decurso dos anos, o Homem-Aranha subordinou sempre as suas ações à sua consciência heroica. Nem a efusão de sangue de alguns dos seus entes queridos o levou a aplicar a Lei de Talião. Nesse espírito, a ideia consistia em apresentá-lo a um vilão cujos crimes, de tão hediondos, testassem os limites de Peter Parker.
Ao Devorador de Pecados (Sin-Eater) serviu de modelo uma personagem homónima de The Incredible Journey of Doctor Meg Laurel (1979), um dos filmes preferidos de Peter David. Em certas regiões do Reino Unido, mormente na Escócia e no País de Gales, sempre que alguém morre, os seus entes queridos depositam alimentos sobre o caixão do defunto. De acordo com esta tradição pagã de origem difusa, o ritual serve para absorver espiritualmente os pecados terrenos. Geralmente um mendigo, cabe depois ao Devorador de Pecados comer as oferendas que simbolizam as transgressões cometidas em vida pelo morto. Foi nessa sinistra figura do folclore anglo-saxónico que Peter David se inspirou para criar o carrasco de Jean DeWolff. 

Por terem absorvido tantos pecados alheios, acreditava-se que 
os Devoradores de Pecados nunca entrariam no Céu. Eram a pior 
espécie de párias sociais, mas úteis à comunidade.

Aquando do seu lançamento, no outono de 1985, A Morte de Jean DeWolff foi considerada, sob vários aspetos, inovadora. Desde logo por ter quebrado a tradição de conceder à personagem martirizada uma morte honrosa, idealmente no clímax de uma batalha ou enquanto salvava outrem. Jean DeWolff, ao invés, é morta durante o sono, logo a abrir a história. Em vez de um supervilão, o seu assassino é tão-somente um psicopata armado com uma espingarda e um código moral distorcido. Acrescendo, ainda, uma peculiaridade estilística: os créditos da história surgem apenas no final de cada um dos quatro capítulos que a compõem.
Ser ainda hoje considerada uma história incontornável na mitologia do Homem-Aranha não é o único mérito de A Morte de Jean DeWolff. A obra garantiu também assento ao seu autor entre a elite plumitiva dos comics americanos.

Quem nunca pecou...

Ao entregar à Polícia o trio de meliantes que haviam agredido Ernie Popchik, um dos residentes no lar de idosos gerido pela Tia May, o Homem-Aranha é informado do assassínio da capitã Jean DeWolff. A notícia da morte da sua velha amiga e aliada deixa o herói sem chão.
Em conversa com Stan Carter, o detetive encarregue da investigação do caso, o Homem-Aranha fica a par de mais pormenores: DeWolff foi baleada à queima-roupa enquanto dormia e o seu distintivo está desaparecido.

Jean DeWolff foi a primeira vítima do Devorador de Pecados.

No dia seguinte, Matt Murdock, nomeado advogado oficioso, consegue que os agressores de Popchik sejam libertados sem fiança. À saída da sala de audiências, é confrontado por um indignado Peter Parker. Mais tarde nesse mesmo dia, Matt confidencia ao juiz Horace Rosenthal o seu crescente desconforto em assumir a defesa pro bono de indivíduos de moralidade questionável.
Ainda no gabinete do juiz, o radar de Matt deteta a presença de um intruso na sala adjacente. Antes que Matt possa alertar o seu interlocutor, um encapuzado irrompe no gabinete e abre fogo sobre ambos. Graças aos seus reflexos sobre-humanos, Matt consegue esquivar-se das balas, mas o juiz tem menos sorte.
Atraído pelos disparos, o Homem-Aranha acorre ao local, sendo prontamente recebido com uma saraivada de chumbo. Para surpresa do Escalador de Paredes, o mascarado não só resiste aos seus golpes como revida com inesperada pujança.
No exterior do tribunal, alguns transeuntes são feridos pelas balas perdidas. Tirando partido do pânico instalado, o mascarado desenvencilha-se do Homem-Aranha e põe-se em fuga. O herói ainda tenta travá-lo com a sua teia, mas constata que os lançadores foram danificados durante a escaramuça. Capta, no entanto, um vislumbre do distintivo policial que adorna o cinto do mascarado - e reconhece-o como tendo pertencido a Jean DeWolff.

O Devorador de Pecados revela-se um osso duro de roer.

Com o consentimento do detetive Carter, o Homem-Aranha revista o apartamento da capitã DeWolff. Não encontra, porém, quaisquer pistas que o ajudem a perceber o móbil do crime. Apenas fotos e recortes de jornais onde ele aparece. O eco solitário do amor impossível que DeWolff trazia aninhado na alma. Essa descoberta deixa o herói ainda mais consternado.
Em novo encontro com o Homem-Aranha, Stan Carter informa-o que o assassino da capitã DeWolff e do juiz Rosenthal se autodenomina Devorador de Pecados. O detetive explica-lhe o folclore associado ao nome e revela ainda o próprio passado como agente da SHIELD.
Durante o funeral do juiz Rosenthal, Matt Murdock deteta o batimento cardíaco do Devorador de Pecados. É, no entanto, incapaz de identificá-lo no mar de gente que assiste à cerimónia.
Nessa mesma noite, o Devorador de Pecados volta a atacar. Executa a sangue-frio o sacerdote que conduzira as exéquias do juiz Rosenthal. Em consequência de mais essa morte, é montado um circo mediático, aproveitado pelo reverendo Jackson Tulliver para vitimizar a comunidade afroamericana.
Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha e o Demolidor vasculham o submundo nova-iorquino em busca de informações sobre o paradeiro e identidade do Devorador de Pecados. A cada beco sem saída, sentem que perseguem um fantasma.
Dias depois, o Devorador de Pecados invade a redação do Daily Bugle e, tomando Marla como refém, exige falar com J. Jonah Jameson. Enquanto Joe Robertson se faz passar por Jameson, Peter Parker atinge o mascarado na cabeça com o rolo de uma máquina de escrever, deitando-o por terra.
Ao recuperar os sentidos, o Devorador de Pecados, entretanto desmascarado, apresenta-se como Emil Gregg. Ele não tem, contudo, a mais vaga lembrança de ter perpetrado os homicídios que lhe são imputados. Recorda-se apenas das vozes a ordenarem que os cometesse.
A confissão de Gregg é também testemunhada pelo Demolidor, que não reconhece, porém, o seu batimento cardíaco. Convicto de que estão em presença de um impostor, o Diabo da Guarda convida o Homem-Aranha a acompanhá-lo numa busca ao apartamento do suspeito. Durante a breve conversa entre ambos, o Demolidor reconhece o batimento cardíaco de Peter Parker.

O falso Devorador de Pecados confessa 
os crimes que não cometeu.

Enquanto o Homem-Aranha revista o apartamento de Gregg, o Demolidor repara que a fechadura da porta do apartamento contíguo foi estroncada. Ao investigar, o Homem Sem Medo tropeça numa pequena pilha de correspondência por abrir. Toda ela destinada a Stan Carter. Os heróis encontram também um gravador de voz onde Carter registava as suas atividades como Devorador de Pecados - era essa a origem das vozes que atormentavam Gregg.
Deduzindo que Carter usara Gregg como distração para cumprir o seu verdadeiro objetivo, o Homem-Aranha liga para o Daily Bugle e obtém o número de telefone de J.J. Jameson. A chamada é atendida pela sua secretária pessoal, Betty Brant, mas antes que o herói consiga avisá-la, ouve-se um disparo em fundo e a linha fica muda.
Convencido que Betty estaria morta, o Homem-Aranha atravessa a cidade até ao domicílio de Jameson. Para seu alívio, a jovem estão viva e ilesa. Isso é no entanto insuficiente para conter a vaga de fúria incandescente que cresce dentro do herói.
Para horror de Betty, o Homem-Aranha continua a espancar o Devorador de Pecados, mesmo depois de ele ter ficado inconsciente. Só muito a custo o Demolidor, entretanto chegado ao local, consegue impedir que o seu aliado faça justiça pelas próprias mãos.

O Demolidor sente na pele a fúria do Homem-Aranha,
depois de o ter impedido de vingar a morte da amiga.

Stan Carter é preso e a notícia de que o Devorador de Pecados era um polícia corre como pólvora, incendiado os ânimos. É nesse clima de alta tensão, com uma onda de revolta a encapelar-se no horizonte urbano, que Ernie Popchik dispara contra um grupo de rufias que o assediava numa carruagem de metro. Em seguida, o idoso entrega-se às autoridades.
Nesse emmeio, a Polícia é notificada pela SHIELD que Carter fora submetido a tratamentos com uma droga experimental. A substância capacitou-o com força e resistência sobre-humanas, mas teve a esquizofrenia como efeito colateral.
Quando o plano secreto para transferir o Devorador de Pecados para a Ilha Riker é denunciado pela imprensa, uma turba ululante concentra-se diante da esquadra onde Carter se encontra sob custódia. Para impedir o linchamento, o Demolidor interpõe-se entre a multidão e o edifício, mas é rapidamente sobrepujado.
Num telhado próximo, o Homem-Aranha assiste, impávido, àquela erupção de violência. Mas o grito desesperado do Demolidor impele-o a agir no último instante.
Com Stan Carter a caminho da prisão, o Demolidor revela a sua verdadeira identidade ao Homem-Aranha e oferece-se para defender Ernie Popchik. Apesar das suas visões opostas da justiça, os dois heróis sabem que estarão sempre do mesmo lado da barricada na guerra contra o crime.
  
Apontamentos

*Apesar das muitas pistas a apontarem nesse sentido, nenhum leitor, a julgar pelas cartas recebidas na redação da Marvel, conseguiu deduzir que Stan Carter era o Devorador de Pecados. Peter David atribui esta falta de perspicácia ao facto de, após décadas de associação a Stan Lee, o nome Stan soar amistoso aos fãs;
*O uniforme negro usado pelo Homem-Aranha era um modelo de tecido normal ofertado pela Gata Negra. Peter descartara o traje original depois de ter descoberto que ele era, na verdade, um simbionte alienígena que procurava unir-se de forma permanente ao seu hospedeiro;
*Jean DeWolff admirava profundamente o seu padrasto e foi por causa dele que, para desgosto da mãe, ingressou na Polícia. Carl Weatherby acreditava que Jean poderia ser, um dia, a primeira comissária a chefiar o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Na vida real, isso só aconteceria em 2022, quando Keechant Sewell se tornou a primeira mulher (e a terceira afrodescendente) a assumir o cargo;
*Numa vinheta de Peter Parker, the Spectacular Spider-Man #108, o ator Charles Bronson surge entre a multidão que caminha pelas ruas de Nova Iorque. Trata-se de uma homenagem ao seu papel de Paul Kersey na franquia cinematográfica Death Wish, sobre um ex-tenente da Polícia de Los Angeles que, inconformado com as falhas do sistema legal, passa a atuar como um implacável vigilante;

O cameo de Charles Bronson coincidiu com o lançamento de Death Wish III. 
O filme foi produzido pela Cannon que, pouco tempo antes, adquirira os direitos
cinematográficos do Escalador de Paredes.

*Em resposta à candidatura apresentada por uma potencial assassina a soldo, o Rei do Crime dita uma carta dirigida a C.B. Kalish. Carol Kalish, ao tempo gerente de vendas diretas da Marvel e vice-presidente do departamento de desenvolvimento de novos produtos, era chefe e amiga de Peter David. Foi pela mão dela que David deu os primeiros passos na indústria dos comics. Kalish faleceria cinco anos mais tarde, de doença prolongada. Tinha apenas 36 anos;
*Apesar de ser um novato na altura e de A Morte de Jean DeWolff ter sido apenas o seu segundo trabalho profissional como argumentista da Marvel, Peter David é hoje um autor prolífico e premiado, com mais de meia centena de romances publicados. Entre os rios de prosa com que continua a irrigar a imaginação de milhões de leitores em todo o mundo, o maior destaque vai para as novelas de Star Trek, sendo mesmo considerado o melhor escritor da franquia. Na banda desenhada, deixou a sua impressão digital em títulos como Aquaman, Supergirl, X-Factor, Spider-Man 2099 e The Incredible Hulk. Neste último assinou uma das melhores fases de sempre do Gigante Verde, pela qual foi distinguindo, em 1993, com um Prémio Will Eisner. Com vasta experiência em cinema e televisão, David escreveu também vários episódios de Babylon 5 e enredos de filmes produzidos pela Full Moon Entertainment; 

Uma das muitas aventuras literárias de Star Trek 
saídas da pena de Peter David.

*Peter David trouxe de volta o Devorador de Pecados em Spectacular Spider-Man #134-136 (janeiro-março de 1988). Informalmente conhecida como o Retorno do Devorador de Pecados, a sequência, ambientada cerca de um ano após os eventos de A Morte de Jean DeWolff, explorava simultaneamente a origem do vilão e a sua fracassada tentativa de reabilitação. Mesmo depois de sair da prisão sem vestígios das drogas da SHIELD no seu organismo, Stan Carter continua a ser roído pelo remorso devido ao baralho de iniquidades perpetradas pelo seu alter ego. Sucumbindo por fim à loucura, Stan volta a vestir a fantasia de Devorador de Pecados e, armado com uma espingarda descarregada, incita a polícia a abrir fogo contra ele. Peter David considera que, apesar de violento, este foi um final misericordioso para o personagem;
*O Devorador de Pecados foi responsável indireto pelo surgimento de Venom. Em The Amazing Spider-Man #300 (maio de 1988), Eddie Brock, ex-repórter do Daily Globe, recorda como expôs publicamente Emil Gregg como sendo o Devorador de Pecados. Quando Stan Carter foi desmascarado pelo Homem-Aranha, Brock foi demitido e, preso numa espiral autodestrutiva, acabou abandonado pela esposa. Brock preferiu, ao invés, culpar o Escalador de Paredes pelo seu infortúnio e, em busca de vingança, aceitou ser o novo hospedeiro do simbionte alienígena.

Porque vale a pena ler?

Peter Parker bem podia ser a personificação da desdita. Nunca conheceu os pais, mortos quando ele ainda nem gatinhava. Na adolescência, perdeu o Tio Ben, o homem que o criara como filho. A este rosário de desgraças a idade adulta encarregou-se de acrescentar outra conta: a morte de Gwen Stacy, o primeiro grande amor de Peter.
Desde tenra idade que Peter sofre tragédias na periferia da vida. Perder entes queridos tem sido uma dolorosa rotina. Seria, portanto, de esperar que Peter já estivesse calejado, mas a morte de Jean DeWolff provou o contrário.
Por muito tempo, a capitã DeWolff foi a única aliada do Homem-Aranha no Departamento de Polícia de Nova Iorque que lhe era tradicionalmente hostil. Era também uma amiga que o ajudou em momentos difíceis. Cumplicidades antigas que fizeram do assassinato de DeWolff, não apenas um crime hediondo, mas um assunto pessoal para o Escalador de Paredes.

Tal como a inocência nas histórias de super-heróis,
Jean DeWolff foi marcada para morrer,

Com esta premissa, Peter David compôs uma trama tensa e envolvente, cujo suspense invoca os melhores contos policiais. Ao contrapor as personalidades de Matt Murdock e Peter Parker, David reacende, também, o velho debate entre justiça e vingança. Tantas vezes caricaturada como um espasmo de moralidade mesquinha, esta última é encarada pelo Homem-Aranha como a alternativa à impunidade proporcionada pelas falhas do sistema judicial. Aquele em que o Demolidor, mesmo operando na orla da Lei, deposita uma fé cega. Cabendo-lhe, por isso, ser a consciência moral de um Homem-Aranha tomado pelas emoções mais primárias.
A construção psicológica das personagens, incluindo do Devorador de Pecados, é minuciosa. Mesmo não sendo o mais carismático dos vilões, o seu apelo reside precisamente na sua simplicidade marcial. Se a motivação religiosa do Devorador de Pecados é um tanto unidimensional, essa falta de profundidade é compensada pela violência gráfica com que ele é representado. De uma crueldade (quase) sem precedentes nas histórias de super-heróis, o assassinato de Jean DeWolff faz revirar as entranhas do leitor. 
Apesar da grande quantidade de coadjuvantes, Peter David não abre mão do controlo narrativo, dando peso a cada morte retratada ao longo da trama. A arte de Rich Buckler, por sua vez, potencia a dramaticidade do enredo, fazendo uso de enquadramentos cuidadosamente escolhidos para manter a tensão e o sentimento de urgência.
Do mesmo modo que a verve de David expõe a alma de Peter Parker à contraluz, a narrativa visual de Buckler põe a nu as mazelas de uma Nova Iorque em ponto de ebulição. A violência quotidiana não ceifa apenas vidas, decapita também a esperança.
Não sendo necessariamente atemporal, A Morte de Jean DeWolff é, inquestionavelmente, uma das mais importantes histórias do Homem-Aranha. O conflito interno do herói, refletido pelo Demolidor, é o que  realmente a faz perdurar. 
Produzida numa das melhores décadas dos comics americanos, A Morte de Jean DeWolff quebrou alguns conceitos até então normativos. A sua crueza e complexidade traçou uma bissetriz nas histórias do Cabeça de Teia, desbravando caminho, nos anos imediatos, para outras fábulas sombrias como A Última Caçada de Kraven.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Resenha de A Última Caçada de Kraven disponível para leitura complementar.




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31 outubro 2022

HERÓIS EM AÇÃO: WOLVERINE


  De todos os animais selvagens, o mais perigoso é o homem sem passado. O de Logan foi-lhe roubado por aqueles que o transformaram numa arma viva e difícil de matar. Fera acuada com alma de samurai, ele é o melhor no que faz. Mas o que ele faz não é bonito de se ver.

Denominação original: Wolverine
Editora: Marvel Comics
Criadores: Roy Thomas (nome e conceito), Len Wein (história) e John Romita Sr. (arte conceptual)
Estreia: The Incredible Hulk #180 (outubro de 1974)
Identidade civil: James Howlett (vulgo Logan)
Espécie: Mutante
Local de nascimento: Cold Lake, na província canadiana de Alberta.
Parentes conhecidos: Thomas Logan (pai, falecido); Elizabeth Howlett (mãe, falecida); John Howlett (padrasto, falecido); Dog Logan (meio-irmão paterno); John Howlett Jr. (meio-irmão materno, presumivelmente falecido); Laura Kinney / X-23 (filha por doação genética); Itsu (esposa, falecida); Akihiro/Daken (filho)
Ocupação: Homem dos mil ofícios, Logan já foi mineiro, samurai, soldado, mercenário, espião, barman e até instrutor na Escola Xavier para Jovens Sobredotados.
Base de operações: Tradicionalmente, a Mansão X, quartel-general dos X-Men localizado em Salem Center, na periferia de Nova Iorque. Quando age à margem da equipa, o seu espírito errante pode levá-lo a qualquer parte do globo.
Afiliações: Apesar da sua reputação de lobo solitário, Wolverine gosta de andar em alcateia. Antes de se associar aos X-Men, com os quais mantém a sua ligação mais conhecida e duradoura, fez parte do Clã Yashida, do Programa Arma X e do Departamento H.
Némesis: Dentes-de-Sabre
Poderes e parafernália: Wolverine é um mutante com múltiplos aprimoramentos naturais e artificiais na sua fisiologia. Consistindo num processo natural de cicatrização acelerada, o seu poder principal é commumente designado fator de cura. Graças a ele, os ossos e tecidos moles do seu corpo, quando danificados, regeneram-se a uma velocidade muito superior ao normal. 
Adicionalmente, o fator de cura de Wolverine confere-lhe uma elevadíssima eficiência metabólica que aumenta a sua resistência a drogas e venenos. Ele pode, ainda assim, sentir os efeitos imediatos de tais substâncias, se administradas em grandes quantidades. Certa vez, a SHIELD conseguiu mantê-lo sedado durante vários dias bombeando ininterruptamente doses cavalares de um potente anestésico na sua corrente sanguínea.
Sem o seu milagroso fator de cura, Wolverine não teria sobrevivido ao procedimento cirúrgico experimental que infundiu, a nível molecular, o seu esqueleto com adamantium, tornando-o virtualmente indestrutível. 
Ao induzir um constante rejuvenescimento celular, o fator de cura de Wolverine retarda também, de forma drástica, o seu processo de envelhecimento. Apesar de ter vindo ao mundo no último quartel do século XIX, Logan conserva a aparência e a vitalidade de um homem de meia-idade no seu auge físico.
O fator de cura de Wolverine não suprime no entanto o sofrimento físico resultante dos ferimentos e traumas que lhe são infligidos. Mesmo após a cicatrização dos mesmos, ele afirma sentir dores fantasmas ao longo de semanas ou até meses.
A velocidade a que Wolverine consegue curar-se varia, aparentemente, consoante a extensão e gravidade das respetivas lesões. Quanto maior for o perigo de vida, mais rápido é o processo de regeneração. Mas nem sempre foi assim.
Originalmente, o fator de cura só era eficaz em pequenas lesões e requeria sempre a mesma quantidade de tempo para atuar. Com o passar dos anos, porém, a sua ação foi sendo maximizada, ao ponto de Wolverine poder agora regenerar, em questão de minutos, órgãos danificados e membros amputados. No limite, ele pode reconstituir-se depois de ter sido esquartejado e/ou incinerado. Matá-lo tornou-se missão quase impossível.

O fator de cura mutante de Wolverine
 permite-lhe sobreviver a ferimentos potencialmente fatais.
Devido à sinergia do seu fator de cura com os escudos psiónicos de alto nível implantados pelo Professor Xavier, a mente de Wolverine é quase inexpugnável a sondagens e agressões telepáticas. Derrubar essas defesas constitui tarefa árdua, mesmo para os telepatas mais poderosos.
O fator de cura de Wolverine afeta igualmente vários dos seus atributos físicos, aumentando-os para níveis sobre-humanos. Dotado de sentidos hiperaguçados, ele consegue ver com clareza a grandes distâncias, identificar alvos pelo cheiro e até ouvir batimentos cardíacos. Habilidades que fazem de Wolverine um dos melhores rastreadores do mundo. De tão apurado, o seu olfato permite-lhe, ademais, reconhecer transmorfos, mesmo quando estes assumem a aparência de outrem.
Contrariamente ao inicialmente sugerido, as garras retráteis de Wolverine (3 em cada mão, medindo cada uma exatos 30 cm) não são implantes biónicos aplicados pelo Programa Arma X. Antes de Logan ter tido o seu esqueleto reforçado com adamantium, as suas garras eram excrescências ósseas extremamente densas, que lhe permitiam cortar e perfurar facilmente a carne dos seus adversários. Dada a ausência de orifícios naturais para o efeito, desembainhá-las implica sempre rasgar a pele das mãos. Processo doloroso mitigado pelo fator de cura e pelos picos de adrenalina.
Atualmente revestidas com adamantium, as garras de Wolverine, inquebráveis como cada osso no seu corpo, podem cortar qualquer material sólido, incluindo metais, madeira e algumas variedades de pedra. As únicas exceções conhecidas são o próprio adamantium e a liga de vibranium e protoadamantium de que é feito o escudo do Capitão América. No entanto, a capacidade de Wolverine para cortar completamente uma substância depende tanto da espessura da mesma como da força que ele consegue exercer. Levando em conta que Logan consegue levantar aproximadamente meia tonelada, poucos são os materiais capazes de resistir às suas violentas arremetidas.
Ainda que Wolverine prefira, quase sempre, usá-las para fins ofensivos, as suas garras possuem diferentes utilidades: bloquear ataques, desviar projéteis ou escalar estruturas são algumas delas. Não raro, Logan usa-as também para intimidar inimigos ou como instrumentos de persuasão em interrogatórios.

De osso ou metal, as garras 
 causam sempre dor ao próprio Wolverine.
Durante a sua longa estada no país do Sol Nascente, Logan tornou-se proficiente em múltiplas artes marciais e no manejo de espadas e outras armas brancas. Lutador exímio, possui ainda amplo conhecimento do corpo humano e dos pontos de pressão suscetíveis de incapacitarem os seus adversários. Sem nunca dar uma luta por perdida, o seu lema é "antes quebrar que torcer".
Quando em combate, Wolverine é por vezes tomado por uma fúria assassina que traz à tona o seu lado animalesco. Nesse estado irracional, ele ataca ainda com maior ferocidade, estraçalhando os seus alvos das maneiras mais horríveis. Apesar da sua aparente facilidade em tirar vidas, Logan odeia ceder aos seus instintos homicidas, os quais procura reprimir aderindo ao draconiano código de honra dos antigos samurais.
Em contraste com esta sua natureza brutal, Wolverine demonstra uma enorme empatia pelos animais, com os quais consegue mesmo comunicar a um nível básico. Fruto das muitas viagens que fez pelo mundo, é também um profundo conhecedor de culturas estrangeiras, mormente da japonesa, sendo fluente em dezenas de idiomas e dialetos indígenas.
Devido ao treino recebido durante a sua colaboração com o Departamento H e outras agências governamentais, Wolverine é também um assassino altamente eficiente e um especialista em operações furtivas. Por tudo isto, ele é o melhor no que faz. Mas o que ele faz não é bonito de se ver.

O escudo do Capitão América é uma das raras coisas
que as garras afiadas de Wolverine não conseguem cortar.

Fraquezas: Nos chamados Protocolos Xavier, planos de contingência elaborados pelo Professor X para neutralizar os mutantes mais poderosos caso eles se tornem ameaças, teoriza-se que a decapitação poderá ser a forma mais eficaz de matar Wolverine.
Separar a cabeça do corpo impediria o cérebro de Logan de enviar sinais para os tecidos destruídos, inibindo assim a ação do seu fator de cura. Devido ao seu esqueleto inquebrável, tal só seria no entanto possível se o golpe fosse desferido pela lâmina mística da espada Muramasa.
Forjada, quase um século atrás, por um lendário ferreiro japonês do mesmo nome, a espada Muramasa é capaz de cortar qualquer coisa - inclusive adamantium - ao nível molecular. Por também lhe anular o fator de cura, o próprio Wolverine já admitiu ser ela a única arma capaz de matá-lo.
Não obstante ser um excelente nadador, Wolverine tem a sua flutuabilidade reduzida pelo peso extra (aproximadamente 45 kg) que o adamantium acrescenta ao seu corpo. Em razão disso, o afogamento constitui uma alternativa mais simples do que a decapitação.
Com efeito, mesmo conseguindo suster a respiração debaixo de água por largos minutos, a privação de oxigénio no cérebro de Wolverine acabaria por induzir a morte celular. Nesse cenário, o seu fator de cura serviria apenas para prolongar-lhe a agonia.
A presença de metal no organismo de Wolverine, torna-o também extremamente vulnerável a ataques magnéticos. Ninguém soube explorar melhor essa sua fraqueza do que Magneto quando lhe arrancou o esqueleto de adamantium, quase matando-o no processo.
O próprio adamantium pode, de resto, virar-se contra Wolverine. Se o seu fator de cura falhar ou for desabilitado por tempo suficiente, o envenenamento causado pelo metal poderá custar-lhe a vida. É, pois, caso para dizer que aquilo que o mata também o torna mais forte.

Afogamento é um dos métodos mais simples de matar Wolverine.


Animal feroz

No início dos anos 1970, os super-heróis estavam novamente em alta no Canadá, cuja indústria dos comics colapsara no pós-guerra. Ansioso por explorar o gigantesco mercado do Grande Vizinho do Norte, Roy Thomas, editor-chefe da Marvel, incumbiu Len Wein, argumentista do Hulk, de criar um coadjuvante canadiano para uma história do Golias Esmeralda.
Thomas tinha em mente uma personagem cuja baixa estatura seria inversamente proporcional à sua ferocidade. Características correspondentes a dois dos mamíferos mais comuns na fauna canadiana: o texugo (badger) e o glutão (wolverine). Devido à proximidade fonética com wolf (lobo), a escolha de Thomas incidiu sobre o segundo. Curiosamente, menos de uma década depois Mike Baron criaria, para a defunta Capital Comics, um pastiche de Wolverine chamado Badger.

Pequeno e feroz, o glutão é também conhecido como carcaju.

Chamado a conceber o visual de Wolverine, John Romita, diretor artístico da Marvel, apetrechou-o com garras retráteis, originalmente acopladas às luvas do seu uniforme. Embora tenha feito a sua primeira aparição no último painel de The Incredible Hulk #180, foi só no número seguinte que os leitores viram Wolverine em ação. À primeira vista, tratava-se apenas de outra personagem genérica sem história de fundo. Ninguém - nem os próprios autores - poderia, pois, imaginar o fulgurante destino que lhe estava reservado.
Ao longo da história em questão, Wolverine gabava-se constantemente da letalidade das suas garras de adamantium, que quase ninguém sabia o que era (ver Miscelânea). Ademais, a palavra "mutante" era ainda estranha ao vocabulário de muitos leitores, pelo que esta sua primeira aparição foi insuficiente para classificá-lo como herói ou vilão. Essa ambiguidade moral seria, aliás, uma das chaves para o vindouro sucesso de Wolverine.

Alguns dos esboços iniciais de John Romita para o visual de Wolverine.

Perante a reação positiva dos fãs, Roy Thomas acelerou o relançamento dos X-Men, que vinha preparando já há algum tempo. A hipotética inclusão de Wolverine na nova formação internacional da equipa era agora ponto assente.
Wolverine só voltaria, assim, a dar um ar da sua graça em Giant Size X-Men #1, edição histórica que, em maio de 1975, apresentou ao mundo a iteração moderna dos Filhos do Átomo. Apesar de a arte interior ter ficado a cargo de Dave Cockrum, foi o veterano Gil Kane quem desenhou a respetiva capa. Descontente com a máscara que Romita criara para Wolverine, Kane tomou a liberdade de modificá-la, ampliando-lhe as hastes laterais. Visual distinto que, tal como o penteado diabólico de Logan, se tornaria uma das imagens de marca da personagem.
Apesar da estreia auspiciosa na revista do Hulk, Wolverine foi inicialmente ofuscado pelos outros X-Men. Arrogante e truculento, gerava tensões no grupo e estava longe de ser benquisto pelos leitores. O próprio escriba de Uncanny X-Men, Chris Claremont, antipatizava com Logan e chegou mesmo a ponderar eliminá-lo.

O regresso de Wolverine em Giant Size X-Men #1 (1975).

A roda da fortuna de Logan recomeçou a girar com a chegada de John Byrne. Também ele cidadão naturalizado da Terra do Xarope de Ácer, Byrne bateu-se pela continuidade do seu compatriota, modelando a sua versão de Wolverine no ator Paul D'Amato no filme Slap Shot (1977). Isto apesar de ter sido Dave Cockrum o primeiro a desenhar Logan desmascarado, apresentando-o como um homem de meia-idade hirsuto e de olhar penetrante.
Sob o virtuoso lápis de Byrne (que era, também, coargumentista), Wolverine passou de mal-amado a coqueluche. A sua crescente importância nos X-Men exigia que fosse levantado o véu que ainda cobria a sua origem. Se a proposta de Claremont tivesse vingado, Wolverine seria um filhote de glutão transformado em humano por meio da bioengenharia do Alto Evolucionário. Uma bizarria que mereceu a rejeição epidérmica do próprio Stan Lee.
Antes de trocar a Marvel pela DC, a meio da década de 80, Byrne criou um novo uniforme para Wolverine, em tons de castanho e laranja, e apresentou a sua própria origem da personagem. Nesta versão (nunca publicada), Wolverine era o filho de Dentes-de-Sabre e o seu esqueleto fora revestido com adamantium porque o fator de cura mutante não funcionava nos seus ossos.

Paul D'Amato serviu de modelo ao Wolverine de John Byrne.

Em 1988, já depois de ter protagonizado duas aclamadas minisséries ambientadas no Japão, Wolverine tornou-se o primeiro mutante a ter a sua própria revista mensal. A reboque da sua popularidade, na década seguinte multiplicar-se-iam os títulos estrelados pelos X-Men e seus derivados. Um autêntico boom de mutantes que teve o seu culminar mediático com a chegada dos X-Men ao cinema em 2000.
Wolverine teve, por fim, o seu passado revelado em Origin, minissérie lançada em 2001 que revisitava os verdes anos do mais famoso dos X-Men, trazendo à luz factos surpreendentes.(ver texto seguinte).
Se é verdade que Wolverine deve boa parte do seu sucesso aos X-Men, a recíproca não é menos verdadeira. Chris Claremont sempre definiu Wolverine como uma personagem universal e atemporal, a encarnação moderna do aventureiro arquetípico que existiu em todas as épocas e lugares. Ao enlaçar a história de Logan com a do Japão feudal, Claremont transformou-o num samurai fracassado para quem a honra é tudo, ao mesmo tempo que deseja secretamente uma morte graciosa. Tantas vezes marcado para morrer, Wolverine é no entanto difícil de matar e promete andar por cá ainda por muitos e bons anos.

Wolverine foi o primeiro mutante a ter revista própria, em 1988.


Memórias mutiladas

Marcado por tragédias, traições e manipulações, o passado de Wolverine é ainda um quebra-cabeças incompleto onde ele tenta, a custo, encaixar as suas memórias mutiladas. Sem registo conhecido da sua data de nascimento e com a longevidade expandida pelo seu fator de cura mutante, ninguém sabe ao certo há quanto tempo caminha ele pelo mundo. Apenas que os seus passos deixam sempre um rasto de sangue e morte.
Durante muito tempo conhecido apenas como Logan, sabe-se agora que James Howlett é o nome batismal de Wolverine. Cuja misteriosa vida terá principiado algures na penúltima década do século XIX em Cold Lake, na província canadiana de Alberta.
Apesar de ter sido perfilhado em bebé por John Howlett, um abastado proprietário agrícola, James é na verdade o filho ilegítimo da sua esposa Elizabeth com Thomas Logan, o caseiro da herdade familiar. Frágil e com várias alergias, o pequeno James passou os primeiros anos de vida trancafiado em casa. À saúde precária somava-se a indiferença da mãe, ainda emocionalmente devastada pela morte súbita do primogénito.
Certo dia, uma menina irlandesa chamada Rose foi trazida para ser amiga e cuidadora de James. Os dois logo se tornaram inseparáveis, oferecendo também a sua amizade ao outro filho de Thomas Logan, conhecido simplesmente como Cão (presumivelmente, o futuro Dentes-de-Sabre).

Dias felizes do pequeno James Howlett.

As três crianças cresceram juntas até ao dia em que o Cão, ressentido pelos abusos do seu pai alcoólico, tentou violar Rose. Na esteira desse incidente, Thomas Logan e o filho foram expulsos da herdade. Antes de partir, Logan, tentou, porém, forçar Elizabeth a acompanhá-lo. Da violenta refrega que se seguiu resultou a morte de John Howlett, baleado à queima-roupa por Logan.
O choque de testemunhar o assassínio do pai desencadeou a primeira manifestação dos poderes mutantes de James. Com a fúria a revirar-lhe as entranhas, o rapaz, qual fera selvagem, usou as garras que lhe afloraram das mãos para estraçalhar Logan e desfigurar o rosto do Cão.
Profundamente transtornada, Elizabeth usou a arma do ex-amante para tirar a própria vida e acrescentar mais uma conta ao rosário de desgraças que seria a vida de James.
Depois de uma fuga alucinada que os levou até à Colúmbia Britânica, James e Rose instalaram-se numa pedreira, na esperança de lá poderem viver em paz. Sabendo que a polícia andava no encalço de James, Rose rebatizou-o de Logan. Já os colegas de James, divertidos com a obstinação com que ele escavava, alcunharam-no de Wolverine.
Anos mais tarde, quando o Cão reapareceu para ajustar contas, Logan enfrentou-o, acabando por ferir mortalmente Rose com as suas garras. Com o remorso aninhado na alma, Logan abandonou o acampamento e passou uma longa temporada no deserto a viver entre os lobos.
A partir daqui, tudo se torna nubloso. Logan possui várias memórias do período que se seguiu ao seu regresso à civilização - entre elas, a vida como samurai ao serviço do Clã Yashida, no Japão - , ignorando, todavia, se as mesmas são reais ou se lhe foram implantadas durante a sua participação forçada no Programa Arma X.
Logo após a II Guerra Mundial - em que terá combatido pelos Aliados - , Logan foi usado como cobaia nesse projeto militar ultrassecreto do Governo canadiano, que tinha como propósito a criação do assassino perfeito. Submetido a um complexo recondicionamento mental, Logan recebeu memórias falsas e teve o seu esqueleto recoberto com adamantium.

O Programa Arma X transformou Wolverine no assassino perfeito.

Quando, por fim, logrou evadir-se do seu cativeiro, Logan foi recrutado pelo Departamento H, agência federal responsável pela monitorização das atividades meta-humanas em solo canadiano. Na sua primeira missão oficial, Wolverine foi mobilizado para travar a destruição causada pelo Hulk.
Apesar de Logan quase não ter sobrevivido ao confronto com o Gigante Verde, as suas capacidades impressionaram o Professor Charles Xavier. Recrutado para os X-Men - exilados, como ele, da raça humana - Wolverine, ultrapassadas as desconfianças mútuas, encontrou neles a sua nova família. Pela qual já tantas vezes provou estar disposto a matar e a morrer.

Miscelânea

*Devido à sua pequena estatura (mede apenas 1,60m), Wolverine é habitualmente alvo de chacota tanto por parte de amigos como de inimigos. Ironicamente, a sua alcunha mais conhecida referencia o Monte Logan. Chris Claremont pensou que seria engraçado batizar o mais baixinho dos X-Men com o nome da montanha mais alta do Canadá. Indiferente à galhofa, Logan continua a provar que, quando se tem um fator de cura e garras afiadas, o tamanho deixa de ser importante;
*350 dólares. Foi essa a irrisória quantia que a criação de Wolverine, um dos mais valiosos ativos da Casa das Ideias, rendeu a Len Wein. Isto porque a Marvel detém automaticamente os direitos de todas as personagens e conceitos publicados sob a sua chancela. No início dos anos 1990, essa cláusula contratual motivou a debandada de  muitos dos talentos da editora, alguns dos quais fundariam depois a Image Comics;
*Adamantium, o metal fictício virtualmente inquebrável que reforça o esqueleto de Wolverine, é uma liga de aço artificial cuja composição química exata é um dos mais bem guardados segredos do Governo americano. Sabe-se apenas que as suas propriedades únicas não o qualificam para nenhum espaço conhecido na Tabela Periódica de Elementos, e que o seu processo de fabrico, mesmo em quantidades reduzidas, é extremamente dispendioso. Conceito desenvolvido por Roy Thomas e Barry Windsor-Smith, o adamantium foi referenciado pela primeira vez em maio de 1969, no 66º número de Avengers;

Ultron foi o primeiro usuário do adamantium. 

*Chris Claremont foi missionário da ideia de que Apocalipse seria o responsável pela colocação de adamantium no esqueleto de Wolverine. Quando explorou o passado de Logan no Programa Arma X, Barry Windsor-Smith introduziu, por isso, uma figura misteriosa que atuava nos bastidores e cujas ordens eram obedecidas pelo Professor Truett Hudson. Tratou-se, porém, de um cortesia profissional de Windsor-Smith, a quem o envolvimento de Apocalipse na origem de Wolverine não agradava particularmente;
*De modo a contornar os detetores de metais nos aeroportos e noutras instalações de alta segurança, Logan é portador de um certificado médico informando da sua condição de veterano de guerra com uma placa de platina na cabeça;
*Um estudo realizado em 2013 pela Universidade da Colúmbia Britânica compara o fator de cura mutante de Wolverine à capacidade do axolote regenerar membros perdidos. Os cientistas deram, por isso, o nome de Howlett à nova proteína descoberta em amostras de tecidos desse pequeno anfíbio aparentado com as salamandras;
*Até então inseparável do seu charuto, Wolverine desistiu de fumar quando, em 2001, Joe Quesada foi promovido a editor-chefe da Marvel. Quesada, cujo avô, fumador inveterado, sucumbira a um cancro no pulmão, proibiu os artistas da editora de desenharem cigarros e afins. Na senda desse fundamentalismo antitabágico, algumas capas antigas em que Logan surgia a fumar foram digitalmente retocadas;
*De Badger (First Comics) a Ripclaw (Image), passando por Bloodshot (Valiant), é difícil enumerar todos os pastiches, mais ou menos óbvios, de Wolverine. Também ele foi, no entanto, inspirado numa personagem preexistente: Lobo Cinzento, da Legião dos Super-Heróis. Às inegáveis semelhanças visuais, acresce a circunstância de ambos terem sido infundidos com um metal exótico (zuunium, no caso do seu congénere da DC);

Lobo Cinzento foi criado exatos 10 anos antes de Wolverine.

*No Universo Amálgama, Wolverine foi fundido com Batman, originando o Garra das Trevas (Dark Claw. em inglês). A sua história de fundo combinava igualmente elementos retirados das origens das duas personagens: ainda criança, Logan Wayne testemunhara o assassínio dos seus pais e, em adulto, fora recrutado para o Programa Arma X. Na sua campanha em prol da justiça, Garra das Trevas era adjuvado por uma adolescente chamada Pardal (mescla de Robin e Jubileu) e tinha no sádico Hiena (híbrido Joker / Dentes-de-Sabre) o seu arqui-inimigo;
*Um dos super-heróis mais populares em todo o mundo, em 2008 Wolverine encabeçava a lista das 200 melhores personagens dos comics divulgada pela revista Wizard. Por conta da sua presença maciça nos quadradinhos (12912 aparições registadas até março deste ano), Wolverine é a terceira personagem mais publicada de todos os tempos, atrás  apenas de Batman e Super-Homem. Note-se, no entanto, que o histórico de publicação dos dois primeiros classificados teve início no final da década de 1930;
*Ao lado dos X-Men, Wolverine fez a sua estreia no segmento audiovisual em 1982, num episódio da 2ª temporada de Spider-Man and His Amazing Friends, intitulado "A Fire-Star is Born". Entre 2000 e 2017, foi interpretado no cinema pelo australiano Hugh Jackman, que, a despeito do ceticismo inicial dos fãs, se tornou o ator que durante mais tempo deu vida a um super-herói. 

Hugh Jackman interpretou Wolverine em seis filmes, três dos quais a solo.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Artigos sobre Roy Thomas, John Byrne, Dentes-de-Sabre, X-23 e X-Men, o filme  disponíveis para leitura complementar.



30 julho 2022

GALERIA DE VILÕES: RA'S AL GHUL


   A sua origem e nome verdadeiro perderam-se na noite dos tempos. Qual messias negro numa cruzada genocida, continua a regressar dos mortos para purgar a Terra do vírus da corrupção humana. No Batman encontrou um adversário digno e o tão desejado herdeiro para o seu império de sombras.

Denominação original:
 Ra's al Ghul
Editora: DC
Criadores: Julius Schwartz (nome e conceito), Dennis O'Neil (história) e Neal Adams (arte conceptual)
Estreia: Batman Vol.1 #232 (junho de 1971)
Identidade civil: Desconhecida
Espécie: Humano
Local de nascimento: Algures no Deserto Arábico
Parentes conhecidos: Sensei (pai); Sora (primeira esposa, falecida); segunda esposa não identificada (falecida); Melisande (terceira esposa, falecida); Nyssa Raatko (filha, falecida); Talia al Ghul (filha); Dusan al Ghul (filho, falecido); Bruce Wayne/Batman (ex-genro); Damian Wayne/ Robin V (neto)
Ocupação: Magnata e ecoterrorista internacional.
Base de operações: Ra's al Ghul possui dezenas de covis secretos em latitudes tão diferenciadas como os Alpes suíços ou os Himalaias. Cada um deles coincide com a localização de um Poço de Lázaro, sendo esse o motivo da sua itinerância compulsiva.
Afiliações: Líder e fundador do Demónio e da Liga de Assassinos.
Némesis: Batman
Poderes e parafernália: Ninguém - talvez nem mesmo o próprio- sabe ao certo há quanto tempo Ra's al Ghul caminha sobre a Terra. Mas a História da Humanidade seria decerto muito diferente sem a sua interferência. Como um maestro invisível, ele triunfa manipulando as suas orquestrações. As suas aparições são raras, mas cada uma é mais impactante do que a anterior.
Estrategista magistral, Ra's comandou exércitos em batalhas decisivas, ordenou assassinatos políticos e conspirou nos bastidores para alterar o curso de acontecimentos cruciais. Entre as suas façanhas mais notáveis, colocou em marcha a catastrófica cadeia de eventos que culminou na Grande Guerra. Ao desencadear uma conflagração à escala mundial, esperava conseguir fazer regredir a Humanidade à era pré-industrial, poupando a Terra aos efeitos da poluição. Em tempos mais recentes, lançou um mortífero vírus geneticamente modificado em Gotham City e derrotou a Liga da Justiça recorrendo aos planos de contingência elaborados secretamente pelo Batman com base nas principais vulnerabilidades dos seus membros.
Tudo isto só foi possível graças aos Poços de Lázaro, fontes místicas com propriedades regenerativas únicas. O líquido esverdeado de composição desconhecida que delas brota consegue cicatrizar instantaneamente ferimentos graves, doenças terminais e até reverter mortes recentes. Além de ter tido a sua longevidade expandida pelo Poço de Lázaro (assim chamado em referência à figura bíblica ressuscitada por Jesus Cristo), Ra's já perdeu a conta às vezes que se ergueu de entre os mortos.

O Poço de Lázaro tornou Ra's al Ghul imortal.

Ao longo dos séculos, Ra's al Ghul acumulou vastíssima riqueza, conhecimento e poder, dispondo, por conseguinte, de recursos praticamente ilimitados, incluindo um exército de seguidores fanatizados que o veneram como um messias. Ra's especializou-se também em diferentes campos de estudo, tanto científicos como esotéricos. O seu perfeito domínio da Microbiologia, por exemplo, permite-lhe modificar vírus em laboratório para originar epidemias ou pandemias.
Em várias ocasiões, Ra's demonstrou ser capaz de transferir a sua alma para os corpos de outras pessoas, assegurando assim a própria sobrevivência, mesmo quando não tem acesso ao Poço de Lázaro. Os pormenores exatos desse processo afiguram-se, porém, inconsistentes: tanto pode envolver um complexo ritual místico como pode ser apenas necessário o contacto direto de Ra's com o seu futuro hospedeiro.
Séculos de treino e experiência fizeram de Ra's um espadachim sem igual. Gaba-se mesmo de ter ensinado o manejo da espada aos mestres esgrimistas das primeiras academias europeias e de ter sobrevivido aos círculos de duelos cossacos.  Quando em combate, prefere armamento antigo - sabres, cimitarras, lanças... - ainda que seja igualmente proficiente com armas de fogo e outro material bélico moderno. 

Batman e Ra's al Ghul num duelo mortal sob o sol do deserto.

Além de ser mestre em diversas artes marciais, Ra's possui as aptidões físicas de um atleta olímpico e tem a sua força e reflexos ampliados a nível sobre-humano logo após cada mergulho no Poço de Lázaro. Apesar disso, raramente consegue levar de vencida o Batman num mano a mano. Na maior parte das vezes, os dois contendores acabam por sucumbir à exaustão e o combate termina empatado.
Mas nem só no plano físico Ra's pede meças ao Cavaleiro das Trevas. Com poder de fogo intelectual superior ao do seu némesis, a Cabeça do Demónio consegue frequentemente ocultar o seu envolvimento nos acontecimentos em curso até ser demasiado tarde.
Profeta aos olhos de uns, terrorista aos olhos de outros, Ra's al Ghul vê-se a si mesmo como um artista. A sua visão é a de uma Terra tão limpa e pura como uma montanha nevada ou o deserto de areias escaldantes que, incontáveis eras atrás, lhe serviu de berço. Claro que, para isso, terá primeiro de fazer correr rios de sangue...

Fraquezas: Apesar de os Poços de Lázaro garantirem semi-imortalidade aos seus usuários, essa dádiva tem um custo. Ao dar vida, o poço também tira vida. De cada vez que Ra's al Ghul se banha nas suas águas milagrosas fica mais próximo da morte que não pode ser revertida. Adicionalmente, o poço deixa-o temporariamente enlouquecido, tornando as suas ações erráticas e violentas. Numa dessas ocasiões, séculos atrás, Ra's matou acidentalmente a sua segunda esposa.
Mesmo tendo plena consciência dos efeitos perniciosos do Poço de Lázaro na sua saúde física e mental, Ra's não consegue deixar de usá-lo. Como se de uma potente droga se tratasse, o poço é extremamente viciante. Quanto mais Ra's o usa mais viciado fica. Ao fim de mais de 700 anos de (ab)uso, ele simplesmente não consegue parar.
No que ao Batman especificamente diz respeito, a principal fraqueza de Ra's al Ghul radica no profundo amor de Talia pelo herói. Nem um coração empedernido como o seu é totalmente insensível aos sentimentos da filha. Por outro lado, o desejo de Ra's de fazer do Cavaleiro das Trevas seu sucessor leva-o muitas vezes a poupar a vida àquele que sabe ser o seu mais formidável inimigo.

O Poço de Lázaro deixa Ra's al Ghul temporariamente ensandecido.


Vilão sui generis

Com a Guerra do Vietname num impasse e o martírio de profetas da esperança, como Martin Luther King, a década de 1970 alvoreceu nublada e com o Sonho Americano ligado às máquinas. Contagiados pelo espírito do tempo, os leitores do Batman naturalmente já não se identificavam com a versão kitsch do herói que marcara a década pregressa, e que tivera na série televisiva do Homem-Morcego com Adam West o seu maior expoente mediático. Resultando disso a imperiosa necessidade de adaptar as histórias do Homem-Morcego aos novos tempos. Tarefa que, no entendimento do então editor dos títulos do Batman, Julius Schwartz, requeria um escritor arrojado e um artista consagrado.
Depois da revolucionária passagem de Dennis O'Neill e Neal Adams por Green Lantern/Green Arrow, Schwartz sabia serem eles os homens certos para restaurar o apelo do Cavaleiro das Trevas junto do público, e tratou de reunir novamente a dupla-maravilha.

Julius Schwartz (1915-2004)  foi o editor que adaptou Batman aos novos tempos.

Se Adams já havia emprestado o seu traço dinâmico e realista a The Brave and the Bold, O'Neill, no seu primeiro contacto com Batman, não se fez rogado em introduzir uma série de alterações importantes na vida da personagem. Para além do tom mais melancólico das tramas, essas mudanças passaram pela ida de Dick Grayson para a Universidade de Hudson (separando, assim, a Dupla Dinâmica), e por levar Bruce Wayne e Alfred a trocarem a Mansão Wayne por uma luxuosa cobertura no centro de Gotham City. A mais importante dessas mudanças foi, porém, o surgimento de um novo inimigo do Cavaleiro das Trevas. Um inimigo a vários títulos diferente, porquanto a lógica das suas ações o faziam divergir do arquétipo vilanesco. Sem uniformes vistosos, superpoderes ou bugigangas tecnológicas, mas com os meios, a motivação e o intelecto que lhe permitiam afirmar-se como uma terrível ameaça à segurança global.
Por sugestão de Schwartz, o novo vilão foi crismado como Ra's al Ghul, expressão de origem árabe que significa "cabeça do demónio". E que referencia, também, a estrela Algol, à qual diversos povos da Antiguidade atribuíam uma influência nefasta nos destinos do mundo. Uma escolha deveras apropriada olhando ao escopo dos planos de Ra's al Ghul. 
Desde a sua entrada em cena, em Batman #232 (junho de 1971), que Ra's al Ghul demonstrou ser um vilão sui generis. Desde logo por ter sido ele o primeiro inimigo do Homem-Morcego a deslindar a identidade secreta do herói. Mas, sobretudo, pelo facto de ser um homem sem idade a quem não se aplicam as leis do tempo, uma vez que o Poço de Lázaro o tornou virtualmente imortal. Vive, ademais, obcecado com a ideia de transformar o mundo decadente que o rodeia numa utopia sem crime nem poluição. Missão que encara como sagrada e que deseja cumprir a todo o custo, independentemente dos milhões de vidas humanas que seria preciso sacrificar para tornar o seu sonho realidade.


Batman #232 (1971) introduziu
 um novo e perigoso inimigo do Cavaleiro das Trevas.

Alguns terão porventura visto no nome de origem árabe e no recurso ao terrorismo como instrumento para impor as suas crenças uma pouco subtil alusão ao fundamentalismo islâmico. Esta é, contudo, uma interpretação abusiva, visto, que, à época, o jihadismo era um movimento mais inorgânico, ainda desprovido de um líder carismático e facilmente identificável, como o foi este século Osama bin Laden.
Com efeito, a principal fonte de inspiração para Ra's al Ghul foi o Dr. Fu Manchu, vilão da literatura pulp criado, em 1913, por Sax Rohmer. Além da origem asiática, remetendo para o Perigo Amarelo tão em voga nos anos 1930, ambos são génios científicos em cruzada para moldar o mundo aos seus ideais; ambos dispõem de exércitos particulares (Liga de Assassinos e Si-Fan) e ambos têm filhas belas e perigosas (Talia al Ghul e Fah Lo Suee) que se envolvem romanticamente com os arqui-inimigos dos seus diabólicos pais (Batman e Sir Dennis Nayland Smith). Outra possível influência visual terá sido o Imperador Ming, das tiras clássicas de Flash Gordon.
Em todo o caso, a aparência de Ra's al Ghul foi da inteira responsabilidade de Neal Adams. O artista empenhou-se em tornar a personagem facilmente reconhecível, mesmo sem os paramentos coloridos da praxe. Nesse sentido, desenhou Ra's com a testa larga, bigode à mandarim e sem sobrancelhas, para lhe acentuar o olhar penetrante.

Expoente do Perigo Amarelo, o Dr. Fu Manchu serviu de modelo a Ra's al Ghul.

Ra's al Ghul possui ainda outras características que o fazem funcionar como um verso solto na galeria de vilões do Batman. Sem veio maligno, movem-no ideais nobres, embora potencialmente genocidas. Tudo o que ele deseja é um mundo melhor em que os humanos vivam em comunhão com a Mãe Natureza, ao invés de depredá-la. Em certa medida, ele foi um pioneiro do ativismo ambiental, que alertou para os perigos da industrialização acelerada e do crescimento exponencial da população. Como os homens não lhe deram ouvidos, ele resolveu puni-los pela lenta destruição do planeta.
No fundo, Ra's al Ghul representa o reverso extremista do Batman. Com quem, aliás, mantém uma dialética em tudo semelhante à do Professor X com Magneto. Ele faz tudo o que o Batman deseja fazer, mas, ao contrário dele, não se deixa condicionar por um código moral. Ra's não faz prisioneiros e não tem escrúpulos em matar por aquilo que acredita ser o bem maior. Ambos sonham erradicar o Mal do mundo, mas apenas Ra's está disposto a tudo para alcançar esse desígnio.
Por tudo isto e muito mais, Ra's al Ghul ocupa lugar de destaque na extensa galeria de vilões do Homem-Morcego, disputando ao Joker o estatuto de verdadeiro némesis do herói.

Para alguns, Ra's al Ghul é o verdadeiro némesis do Batman.


A Cabeça do Demónio

O homem que o mundo aprendeu a temer como Ra's al Ghul terá nascido há mais de 700 anos num dos vastos desertos da Península Arábica, no seio de uma tribo nómada presumivelmente originária da China. Junto com o seu coração outrora bondoso, o seu nome batismal ficou para sempre soterrado pelas areias do tempo.
Fascinado, desde os seus verdes anos, pela Ciência, Ra's trocou a vida no deserto pela vida na cidade, onde poderia iniciar os seus estudos. Era já um médico renomado, habituado a distribuir sentenças de vida, quando conheceu Sora, o amor da sua vida que desposaria logo depois.
A viver uma breve etapa de felicidade conjugal, Ra's fez uma descoberta que lhe mudaria para sempre a vida: o Poço de Lázaro. Cujas propriedades milagrosas usou para salvar a vida de um príncipe moribundo, filho do sultão que governava a cidade onde ele e Sora moravam. Sem que Ra's o soubesse, o príncipe era na verdade um tiranete que tratava os seus súbditos com grande crueldade.
Ato contínuo à sua ressurreição pelo Poço de Lázaro, o príncipe, completamente fora de si, estrangulou Sora até à morte. Ra's clamou ao sultão por justiça, mas este, para proteger o filho, culpou-o pelo crime e condenou-o a um sórdido calvário. No meio do deserto, trancado numa jaula com o cadáver em decomposição de Sora, Ra's foi deixado para morrer à fome e à sede.


Acusado de um crime que não cometeu,
 o jovem Ra's foi condenado a uma morte agonizante.

Antes que isso acontecesse, Ra's foi no entanto libertado por Huwe, o filho de uma anciã a quem ele mitigara o sofrimento no seu leito de morte. Acompanhado pelo mancebo, Ra's regressou à sua tribo em busca de auxílio para levar a cabo a sua vingança. O tio de Ra's, que agora liderava o clã, concordou em lavar a honra do sobrinho com sangue.
Compreendendo a teoria dos germes causadores de doenças centenas de anos antes de qualquer outro cientista, Ra's logrou infetar o príncipe com um vírus mortal enviando-lhe luxuosos tecidos contaminados. Quando o desesperado sultão lhe implorou que curasse novamente o filho, Ra's matou ambos, sem dó nem piedade. Em seguida, ordenou à sua tribo que arrasasse a cidade e massacrasse todos os seus habitantes.
De entre as ruínas fumegantes juncadas de corpos dilacerados, ergueu-se naquele infausto dia a Cabeça do Demónio. Que, desde então, não mais deixou de sombrear de medo as almas dos homens.
Tornado imortal pelo Poço de Lázaro, Ra's passou os séculos seguintes a viajar pelo mundo, tendo Huwe e o tio - também eles imortais - como companheiros nessa longa jornada. Pouco tempo depois de o trio ter assentado arraiais em Londres, Ra's surpreendeu Huwe a escrever as próprias memórias na sua língua materna. Uma inaceitável transgressão que poderia expor ao mundo os segredos da Cabeça do Demónio.
Durante uma batalha da Guerra dos Cem Anos, Ra's matou Huwe e regressou a Londres. Apenas para descobrir que o seu tio havia desparecido, levando consigo os manuscritos do rapaz. Mercê dessa traição familiar (a primeira de muitas), a Cabeça do Demónio passou a exigir devoção cega aos seus seguidores, dispostos a matar e a morrer em seu nome.
Agora um viajante solitário, Ra's contemplou de perto a pior face da Humanidade. Ao longo dos séculos, assistiu de camarote à ópera de horrores que é a História Mundial: uma interminável sucessão de guerras, revoluções e genocídios. Viu como o poder corrompe o coração dos homens, e como estes brutalizam a Mãe Natureza.
Por conta de tudo isto, Ra's começou a desprezar profundamente os seus semelhantes, comparando-os a uma praga que parasita a Terra. Exterminá-la seria, pois, a sua missão sagrada. Mas ele sabia que não poderia cumpri-la sozinho.
Sem nunca parar de acumular riqueza, conhecimento e poder, Ra's al Ghul usou os seus imensos recursos para fundar o Demónio. Uma organização secreta que conspirava nas sombras para restaurar a pureza e harmonia da Terra, diminuindo drasticamente o seu número de habitantes. Dela emanou posteriormente a Liga de Assassinos (ver Miscelânea), cujo objetivo primordial consiste em liquidar os inimigos do Demónio.

Ra's al Ghul fundou a Liga de Assassinos.

À cabeça do seu próprio exército, Ra's pôde, enfim, colocar em prática a sua visão distorcida de justiça. Essa sinistra mistura de darwinismo social e ecoterrorismo fizeram dele uma espécie de extremista bem intencionado, mas nem por isso menos perigoso.
Ra's al Ghul já contava séculos de vida e carregava milhares de mortes na consciência aquando do seu primeiro encontro com o Batman. Este teve lugar pouco tempo depois de o Cavaleiro das Trevas salvar a vida de Talia. Ao saber a filha perdida de amores pelo enigmático campeão de Gotham City, Ra's resolveu investigá-lo. Depressa deduziu que somente Bruce Wayne disporia dos recursos necessários para financiar a sofisticada logística do Batman. Ao invés de divulgar essa informação, preferiu no entanto guardar segredo.
Mais tarde, Ra's engendrou um plano para testar as capacidades do herói. Encenou o rapto de Talia e Dick Grayson e procurou a ajuda de Batman para resgatá-los. A farsa foi, contudo, rapidamente desmontada pelo maior detetive do mundo.
Impressionado com o caráter e as capacidades intelectuais de Bruce Wayne, Ra's ofereceu-lhe o comando da Liga de Assassinos e a mão de Talia. Perante a dupla recusa do herói, Ra's acusou-o de ser o guardião da Sodoma moderna e jurou destruir Gotham.
Nascia assim uma das mais fascinantes rivalidades do Universo DC. Entre Batman e Ra's al Ghul é mais aquilo que os une do que aquilo que os separa. Ambos foram moldados pela tragédia, partilham o mesmo desiderato, admiram-se mutuamente e disputam a lealdade de Talia, cujo coração balança dolorosamente entre o pai e o homem que ama.
Sempre que uma civilização atinge o seu pináculo de decadência, a Cabeça do Demónio ressurge para restaurar o equilíbrio. Depois de ter incendiado Londres e de ter lançado a Peste Negra na Europa, qual será o próximo alvo da sua ira? Seja ele qual for, Ra's sabe que o Cavaleiro das Trevas tudo fará para lhe frustrar os planos.

A Cabeça do Demónio continua a engendrar novos planos genocidas para purgar a Terra.

Miscelânea

*Embora de etimologia árabe, a pronúncia oficial de Ra's al Ghul - Reysh al Gool - é hebraica. Na base desta opção poderá ter estado a proximidade fonética com o vocábulo "resh" que, em Hebreu, significa "chefe" ou "cabeça". Outra possibilidade é ter-se tratado de um subterfúgio da DC para realçar as raízes multiétnicas e multiculturais da personagem;
*Ra's al Ghul faz-se sempre acompanhar de Ubu, um gigante carrancudo que, além de guarda-costas, é também o seu servo mais leal. Na verdade, Ubu não é um nome, mas sim um título atribuído aos homens mais fortes e valentes de um antigo clã do deserto. À luz de cuja tradição servir a Cabeça do Demónio é a maior honra a que qualquer um dos seus membros pode aspirar;

Ubu segue o seu mestre como uma sombra.

*Também conhecida como Liga das Sombras, Sociedade de Assassinos ou Presa do Demónio, a Liga de Assassinos é uma fação do Demónio, a primeira organização secreta fundada, vários séculos atrás, por Ra's al Ghul. Pelas suas fileiras passaram alguns dos mais eficientes e desapiedados assassinos de diferentes épocas, incluindo o mestre arqueiro Merlyn e Lady Shiva (arqui-inimigos, respetivamente, do Arqueiro Verde e da Canário Negro). A partir de uma análise minuciosa dos seus relatórios anuais de atividades, Tim Drake (o terceiro Robin) calculou que a Liga de Assassinos matará a cada mês uma centena de pessoas em todo o mundo. Os métodos, hierarquia e fanatismo dos seus membros evocam a Hashshashin, uma lendária ordem de assassinos fundada na Pérsia no ano 1090 d.C. e que, ao longo dos dois séculos seguintes, expandiu a sua sangrenta influência ao resto do Médio Oriente. Especializada em assassinatos políticos, designadamente de líderes cristãos, era comandada por um misterioso Velho da Montanha, cuja verdadeira identidade permanece um mistério até aos dias de hoje;
*Apesar de se arvorar em defensor dos valores e tradições familiares, Ra's al Ghul foi sempre um pai abusivo. Depois de Nyssa Raatko, a sua filha mais velha, ter desertado da Liga de Assassinos para levar uma vida normal, Ra's deixou-a para morrer num campo de concentração nazi. Por sua vez, Talia, a sua filha favorita, foi submetida, praticamente desde o berço, a uma série de duríssimas provações físicas, mentais e emocionais, para se provar uma digna herdeira do pai. Apesar de a jovem as ter superado a todas sem nunca demonstrar fraqueza, Ra's, o mais antigo dos misóginos, continua a desejar ardentemente um varão para lhe suceder. No entanto, também Dusan, o seu único filho conhecido, foi considerado um herdeiro inadequado, em virtude de ter nascido albino e com uma saúde frágil. Perante estes fracassos filiais e a irredutível recusa do Batman em assumir o controlo do seu império das sombras, Ra's encara agora o seu neto, Damian Wayne (fruto do casamento anulado de Talia e Bruce Wayne), como o candidato ideal para a função;

A prole do Demónio: Talia al Ghul, Nyssa Ratko e Dusan al Ghul.

*Em sinal de deferência e admiração pelas capacidades intelectuais de Bruce Wayne, Ra's al Ghul trata-o sempre por "Detetive", nunca por "Batman" (que considera um simples disfarce). De igual modo, trata o Super-Homem por "Ícone", reconhecendo-o como um símbolo de esperança para o mundo;
*No universo paralelo da Amalgam Comics (iniciativa editorial conjunta Marvel/DC, nos anos 1990), Ra's al Ghul foi fundido com o vilão dos X-Men  Apocalipse, dando origem ao poderoso Ra's Al-Pocalypse;
*Ra's al Ghul surge em 7º lugar na lista dos cem maiores vilões dos comics, divulgada em 2011 pelo site IGN. É, de resto, um dos expoentes de malignidade da DC mais bem cotados, apenas atrás de Darkseid (6º), Lex Luthor (4º) e Joker (2º);
*Emitido em novembro de 1992, o 50º episódio de Batman: The Animated Series marcou a estreia de Ra's al Ghul no segmento audiovisual. Off Balance era baseado no arco de histórias que, duas décadas antes, apresentara a Cabeça do Demónio aos leitores do Homem-Morcego. Foi, no entanto, a participação de Ra's em Batman Begins (2005) a dar-lhe verdadeira ressonância mediática. Depois de ter sido interpretado por Liam Neeson naquele que foi o capítulo inaugural da trilogia cinematográfica do Cavaleiro das Trevas, em 2013, o vilão fez a sua primeira aparição live action no pequeno ecrã, agora vivido pelo australiano Matthew Nable na terceira temporada de Arrow.

As muitas faces de Ra's al Ghul no pequeno e grande ecrã.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Artigos sobre Talia al Ghul, Neal Adams e Dennis O'Neill disponíveis para leitura complementar.