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20 setembro 2023

ETERNOS: BOB KANE (1915-1998)

 
  Imortalizou-se como autor único do Batman mantendo o seu parceiro criativo perpetuamente na penumbra. Apesar da sua imensurável importância para a cultura popular, tem o seu legado contestado. Visionário ou charlatão, o criador plástico do Maior Detetive do Mundo é ainda um enigma por resolver.

Desde a sua estreia, já lá vão quase 85 anos, Batman conquistou os corações e as mentes de sucessivas gerações, sendo a sua popularidade transversal a todas elas. Surgido nos anos terminais da Grande Depressão, o Cruzado Encapuzado foi a resposta ao desejo de justiça de todos quantos sofriam com a dor da perda.
Do cinema aos jogos de vídeo, Batman foi adaptado a todos os segmentos culturais, tornando-se um ícone global e uma das franquias mais lucrativas de sempre. Muitos consideram, no entanto, que o maior vilão da história do Cavaleiro das Trevas não é o Joker, tão-pouco Ra's al Ghul, mas sim o seu próprio criador.
Apesar de ter dado ao mundo um dos seus maiores heróis, Bob Kane teve uma relação difícil com a verdade e com a ética. Colecionou polémicas aguerridas e recusou sempre dividir os louros da sua maior criação, tornando-se assim uma das figuras mais incompreendidas da 9ª Arte. Alguns dos seus detratores vão ainda mais longe, colando-lhe o selo pesado de fraude.
Essa perceção negativa relativamente a um dos maiores titãs da indústria dos comics assenta, parcialmente, em equívocos e ideias feitas. Todas as histórias têm dois lados, e esta não foge à regra. Importa, por isso, reexaminar o legado de Bob Kane com a lupa da objetividade. Exatamente como faria o Maior Detetive do Mundo: um delicado exercício de arqueologia forense que permita à História julgar um indivíduo e não a sua caricatura.
Nova-iorquino de gema, Bob Kane nasceu no Bronx a 24 de outubro de 1915, Mas esse não era o seu nome batismal. Primogénito de um casal de imigrantes judeus asquenazes originários da Europa Oriental, na sua certidão de nascimento começou por constar Robert Khan.
O salário do pai, tipógrafo no jornal New York Daily News, proporcionava uma vida confortável à família. Ao contrário de muitas crianças daquela época, Bob teve, por isso, uma infância tranquila e sem privações.
Ainda petiz, Bob descobriu o fascínio pelo desenho e, ao longo de toda a vida, descrever-se-ia como uma rabiscador. Inseparável dos seus lápis de carvão, gostava de desenhar em folhas de papel, panfletos e até em caixas de cereais.
Com apenas dez anos, Bob encontrou a sua vocação profissional: queria ser cartunista. O pai, que conhecia bem a realidade desse ofício, trazia para casa os suplementos dominicais do jornal, para que o filho pudesse decalcar as tiras e outras ilustrações.

Os suplementos dominicais do New York Daily News
levaram Bob Kane a querer ser cartunista.

Sempre encorajado pelos pais, o pequeno Bob continuou afincadamente a aperfeiçoar o seu talento. Sonhava poder, um dia, ganhar a vida a rabiscar. Mal sabia ele que um desses rabiscos o imortalizaria no imaginário popular.
Por vezes, o pai de Bob levava, também, alguns dos desenhos do filho para os cartunistas do jornal avaliarem. Os artistas davam opiniões, dicas e, sobretudo, incentivos. Todos lhe auguravam uma carreira promissora a trabalhar com o lápis.
Mais ainda depois de Bob ter ficado em segundo lugar num campeonato interestadual de desenho. O objetivo da competição era descobrir quem desenhava melhor as tiras Just Kids, da autoria de Gene Byrne. Bob tinha então quinze anos e, pouco tempo depois, começou a vender as suas próprias bandas desenhadas. Uma delas rendeu-lhe os primeiros cinco dólares - quantia apreciável para a época - da imensa fortuna que acumularia ao longo da vida.
Por essa altura já Bob estudava no DeWitt Clinton - o maior liceu dos EUA, famoso pelo seu edifício em forma de H -, onde contraiu estreita amizade com outra futura luminária da 9ª Arte: Will Eisner. Seria, aliás, pela mão do criador de Spirit que Bob daria, anos mais tarde, os primeiros passos na indústria dos comics.
A par do desenho, Bob tinha no cinema outra das suas paixões. Influenciado por ambas, decidiu que queria, afinal, trabalhar no campo da animação. Em 1934, logo após ter concluído o ensino  secundário, Bob foi estagiar para os Estúdios Max Fleischer, que tinham em Betty Boop e Popeye os seus ativos mais valiosos. 

Bob Kane conseguiu o primeiro emprego nos Estúdios Fleischer,
os mesmos que, em 1943, produziram a primeira animação do Super-Homem.

Nos dois anos imediatos, a vida correu-lhe de feição: ao emprego de sonho Bob somou uma bolsa de estudo. Foi graças a ela que pôde estudar Arte na Cooper Union, uma prestigiada universidade privada de Manhattan, conhecida por privilegiar a criatividade dos seus alunos em detrimento da técnica. Ironicamente, Bob Kane ganharia reputação de ser mestre na técnica de se apropriar de ideias de outrem...
Pensando em reforçar a sua imagem como artista, tão-logo atingiu a maioridade Bob contratou um advogado para alterar legalmente o seu nome. O exótico Robert Khan deu assim lugar ao mais familiar Bob Kane. Essa mudança de identidade denota, por outro lado, o pouco apego de Bob à sua herança judaica - de resto, raramente mencionada na sua autobiografia.
Bob Kane ingressou no mundo dos quadradinhos em 1936. Como ilustrador freelancer da Fiction House, ainda nesse ano teve a sua primeira arte publicada, no terceiro número da revista Wow, What a Magazine!. Embora tenha colaborado em outros projetos, o seu maior contributo para a editora de Sheena, a Rainha da Selva foi Hiram Hick, série cómica por ele desenhada e arte-finalizada.

Hiram Hick foi o primeiro trabalho profissional de Bob Kane.

Quando, em 1937, Will Eisner se associou a Jerry Iger para fundar um dos primeiros estúdios que forneciam material às editoras que se aventuravam a publicar histórias aos quadradinhos, Bob Kane aceitou de bom grado o convite do amigo para reforçar a equipa de artistas residentes.
Durante essa fase, o seu trabalho mais notável foi Peter Pupp. Não obstante ser apenas mais uma série protagonizada por animais antropomórficos, destacava-se das demais pelo tom sombrio. Ao serviço da Eisner & Iger, Bob produziu também material para as duas empresas que dariam origem à DC Comics.
Paralelamente a tudo isto, Bob tinha uma vida social muito preenchida. Era habitué em festas, e foi numa delas que conheceu Bill Finger, seu futuro parceiro criativo. Apesar das personalidades contrastantes dos dois jovens (Bob era extrovertido, Bill ensimesmado), unia-os a paixão pelos quadradinhos e pelos filmes.
Finger era, por aqueles dias, um vendedor de sapatos com aspirações literárias, ao passo que Bob era o eterno rabiscador que precisava de alguém que lhe escrevesse as histórias. Os dois tornaram-se amigos e Bob prometeu a Bill um emprego como argumentista. Do casamento criativo de ambos nasceria um dos maiores totens da cultura popular do século XX. Mas, também, uma controvérsia que ainda hoje faz correr rios de prosa.

Em Bill Finger Bob Kane encontrou
 o seu parceiro criativo de excelência. Juntos, criariam um ícone global.
Mas apenas um ficaria para a História

Em 1939, o editor-chefe da National Comics Publications, Vincent Sullivan, procurava uma nova personagem capaz de reproduzir o grandioso sucesso comercial alcançado pelo Super-Homem no ano anterior. Bob Kane chamou a si a difícil missão de, durante um fim de semana, criar outro justiceiro fantasiado capaz de alavancar as vendas da editora.
Depois de passar a noite acordado a rabiscar freneticamente, Bob criou o Bat-Man (era esta a grafia original), muito diferente, contudo, do Homem-Morcego que todos conhecemos. Em vez do traje cinzento com capa e capuz negros, o Bat-Man vestia de vermelho, usava uma mascarilha e tinha um par de asas rígidas acopladas às costas. Este último elemento estético referenciava o ornitóptero de Leonardo da Vinci. Nesse momento primordial, Bob ponderou crismar a sua criação de Birdman (Homem-Pássaro), mas depois teve uma ideia melhor.
Apesar de os morcegos o deixarem apavorado, Bob era fascinado por eles. O medo que esses animais noctívagos habitualmente despertam nas pessoas inspirou-o a criar uma personagem capaz de intimidar criminosos com a sua silhueta ameaçadora.

O Bat-Man de Bob Kane era muito diferente do Batman que todos conhecemos.

Bob intuiu, porém, que o seu Bat-Man era ainda uma pedra bruta, à espera de ser burilada. Nada melhor, portanto, do que pedir sugestões ao seu amigo Bill Finger - que, entretanto, começara a trabalhar como seu escritor-fantasma.
Influenciado, fundamentalmente, pelo Zorro de Douglas Fairbanks e pelo filme mudo The Bat (1926), Finger reformulou por completo o visual do Batman. De uma penada, transformou-o num detetive científico como Sherlock Holmes, descartando o vigilante alado idealizado por Bob Kane. Finger deu ainda ao Homem-Morcego uma identidade civil e uma cidade para morar - Bruce Wayne e Gotham City, respetivamente.
Sucede que, além de o Batman ser uma espécie de monstro de Frankenstein costurado quase inteiramente a partir de ideias preexistentes, a sua primeira aventura é um despudorado plágio. Publicado em Detective Comics #27, de maio de 1939, O Caso da Sociedade Química, saído da pena de Bill Finger, foi decalcado de Partners of Peril, um conto do Sombra dado ao prelo três anos antes. Ambas as histórias acompanham a investigação motivada pelas misteriosas mortes de poderosas figuras da indústria química.
Ao parecer estético contemporâneo, tal cópia renderia um processo judicial com vitória garantida para os detentores dos direitos do plagiado. Mas, para sorte dos plagiadores, isso nunca aconteceu. Talvez porque, em bom rigor, o Batman foi, depois do Besouro Verde e do Detetive Fantasma, o último espécime de uma série de imitadores do Sombra. 


A primeira história do Batman foi tirada a papel química de um conto do Sombra.

De todo o modo percebe-se o que levou Bob Kane e Bill Finger a lançarem mão de tal subterfúgio: precisavam de uma história que vendesse o Batman. Condicionado na sua criatividade pelo prazo apertado, Finger reescreveu uma história bem-sucedida,  ajustando-a à medida do seu novo protagonista. Nem Bob nem Bill, parceiros neste crime quase perfeito, alguma vez negaram o plágio - que, por sinal, não foi caso único no percurso editorial do Cavaleiro das Trevas.
Com efeito, também a origem do Batman, revelada em Detective Comics #33 (novembro de 1939), teve muitos dos quadros e painéis retirados do livro infantil Junior G-Men, ilustrado por Henry Vallely. Até o morcego que entra repentinamente pela janela da mansão Wayne imita uma cena de Popular Detective #2 (dezembro de 1934). Por sua vez, a imagem de encerramento foi decalcada de um desenho de Tarzan feito por Hal Foster.
Como se tudo isso não bastasse, o juramento de Bruce Wayne reproduz, quase ipsis verbis, o juramento solene do Fantasma. Enquanto a personagem que Lee Falk idealizou em 1936 jurava, sobre o crânio do assassino do seu pai, dedicar a vida à aniquilação da pirataria, da cobiça e da crueldade em todas as suas formas, Batman jurava vingar a morte dos pais dedicando o resto da vida a combater o crime.
Como se sabe, nada disto impediu que o Batman se tornasse a nova mina de ouro da DC, passando inclusivamente a disputar ao Super-Homem o estatuto de figura de proa da editora. Menos de um ano volvido sobre a sua estreia em Detective Comics, o Cruzado Encapuzado ganhou revista própria e um ajudante adolescente. Robin, o Menino Prodígio, serviu para expandir a audiência das histórias do Batman, cativando as crianças que não se identificavam com o taciturno guardião de Gotham City.

Depois do Super-Homem, Batman foi o segundo super-herói a ter a sua própria revista.
Robin ajudou-o a caçar bandidos e a prender leitores de palmo e meio.

Animado pelo crescente sucesso da sua personagem, Bob Kane foi um dos raríssimos profissionais dos quadradinhos a ter a clarividência de, assessorado pelo advogado do pai, negociar um contrato que lhe renderia fama e fortuna. Além de bastante lucrativo, o acordo incluía uma cláusula que o consagrava, a título perpétuo, como autor único do Batman.
Como foi isto possível? A resposta é simples. Bob Kane nunca encarou Bill Finger como um sócio, mas sim como um empregado. Era igualmente essa a perceção da DC, que sempre tivera em Bob o seu único interlocutor em todo o processo negocial. Finger, ademais, preferiu ficar na penumbra a ter de voltar a vender sapatos para ganhar a vida.
Assim sendo, quando a DC começou a requisitar mais histórias do Batman do que Kane conseguia desenhar, a solução passou pela contratação de artistas fantasmas. A partir de um estúdio instalado no edifício do New York Times, Dick Sprang, George Roussos, Jerry Robinson e tantos outros emprestavam secretamente o seu traço ao Homem-Morcego. Nenhum deles foi no entanto alguma vez creditado, levando os leitores a acreditar ser Bob Kane a única pessoa por detrás do seu herói favorito.
A partir de 1943, Bob Kane passou a dedicar-se por inteiro às tiras do Batman. Apesar disso, era a sua assinatura estilizada que continuava a surgir em todas as histórias do Cruzado Encapuzado publicadas nas revistas da DC. Situação impensável nos dias que correm, mas importa lembrar que, naquela época, as regras era muito diferentes. Direitos de autor e vínculos contratuais eram conceitos estranhos numa indústria dominada por gente pouco recomendável. A própria DC, por exemplo, foi fundada por ex-contrabandistas de álcool durante a Lei Seca...
Acresce ainda o facto de que, para todos os efeitos, os artistas fantasmas de Bob Kane eram seus funcionários. Em razão dessa circunstância, Kane pôde continuar a colher todos os louros, ao ponto de se tornar quase tão famoso como o próprio Batman.
A ética profissional de Bob Kane voltaria, entretanto, a ser colocada em xeque num episódio que envolveu os criadores do Super-Homem. Na viragem da década de 40, quando Jerry Siegel e Joe Shuster resolveram processar a DC na esperança de recuperarem os direitos da sua personagem, convidaram Kane a juntar-se a eles. Em vez disso, ele usou essa informação para renegociar o seu próprio contrato com a Editora das Lendas.
Perante a renitência da DC em aceitar os novos termos, Bob Kane alegou ter assinado o contrato original quando ainda era menor de idade. Apesar de se tratar de uma absoluta falsidade (em 1939 Kane tinha 24 anos), contou com a cumplicidade dos pais e com o misterioso sumiço da sua certidão de nascimento para lograr os seus intentos.
Ainda hoje considerado um dos melhores contratos do setor, o novo acordo celebrado por Bob Kane garantia-lhe direitos de revisão e uma melhor percentagem dos lucros decorrentes do licenciamento do Batman. Foi graças a esta audaciosa jogada que, nas décadas seguintes, Kane acumulou uma fortuna estimada em dez milhões de dólares.

Uma modelo fantasiada de Mulher-Gato posa para Bob Kane.
Para o mundo, ele era o único criador do Batman.

A pantomima perdurou até 1965, quando Bill Finger, na qualidade de orador convidado numa das primeiras convenções de quadradinhos, revelou publicamente as suas múltiplas contribuições para a conceção do Batman e respetiva mitologia. Bob Kane, que até aí tinha tido por hábito resguardar-se das críticas sob um manto de fleuma, reagiu com inesperada violência.
Numa carta aberta com várias páginas, reafirmou ser ele o único criador do Batman e, carregando nas tintas, acusou Bill Finger de mentir. Mas nada seria como dantes. Nos bastidores editoriais, a surdina foi ficando cada vez mais ruidosa, com muitos profissionais dos quadradinhos a corroborarem as palavras de Finger.
Quando a polémica estalou, já Bob Kane tinha trocado, há vários anos, Nova Iorque por Los Angeles, e os quadradinhos pela televisão. Em 1965, aceitara colaborar com a série em ação real do Batman. Apesar de se tratar de um programa cómico, Kane apreciava genuinamente o formato porque sempre considerou ridículo o conceito de super-herói.
Na Cidade dos Anjos, Bob Kane conseguiu realizar também o sue velho sonho de criar um desenho animado. Courageous Cat and Minute Mouse - um gato e um rato antropomórficos que, juntos, combatiam  o crime - parodiavam as aventuras do Duo Dinâmico. À boleia do sucesso desse seu primeiro projeto televisivo, Kane criou outra série animada intitulada Cool McCool, a qual acompanhava as trapalhadas de um agente secreto inepto.
Bon vivant, Kane apreciava os prazeres mundanos e a companhia de celebridades, como Sammy Davis Jr. ou Muhammad Ali. Sentia-se como peixe na água nas glamorosas festas de Hollywood e não parecia sentir saudades de Nova Iorque ou da sua vida anterior.

Entre 1960 e 1962, foram para o ar 130 episódios de Courageous Cat and Minute Mouse,
 paródias de Batman e Robin.

A partir do final da década de 60, quando a DC reviu por fim a sua linha editorial, creditando os verdadeiros artistas das histórias do Batman, Bob Kane passou a ser apenas discretamente mencionado como criador da personagem,
Mercê desse novo status quo, Bob Kane atravessou a década seguinte em relativo ostracismo. Dedicando-se agora às Belas Artes, expunha os seus quadros em galerias e museus da Costa Oeste. Apesar de visualmente apelativas, parte dessas obras foram na verdade pintadas por artistas fantasmas. Por causa disso, alguns dos críticos que escrutinaram o trabalho de Kane não hesitaram em expô-lo como charlatão.
A reputação de Bob Kane foi ainda mais beliscada pela morte de Bill Finger na mais abjeta pobreza. Acusado de ter negligenciado o amigo e parceiro criativo, Kane, então com 59 anos, antecipou a reforma e saiu de cena. Mas nem por isso caiu nos alçapões da História para onde atirou tantos dos que com ele colaboraram.
Bob Kane voltou a atrair os holofotes mediáticos em 1989. No ano em que se celebrava o cinquentenário do Cruzado Encapuzado, Kane lançou (com a ajuda, está bem de ver, de um escritor fantasma) a sua autobiografia sugestivamente intitulada Batman and Me. Numa das entrevistas em que se desdobrou para promover a obra, teve um rebate de consciência e reconheceu, urbi et orbi, a tremenda injustiça a que sujeitara Bill Finger. Um pequeno atro de contrição que os mais cínicos interpretaram como um golpe de marketing.

Em 1989, Bob Kane lançou o primeiro volume da sua autobiografia.
O segundo, intitulado Batman and Me - The Saga Continues, seria lançado em 1996.

Ainda em 1989, Bob Kane colaborou como consultor no filme Batman, de Tim Burton. Problemas de saúde impediram-no de fazer a pequena participação prevista na película, mas é da sua autoria o desenho do morcego gigante que o cartunista do Gotham Gazette mostra a Alexander Knox. 
Reabilitado perante os seus pares, nos últimos anos de vida Bob Kane foi por eles cumulado de honrarias. Depois de ter sido introduzido no Jack Kirby Hall of Fame em 1994, dois anos mais tarde passou a figurar também no Will Eisner Comic Book Hall of Fame.
Bob Kane faleceu, de causas naturais, no dia 3 de novembro de 1998, menos de um mês depois de ter completado 83 anos. Foi sepultado num cemitério de Hollywood Hills e a sua lápide perpetua-o como autor único do Batman. 
Visionário aos olhos de alguns, charlatão aos olhos de muitos, Bob Kane continua a ser uma figura controversa. Não por acaso, o único vilão do Batman que ele comprovadamente criou sozinho foi o Duas-Caras. Dificilmente haverá  melhor alegoria para a ambiguidade moral daquele que, mesmo com o legado maculado pelo oportunismo e falta de escrúpulos, foi um dos maiores vultos da 9ª Arte.

Na lápide de Bob Kane pode ler-se que Batman foi uma criação da "mão de Deus".
Onde foi que já ouvimos isto?



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Textos sobre Bill Finger, Jerry Robinson, Dick Sprang, Joker e Robin disponíveis para leitura complementar.






  



 













 











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09 maio 2020

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «BATMAN: ANO UM»


  Durante demasiado tempo, os intocáveis banquetearam-se com a riqueza e o espírito da sua cidade. Chegou, porém, a hora de o príncipe de Gotham interromper o festim de ganância e impunidade. Faminto de justiça, ele travará a coberto da noite uma guerra que não poderá vencer sozinho, mas que fará dele uma lenda.

Título original: Batman: Year One
Editora: Detective Comics (DC)
País: Estados Unidos da América
Autores: Frank Miller (argumento) e David Mazzucchelli (arte) 
Publicado em: Batman Vol.1 # 404-407 (fevereiro a maio de 1987)
Personagens: Bruce Wayne / Batman; James Gordon; Selina Kyle / Mulher-Gato; Arnold Flass; Gillian Loeb; Alfred Pennyworth; Carmine Falcone; Sarah Essen; Holly Robinson; Harvey Dent; Barbara Eileen Gordon
Cenários: Várias localizações de Gotham City, incluindo a sede do Departamento de Polícia, a Mansão Wayne e a Batcaverna. 

Edições em Português

Ao longo das últimas três décadas, Batman: Ano Um foi contemplado, em cada uma das margens do Atlântico, com uma miríade de edições e reedições na língua de Camões.
Seguindo o modelo de publicação original, no Brasil Ano Um foi inicialmente apresentado aos leitores nos quatro primeiros números da segunda série de Batman, dados à estampa pela Abril entre setembro e dezembro de 1987. Esta primeira versão em Português tropical - distribuída no ano seguinte em terras lusitanas - teve a particularidade de ser a única a ser lançada no chamado formatinho económico.
Ainda sob os auspícios da mesma editora - e inserida nas comemorações do 50º aniversário do Homem-Morcego - em 1989 foi lançada a primeira de várias compilações em formato americano, algumas das quais com capa dura.

Primeira compilação de Ano Um  (Abril Jovem, 1989).
Desde que, em 2002, obteve os direitos do Universo DC em terras de Vera Cruz, também a Panini vem lançado sucessivas reimpressões de Ano Um, a mais recente das quais remonta a dezembro de 2016.
Já a primeira versão lusa da saga teve a chancela da Devir e chegou às bancas nacionais em finais de 2001. Mercê do sucesso comercial da iniciativa (7 mil exemplares vendidos), em 2005 seria lançado um segundo volume encadernado da obra, cuja única diferença relativamente ao anterior era a inclusão de um livro de esboços (sketchbook) de David Mazzucchelli.
Em 2015, seria a vez de a Levoir selecionar Ano Um para inaugurar a sua coleção evocativa dos 75 anos do Batman, originalmente distribuída com o semanário Sol.
Agora com o mote da chancela norte-americana Black Label, em novembro do ano passado a Levoir brindou os leitores portugueses com nova republicação desta história clássica do Cavaleiro das Trevas.

Bertrand.pt - Batman: Ano Um
Ano Um abriu a coleção da Levoir evocativa dos 75 anos do Batman.

Morcego renascido

Foi em maio de 1939 - há precisamente 81 anos, portanto - que Batman debutou em Detective Comics #27. Numa historieta intitulada The Case of the Chemical Syndicate, o Homem-Morcego começava a construir a sua reputação de melhor detetive do mundo ao deslindar o mistério por detrás do homícidio de um industrial de Gotham City.
Criado por Bob Kane e Bill Finger a reboque do sucesso do Super-Homem no ano anterior, a Batman serviram de inspiração diversas personagens clássicas saídas da literatura pulp. O Sombra e o Zorro foram duas delas, conquanto sejam igualmente notórias as influências do Fantasma, de Lee Falk. A sua origem só seria, no entanto, revelada vários meses depois.
Em novembro de 1939, Detective Comics #33 incluía uma história escrita por Bill Finger que levantava, por fim, o véu que até aí cobrira o traumático passado do circunspecto defensor de Gotham City. Foi, pois, através dela que os leitores ficaram a par da tragédia pessoal de Bruce Wayne, um órfão milionário que, ainda criança, vira os seus pais serem assassinados a sangue-frio durante um assalto de rua.
De coração enlutado, o pequeno Bruce jurou vingar a morte dos seus pais, devotando a sua vida a combater o crime e a injustiça. Para esse efeito, ele criou um disfarce inspirado no morcego que, certa noite, invadira a Mansão Wayne. Sendo esse, de resto, um dos vários elementos referenciados por Frank Miller na sua releitura  da origem clássica do Batman, em Ano Um.

A origem de Batman foi revelada em Detective Comics #33 (1939).
Com o rolar das décadas, a cronologia da DC foi-se tornando, porém, cada vez mais convulsa e contraditória. Devido à sua natureza de simples vigilante urbano, Batman foi menos afetado pela bagunça instalada do que, por exemplo, Super-Homem ou Mulher-Maravilha. Mas nem por isso deixou de ter a sua origem sucessivamente retocada.
Em 1948, Bill Finger atribuiu, pela primeira vez, um nome ao assassino de Thomas e Martha Wayne. Até então um meliante anónimo, o homem que mudou as agulhas do destino de Bruce Wayne passou a ser identificado como Joe Chill.
Menos de uma década após esta primeira alteração, em 1956,  Finger acrescentou outro dado novo. A morte dos Waynes não resultara, afinal, de um crime aleatório, mas de uma execução sumária encomendada pela Máfia. Ao mesmo tempo que era sugerido que, para criar o seu alter ego noturno, Bruce se inspirara não num morcego, mas numa fantasia usada pelo pai num baile de máscaras.
Histórias subsequentes relatariam ainda as muitas viagens de Bruce à volta do mundo, com o propósito de desenvolver os talentos necessários para empreender a sua cruzada contra o crime.
Num esforço para corrigir erros de continuidade como estes, em 1985 - ano em que comemorava as suas bodas de ouro - a DC resolveu iniciar uma nova cronologia. Graças a Crise nas Infinitas Terras, a mãe de todas as sagas, os leitores puderam presenciar o alvorecer de uma nova era.
Coincidentemente, foi durante a produção de Crise nas Infinitas Terras que Frank Miller, uma das estrelas em ascensão na Marvel, assumiu as histórias do Demolidor. Miller começara por desenhar a série mensal do Homem Sem Medo mas o editor Dennis O'Neil desafiara-o a trocar o lápis pela máquina de escrever.

Comic Con Experience 2015 terá presença de Frank Miller
Da pena de Frank Miller saíram sagas memoráveis.
Provando o seu valor como obreiro de perspetivas revigorantes, poucas semanas depois Miller presenteava os leitores com um clássico instantâneo: A Queda de Murdock. Obra que deu um novo elã ao Demolidor e que foi  produzida a meias com David Mazzucchelli, cuja arte mereceu quase tantos elogios como a trama de Miller.
Foi com o currículo abrilhantado por essa obra-prima da 9ª Arte que, em 1986, Miller trocou a Marvel pela DC. Na Editora das Lendas assinou, nesse mesmo ano, aquele que muitos consideram ser o seu magnum opus: O Regresso do Cavaleiro das Trevas.
O contrato celebrado entre Miller e a DC previa igualmente que o escritor produzisse uma nova origem do Batman. Contrariamente ao que sucedera com O Regresso do Cavaleiro das Trevas, desta feita Miller preferiu não transformar a empreitada num projeto unipessoal. Por sua sugestão, a DC recrutou ninguém menos do que David Mazzucchelli para desenhar a história, reunindo assim a dupla-maravilha que fizera do Demolidor um caso sério de popularidade.

David Mazzucchelli (Person) - Comic Vine
Depois do Demolidor, o traço de David Mazzucchelli
ajudou a redefinir o Batman.
Miller concebera inicialmente Ano Um como uma graphic novel. Mostrando-se, por isso, reticente em acolher a sugestão de Dennis O'Neil - o novo editor de Batman - para que a história fosse apresentada ao longo dos quatro primeiros números da nova série mensal do Homem-Morcego. Miller temia que esse formato prejudicasse a dinâmica narrativa, ou que, em última instância, comprometesse o seu estatuto canónico.
A amizade com Dennis O'Neil - cunhada durante a passagem de ambos pela Casa das Ideias - acabaria, contudo, por falar mais alto, levando Miller a ceder. Mas apenas depois de O'Neil lhe ter asseverado que continuaria a dispor de total liberdade criativa no protocolo modificativo de um dos maiores ícones da cultura pop do século XX.
Apesar dessa carta de alforria, a abordagem de Miller revelou-se menos arrojada do que se previa. Consistindo, basicamente, em expandir a premissa glosada por Bill Finger em 1939, focalizando-se em aspetos da origem do Batman que permaneciam por explorar. Em contrapartida,  resumiu elementos fundamentais do mito à sua expressão mínima. O assassinato de Thomas e Martha Wayne, por exemplo, foi evocado sob a forma de breves flashbacks.
Por considerá-las desinteressantes, Miller suprimiu também as aventuras do jovem Bruce Wayne ao redor do mundo. Em vez de apresentar Batman como uma lenda viva, à semelhança do que fizera em O Regresso do Cavaleiro das Trevas, Miller caracterizou-o como um homem comum e inexperiente a tentar fazer a diferença numa sociedade de regras viciadas.
Do ponto de vista de Miller, a eficiência de um herói é inversamente proporcional ao seu apelo junto do público. Quanto mais falível, mais relacionável se torna uma personagem conotada com o Bem. Razão pela qual Ano Um apresentou um Batman imprudente que, não raro, subestimava os seus adversários.
Ao conferir-lhe uma atmosfera lúgubre, quase asfixiante, a arte de David Mazzucchelli enfatizava o tom realista imprimido por Miller à narrativa. O artista concebeu a sua interpretação de Gotham City para simbolizar a devassidão que contagiava os habitantes da cidade.

Na capital do crime, Batman é um alvo a abater.
Quando Dennis O'Neil sugeriu que o capítulo de abertura de Ano Um fosse publicado no número inaugural da segunda série de Batman, Miller mostrou-se irredutível. Em seu entender, a exploração de partes desconhecidas da origem do herói não justificava que fosse feita tábua rasa de quase meio século de aventuras.
Evitando um corte radical com o passado, Ano Um seria inserto nos números 404 a 407 de Batman. A saga de Miller e Mazzucchelli foi um sucesso comercial (mais do que duplicou a tiragem da série) e conservaria o seu estatuto canónico até 2011. Apesar de o ter perdido nesse ano para Ano Zero, no âmbito dos Novos 52, sobretudo entre os leitores veteranos Ano Um continua a ser percecionada como a origem definitiva do Cavaleiro das Trevas.

FORTALEZA DA SOLIDÃO: DO FUNDO DO BAÚ: «BATMAN - ANO UM»
Uma lenda em quatro atos.

Aurora negra

Bruce Wayne regressa a Gotham City após uma ausência de doze anos. Durante esse prolongado interregno longe da cidade que o viu nascer, o jovem milionário viajou pelo mundo, estudando artes marciais e ciências forenses. De volta a casa, traz uma missão na bagagem.
Transferido de Chicago e acompanhado pela esposa grávida, também James Gordon desembarca em Gotham ansioso por reabilitar a sua carreira policial. Os dois homens não demoram a ter o seu primeiro contacto com a sórdida e violenta realidade daquela que é reputada como a capital do crime.
Na sua primeira patrulha com o detetive Arnold Flass, Gordon vê o seu novo parceiro agredir um adolescente negro apenas por diversão. À medida que incidentes desta natureza se sucedem, cresce em Gordon a determinação de endireitar as coisas.
Depois de se registar num hotel para garantir um álibi, Bruce, irreconhecível no seu disfarce, aventura-se na sua primeira missão no terreno. Ao adentrar no nada recomendável Distrito da Luz Vermelha, é abordado por uma prostituta menor de idade chamada Holly Robinson. Perante a recusa do falso cliente, o proxeneta de Holly arrasta-a por um braço para um beco escuro. Bruce segue-os com a intenção de confrontar o homem, mas vê-se cercado por um grupo de meretrizes que investem sobre ele.
Prestes a desenvencilhar-se das suas agressoras, Bruce é surpreendido pela entrada em cena de Selina Kyle, uma dominatrix de elegância e agilidade felinas. Enquanto luta com a recém-chegada, Bruce é esfaqueado numa perna por Holly. Essa não será, porém, a única cicatriz que ganhará naquela noite.
Chegados ao local, dois polícias fardados ferem Bruce a tiro, transportando-o, em seguida, no carro-patrulha. A caminho da esquadra, Bruce consegue abrir as algemas e neutralizar os agentes. A viatura onde seguem entre em despiste, acabando por capotar violentamente. Antes de abalar, Bruce retira, porém, os agentes inconscientes do interior dos destroços em chamas.
Debilitado pelos vários ferimentos recebidos, Bruce consegue, a muito custo, regressar à Mansão Wayne. Enquanto, sentado sozinho na penumbra, roga ao seu falecido pai por orientação, um morcego atravessa subitamente a vidraça de uma janela antes de pousar em cima de um busto de Thomas Wayne. A criatura noturna foi a resposta às suas preces e inspira-o a criar uma persona capaz de infundir medo no coração dos criminosos.

Batman: Year One, Franck Miller & David Mazzucchelli | Batman year ...
Sob o signo do morcego.
Nas semanas imediatas, Gordon propõe-se limpar o Departamento de Polícia de elementos indesejáveis, colecionando inimizades no seio da corporação. Por ordem do Comissário Gillian Loeb, um grupo de agentes policiais encapuzados espancam brutalmente Gordon. Um deles - que Gordon reconhece como sendo Flass - chega mesmo a vociferar ameaças à sua esposa.
Tão logo fica restabelecido, Gordon visita a casa do agente onde o grupo de Flass se costuma reunir para noitadas de póquer regadas a álcool. Flass é ó ultimo a sair e, devido ao seu estado ébrio, é facilmente subjugado por Gordon.
Após espancar o ex-parceiro com um taco de basebol, Gordon deixa-o algemado e desnudo no meio da neve. Apesar de dolorosa,a lição não servirá de emenda a Flass.
Na noite seguinte é a vez de Bruce ter o seu batismo de fogo como Batman. Três adolescentes que roubavam um televisor de uma loja são rapidamente deixados fora de combate. O Cruzado Encapuzado logrou a sua primeira vitória mas esta não aplacou a sua fome de justiça.
O lauto banquete em que participavam alguns dos intocáveis de Gotham City torna-se indigesto quando Batman irrompe e anuncia que a sua impunidade tem os dias contados. Em resposta a essa afronta, o Comissário Loeb autoriza Gordon a usar todos os meios para capturar o vigilante. Batman tem agora a cabeça a prémio.

Batman Really Takes The Urine This Week...
Banquete indigesto.
Enquanto Gordon tenta debalde cumprir as ordens de Loeb, Batman prossegue a sua cruzada por justiça. O seu próximo alvo é ninguém menos do que Carmine "O Romano" Falcone, o chefe mafioso que controla o submundo de Gotham. Pela calada da noite, o Homem-Morcego invade a mansão de Falcone e, após intimidá-lo, deixa-o atado à cama. Antes de partir, tem ainda tempo para atirar a limusina do mafioso ao rio.
Estas e outras façanhas rendem a Batman o seu primeiro aliado. O promotor público Harvey Dent apoia secretamente as ações do vigilante, e tenciona cavalgar a onda de justiça que se encapela sobre Gotham, prometendo limpar uma cidade que não quer ser limpa.
Agora assistido pela charmosa detetive Sarah Essen, Gordon prossegue a sua investigação às atividades do misterioso Homem-Morcego que assombra a noite gothamita. Essen está convicta que Batman e Bruce Wayne são a mesma pessoa. Segundo ela, somente o príncipe de Gotham disporia dos recursos necessários para financiar as operações do vigilante.
No final de mais uma noite desperdiçada a seguir pistas inúteis, Gordon e Essen testemunham incrédulos o salvamento de uma sem-abrigo prestes a ser trucidada por um camião desgovernado. Saído da escuridão, Batman consegue tirar a mulher do caminho no último instante. Ao desviar-se de um obstáculo na via, Gordon perde o controlo do carro onde segue o casal de detetives e fica inconsciente após embater com a cabeça.
Ao voltar a si, Gordon depara-se com um quadro perturbador: Essen tem Batman na mira. O herói aproveita, porém, uma breve distração da detetive para desarmá-la antes de procurar abrigo num edifício devoluto.
Alegando que o prédio onde Batman se encontra encurralado já aguardava demolição, o Comissário Loeb ordena que seja lançada uma bomba no seu interior, a partir de um helicóptero da polícia.
A explosão obriga Batman a refugiar-se na cave fortificada do edifício, deixando para trás o seu cinto de utensílios que, por incluir substâncias inflamáveis, havia pegado fogo.
Uma equipa SWAT invade, pouco depois, o edifício para recolher o cadáver de Batman. Ao serem surpreendidos pelo mascarado, os agentes abrem fogo indiscriminadamente. Além do Homem-Morcego, também vários civis, aglomerados no exterior, são feridos pela saraivada de balas.

Batman: Year One, SWAT hunt | Cartoon art, Comic books art, Art
Caça ao morcego.
Ao ver os agentes comportarem-se como assassinos contratados, Batman não hesita em derrubá-los um por um. Usando, em seguida, um dispositivo para atrair uma densa revoada de morcegos.
Em meio ao caos instalado, Batman desaparece ao raiar do dia. Com um misto de pavor e esperança, Gotham testemunha a aurora negra de uma lenda; a lenda do Cavaleiro das Trevas.
Sem que Batman sequer o imagine, as suas audaciosas ações inspiram Selina Kyle a criar o seu próprio alter ego. Por conta da sua afinidade com felinos, Selina transforma-se na Mulher-Gato. A arte de roubar não mais será a mesma, agora que nasceu a rainha das ladras.

best of catwoman on Twitter: "Who is Selina Kyle? How did she ...
À noite, todos os gatos são pardos.
Nas semanas seguintes, Gordon e Essen vivem um breve affair. Batman, por seu turno, coage um traficante de drogas a testemunhar contra o detetive Flass, que acaba detido por Gordon.
Sem tempo sequer para colher os louros, Gordon é chantageado pelo Comissário Loeb com provas da sua relação extraconjugal com Essen. Disposto a arcar com as consequências, Gordon confessa o seu deslize amoroso à esposa. Barbara decide então abandonar Gotham a poucas semanas de dar à luz o primeiro filho do casal. Mas esse poderá muito bem ser o menor dos problemas de Gordon.
Ao invadir novamente a mansão de Falcone a coberto da noite, Batman escuta um plano para liquidar Gordon. A reunião é no entanto interrompida pelo advento da Mulher-Gato.
Frustrada pelo facto de os seus sofisticados golpes virem sendo atribuídos ao Batman, Selina Kyle resolveu não deixar os seus créditos por mãos alheias. Enquanto faz gato sapato dos guarda-costas de Falcone, é discretamente ajudada pelo Homem-Morcego, que se mantém camuflado entre as sombras.
Ao sair de casa na manhã seguinte, Gordon deteta as movimentações suspeitas de um motociclista que ronda a garagem do seu prédio. Decide investigar e encontra a sua família feita refém por um grupo de sequazes de Falcone liderados por Vitti, o sádico sobrinho do mafioso.
Tomado pelo instinto, Gordon abate os sequestradores, mas Vitti consegue fugir levando consigo o filho recém-nascido de Gordon.
Sempre com o misterioso motociclista no seu encalço, Vitti acaba por perder o controlo do seu automóvel quando tentava atravessar uma ponte sobre o rio. Vitti e Gordon envolvem-se numa luta corpo a corpo, durante a qual o detetive perde os óculos.
Disposto a tudo para salvar a pele, Vitti lança o bebé ao rio. Gordon corre para salvar o filho mas é o motociclista quem salta da ponte para lhe amparar a queda fatal.
Já com o filho, são e salvo, nos braços, Gordon percebe estar na presença do homem por trás da máscara do Batman. A quem tranquiliza dizendo que, sem os óculos, é "cego como um morcego", e que ele é livre de partir. Bruce aproveita a deixa para sair de cena, ciente de que ganhara um precioso aliado.

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O início de uma aliança improvável.
Caído em desgraça, o detetive Flass arrasta consigo praticamente toda a hierarquia do Departamento de Polícia de Gotham City (DPGC), incluindo o Comissário Loeb. Rende-lhe no posto o Comissário Grogan, que aparenta ser ainda mais corrupto do que o antecessor. Gordon, por sua vez, é recompensado com uma promoção e uma nova oportunidade para salvar o seu casamento.
No epílogo, o agora Capitão Gordon aguarda pacientemente no telhado da sede do DPGC pela chegada do Batman. Acaba de receber informações sobre os planos de um lunático para envenenar o reservatório de água da cidade. Diz-lhe a sua intuição que o tal Joker ainda dará muito que falar...

Apontamentos

*O título do capítulo inaugural de Ano Um - Quem eu sou e como vim a ser (Who He Is and How He Came To Be, no original) - referencia a primeira origem canónica do Homem-Morcego apresentada em novembro de 1939, nas páginas de Detective Comics Vol.1 #33.
*O verdadeiro motivo da transferência de James Gordon para Gotham City é vagamente sugerido na narrativa. A mudança de cidade não foi de todo voluntária, e ter-se-á ficado a dever a um incidente não especificado envolvendo elementos corruptos da Polícia de Chicago. Esse episódio só seria clarificado em Batman: Gordon of Gotham, um spin-off de Year One publicado em 1998 e que segue inédito em língua portuguesa;
*Carmine Falcone, o poderoso chefe da Máfia que durante muito tempo controlou o submundo de Gotham, fez a sua primeira aparição em Ano Um. O seu reinado seria, porém, interrompido tanto pela ação concertada de Batman e Gordon, como pelas disputas territoriais com outros barões do crime, como o Pinguim;

ULTIMATE BATMAN - Mickeys Tavern
Carmine Falcone, o Padrinho.
*Ano Um teve como colorista Richmond Lewis. Pintora consagrada, Lewis é casada com David Mazzucchelli e foi a convite do marido que colaborou no projeto;
*Ano Um estabelece que Bruce Wayne teria 25 anos de idade quando empreendeu a sua campanha para libertar Gotham do crime e da corrupção que a haviam feito refém. No que aparenta ter sido um lapso de Frank Miller, é referido que Bruce teria apenas sete anos quando assistiu ao assassinato dos seus pais. Outras fontes refutam, com efeito, esta informação. Na cronologia emanada de Zero Hora, por exemplo, é ponto assente que Bruce Wayne teria na verdade oito anos quando ficou órfão;
*O facto de o Super-Homem ser referenciado em Ano Um atesta que a sua entrada em cena precedera em vários meses a do Homem-Morcego. Essa referenciação ocorre em dois momentos distintos da trama: no primeiro deles, Barbara Gordon compara a tensão muscular acumulada nas costas do marido ao "Homem de Aço"; no segundo, Alfred sugere ironicamente que Bruce aprenda a voar como "aquele sujeito de Metrópolis";
*Vários locais emblemáticos de Gotham são referenciados ao longo da narrativa, designadamente Robinson Park, Finger Memorial e a Missão Sprang. Tratam-se de homenagens toponímicas a Jerry Robinson (cocriador de Robin), Bill Finger (cocriador de Batman) e Dick Sprang (o mais famoso dos artistas "fantasmas" de Bob Kane);
*A ideia de Batman usar um sonar para atrair morcegos para a sua localização seria revisitada no filme Batman - O Início (2005). De igual modo, a cena final daquele que foi o primeiro capítulo da trilogia cinematográfica do Cavaleiro das Trevas - quando Joker é mencionado por Gordon - remete para os últimos painéis de Ano Um;

Gotham Alleys: Comic Book references in movies Part V: 'Batman Begins'
A aurora negra de Ano Um recriada em Batman - O Início.

*Quando sucedeu a Tim Burton como realizador de Batman Para Sempre (1995), Joel Schumacher planeava adaptar Ano Um. Ideia que seria no entanto prontamente descartada pelos produtores da franquia, interessados numa sequela e não numa prequela. Schumacher incluiria, ainda assim, vários elementos da obra nos flashbacks que acometiam Bruce Wayne ao longo do filme;
*Após o fiasco de Batman & Robin (1997), na viragem do milénio a Warner Bros. contratou Darren Aronofsky para escrever e dirigir um reboot da Bat-franquia baseado em Ano Um. O argumento apresentado por Aronofsky era todavia apenas vagamente inspirado na história original, chegando mesmo a pôr em causa várias convenções da personagem. Em virtude disso, o projeto foi engavetado e Aronofsky defenestrado;
*Apresentado em plena Comic-Con de San Diego, o filme animado Batman: Year One foi, em 2011, a primeira (e, até à data, única) adaptação oficial de Ano Um ao segmento audiovisual;

Batman: Year One (dvd_video) : Target
A versão animada de Ano Um.
*Aclamada pela crítica e pela generalidade dos leitores, Ano Um surge em segundo lugar na lista das dez melhores histórias do Batman de todos os tempos divulgada na plataforma IGN. A encabeçar o ranking, outro épico com assinatura de Frank Miller: O Regresso do Cavaleiro das Trevas;
*Desde a publicação de Ano Um, foram várias as histórias que expandiram o conceito glosado por Frank Miller. Logo em 1987, Mike W. Barr escreveu Ano Dois, colocando Batman na peugada de Joe Chill, o assassino dos seus pais. Um par de anos volvidos, em 1989, foi a vez de Marv Wolfman recontar a origem de Robin em Ano Três. Ambos os arcos seriam, porém, desconsiderados na sequência dos ajustes cronológicos impostos por Zero Hora. Em sentido oposto, O Homem Que Ri foi consagrada como sequência direta de Ano Um. Saída da pena de Ed Brubaker em 2005, a história revisita o primeiro encontro entre Batman e Joker, e antecede cronologicamente os eventos de O Longo Halloween (outro desdobramento de Ano Um).

Amazon.com: Batman: The Man Who Laughs (8601400566909): Brubaker ...
Em 2005, Ed Brubaker assinou
 a única sequela oficial de Ano Um.

Vale a pena ler?

A despeito das suas oscilações criativas (nos últimos anos parece ter desaprendido de desenhar), Frank Miller sempre foi um autor visionário. O meu primeiro contacto com o seu trabalho deu-se através desse épico moderno chamado O Regresso do Cavaleiro das Trevas. Mesmo sendo ainda pessoa de palmo e meio, percebi de imediato que tinha em mãos algo verdadeiramente especial, muito diferente de tudo que lera até àquele momento. Só então tomei consciência de que as histórias de super-heróis poderiam abordar temas mais complexos e adultos, em vez de se resumirem à eterna luta entre as forças do Bem e do Mal.
Em Ano Um, Miller desenvolve a trama com simplicidade, embora sem perder o requinte narrativo, para o qual muito contribui o magistral traço de David Mazzucchelli. A trama equilibra-se bem entre Batman e Gordon, demonstrando serem ambos peças fundamentais na representação de um mesmo ideal: o primado da Lei e da Justiça. Com Gordon a personificar a primeira e Batman a segunda.
O amadurecimento das duas personagens é, com efeito, perfeitamente observável na obra. Após erros e acertos em campo, Batman adota progressivamente a rigidez e disciplina que o caracterizam; Gordon, único elemento incorruptível da corporação, paga um preço alto pela sua integridade. A retidão de caráter é-lhes comum e, por isso, ambos se admiram mutuamente, antes mesmo de se conhecerem.
Se Batman é a figura heroica vista com ligeiro distanciamento por conta do luto e revolta que carrega desde a infância, Gordon é concebido como o homem comum que realiza o possível na medida das suas forças. O futuro Comissário é um herói falho, que trai a esposa grávida e sofre violência física e emocional por parte dos seus companheiros. Mas cujas boas intenções acabam por sobressair num quadro de absoluta amoralidade. Não é por acaso que Gordon é uma das personagens mais empáticas do imaginário do Cavaleiro das Trevas.
Outro aspeto positivo de Ano Um radica na ausência de qualquer representante da burlesca galeria de vilões do Batman. Desse modo fica claro que, nos primórdios da sua carreira heroica, o Homem-Morcego tinha como principais inimigos a sua consciência e uma sociedade profundamente corrupta. Não obstante, futuros antagonistas, como Harvey Dent (Duas-Caras) e Selina Kyle (Mulher-Gato), são introduzidos de forma brilhante.
Ano Um é, sem margem para dúvidas, uma das melhores histórias do Batman e uma obra-prima da 9ª Arte. É também um tratado sobre como (re)contar histórias tão grandiosas e imorredouras como o herói que as protagoniza. Ditando a mais elementar justiça que esse mérito seja dividido, em partes iguais, pelos seus autores. Frank Miller e David Mazzucchelli foram os homens certos no tempo certo.

Dois homens e um destino.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à variante europeia da Língua Portuguesa;
**Artigos sobre A Queda de Murdock, Zero Hora, Dennis O'Neil, Crise nas Infinitas Terras e Bill Finger disponíveis para leitura complementar.




24 maio 2019

ETERNOS: BILL FINGER (1914-1974)


  Sem o seu contributo o Batman seria muito diferente ou poderia nem existir. Sempre na sombra de Bob Kane, foi arquiteto e obreiro da mitologia daquele que é um dos mais icónicos super-heróis de todos os tempos. Nem a morte lhe escancarou, porém, os portões do Olimpo da 9ª Arte.

Enquanto o Sol se punha devagar numa praia deserta do Oregon, na Costa Oeste dos EUA, uma figura solitária executava um estranho ritual. Na areia molhada onde momentos antes espalhara cuidadosamente o montículo de cinzas transportado numa simples caixa de sapatos, desenhava agora, com dedos trémulos, a forma de um morcego. Em seguida, envolta num silêncio solene e de olhos fixos no horizonte incandescente, aguardou que o oceano reclamasse aquela pequena oferenda. Estava cumprida a derradeira vontade de Bill Finger, o autor secreto do Batman.
Quem naquele frio final de tarde por ali passasse, jamais imaginaria serem os restos mortais de um gigante da banda desenhada que as fortes correntes do Pacífico levavam para longe. Ou que a criação do Cavaleiro das Trevas configura uma das maiores traições à verdade inscritas na história da 9ª Arte.
Quando, há precisamente 80 anos, em maio de 1939, o Batman fez a sua primeira aparição em Detective Comics nº27, Bob Kane foi o único autor creditado, apesar de não o ser.
De fora ficou Bill Finger, velho amigo e fiel colaborador de Bob Kane desde os alvores da Idade de Ouro dos quadradinhos. E cujos contributos foram fundamentais para fazer do Cavaleiro das Trevas (cognome também cunhado por Finger) aquilo que ele é hoje: um dos três pilares do Universo DC (juntamente com o Super-Homem e a Mulher-Maravilha), um ícone cultural à escala planetária e, por inerência, um filão virtualmente inesgotável para os detentores dos seus direitos. Como, de resto, testifica a miríade de bandas desenhadas, filmes, séries televisivas e videojogos nele baseados.

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Detective Comics nº27 (1939) apresentou Batman ao mundo
 e Bob Kane (em baixo) como seu único autor.

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A despeito de o verdadeiro papel de Bill Finger na conceção do Batman e no desenvolvimento da sua mitologia ser um dos maiores segredos de Polichinelo da indústria dos quadradinhos, a verdade só este século começou a ser reposta. Finger continua, ainda assim, a ser um ilustre desconhecido para muitos fãs do taciturno guardião de Gotham City, que ignoram por completo a dimensão e a importância da sua obra.
Como se perceberá, Finger, conquanto inextrincavelmente ligado ao imaginário do Homem-Morcego, enriqueceu de diferentes formas o panteão da Editora das Lendas. No qual tem também lugar cativo desde que, em 1985, o seu nome foi incluído em Fifty Who Made DC Great, o livro de ouro lançado pela DC por ocasião do seu 50º aniversário, e que imortalizava as cinquenta personalidades que mais contribuíram para o sucesso da companhia.
Mas quem era, afinal, esse segundo homem por detrás da criação do Batman? E como foi possível ter permanecido na obscuridade durante tanto tempo? Era Bob Kane um oportunista sem ética ou limitou-se, ao invés, a tirar partido das regras viciadas de uma indústria particularmente iníqua?
No mês em que o Batman, fenómeno de popularidade e de longevidade (vem sendo ininterruptamente publicado desde 1939), ingressa no restrito escol de super-heróis octogenários, importa verter alguma luz sobre os segredos da sua criação e assegurar um módico de justiça ao seu criador secreto.
Um dos mais prolíficos - e menosprezados - escribas da sua geração, Milton "Bill" Finger nasceu a 8 de fevereiro de 1914, em Denver (Colorado), a jovem casal judaico de raízes humildes. Louis Finger, o pai, trocara, ainda adolescente, a sua Áustria natal pelos EUA, na senda do Sonho Americano que a Grande Depressão haveria de reduzir a pó. Foi, pois, em terras do Tio Sam que conheceu Tessie, a discreta nova-iorquina que haveria de desposar logo depois. Do enlace resultaram, além de Bill, duas filhas, Emily e Gilda. Em 1933, a família rumaria a Nova Iorque, depois de a míngua de fregueses ter ditado o encerramento da alfaiataria de que Louis retirava o sustento de todos.
Na Grande Maçã, o clã Finger assentou arraiais no Bronx. Foi nas ruas desse pitoresco bairro nova-iorquino que Bill Finger se fez homem enquanto frequentava o DeWitt Clinton, o mesmo liceu onde, num daqueles obséquios do acaso, Bob Kane estudava também. Kane era apenas um ano mais velho do que Finger e os passos de ambos acabaram inevitavelmente por cruzar-se nos corredores da escola. Apesar das personalidades dissonantes (Kane era conhecido pela sua lábia; Finger pela sua timidez), floresceu uma amizade entre ambos. Terminados os estudos, os dois seguiram, porém, caminhos muito diferentes.

Bill Finger na juventude.
Enquanto Bill Finger, um aspirante a escritor, trabalhava a tempo parcial numa sapataria, Bob Kane optou por ganhar dinheiro a fazer aquilo de que mais gostava: desenhar. Os dois mantiveram contacto e, em 1938, Bob Kane convidou o amigo a trocar a sapataria pelo seu recém-fundado estúdio. Cansado de um emprego que mal lhe permitia pagar as contas, Finger aceitou de bom grado o convite e a sua primeira colaboração consistiu em escrever Clip Carson e Rusty and his pals, tiras vendidas por Bob Kane à National Comics (uma das antecessoras da DC). Apesar de Kane não ter escrito uma só palavra das que acompanhavam as suas ilustrações, apenas a sua assinatura surgia nas tiras. Finger tornava-se assim o primeiro de uma legião de escritores-fantasma que no rolar das décadas coadjuvariam secretamente Kane.

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Bill Finger foi o escritor-fantasma de Bob Kane em Rusty and his pals.
Após o estrepitoso sucesso do Super-Homem no ano anterior, em 1939 a National Comics, na pessoa do seu editor-chefe Vin Sullivan, incumbiu Bob Kane de criar um novo herói fantasiado capaz de fazer disparar ainda mais as vendas da companhia. Era véspera de fim de semana e Kane comprometeu-se a apresentar o seu protótipo na segunda-feira seguinte. Essa seria, aliás, uma das poucas promessas que honraria em toda a sua vida.
Durante o fim de semana, Kane afadigou-se na criação da nova personagem, que batizou de Bat-Man (era esta a grafia original) antes de submetê-la à apreciação de Bill Finger. Este ficou agradado com o nome mas propôs várias modificações ao visual, conforme recordaria em diferentes entrevistas concedidas em vida: "Bob mostrou-me alguns esboços do seu Bat-Man. Gostei do conceito, mas a aparência fazia lembrar demasiado a do Super-Homem. Recordo-me que vestia um uniforme vermelho, sem luvas e com um par de asas rígidas acopladas nas costas. Tinha a face parcialmente coberta por uma mascarilha e baloiçava-se numa corda suspensa. Sugeri a Bob que fizesse algumas alterações e ele acolheu as minhas ideias."
As alterações propostas por Bill Finger deixaram quase irreconhecível o conceito original. Num ápice, o uniforme do Batman adquiriu tonalidades escuras, as asas deram lugar a uma capa e a mascarilha foi substituída por um capuz. A influência de Finger repercutiu-se igualmente na têmpera do herói.
Kane não tinha ainda definido a identidade secreta do Batman, e partiu de Finger a ideia de lhe atribuir um insuspeito playboy milionário como alter ego. Foi também ele quem o crismou de Bruce Wayne, combinação dos nomes de duas figuras históricas: Robert the Bruce (rei dos escoceses que, no século XIV, liderou o seu povo na primeira guerra pela independência face a Inglaterra) e Anthony Wayne, general notabilizado pelas suas façanhas militares durante a Revolução Americana. Anos mais tarde, o próprio Kane reconheceria ter concebido o Batman para ser um vigilante mascarado, tendo sido Finger a transformá-lo numa espécie de detetive científico notoriamente inspirado em Sherlock Holmes.

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O Bat-Man de Bob Kane.
Alheio a tudo isto, Vin Sullivan, o mandachuva da National, apressou-se a adquirir os direitos da personagem que Bob Kane, como prometido, lhe apresentou em tempo recorde. Sem nunca mencionar Bill Finger, Kane, entre outras contrapartidas, exigiu ser creditado como o único autor de Batman em todas as histórias e adaptações vindouras. Cláusula contratual inédita que destoava daquela que era então a prática consagrada na incipiente indústria dos comics. Raramente os criadores eram creditados ou conservavam os direitos das sua criações. Sendo o caso mais dramático o de Jerry Siegel e Joe Shuster, os desafortunados autores do Super-Homem cujos perfis se encontram disponíveis neste blogue.
Porquanto era o nome de Bob Kane o único que figurava no contrato celebrado com a National, somente ele receberia os futuros proventos do negócio. Apesar de Kane se ter comprometido informalmente a dividi-los com Finger, a verdade é que este nunca recebeu um cêntimo dos milhões de dólares gerados pelo Homem-Morcego nos diferentes segmentos culturais.
Não obstante, foi da pena de Finger que saiu a primeira história do Batman publicada em Detective Comics nº27, ficando a arte a cargo de Bob Kane. Mas apenas este foi creditado nessa edição e em todas as que foram dadas à estampa nas duas décadas subsequentes. Coincidindo esse período com a expansão da mitologia do Homem-Morcego.
Sempre na sombra de Kane, da imaginação de Finger saíram personagens-chave, como o mordomo Alfred Pennyworth, o Comissário James Gordon, a Mulher-Gato ou o Charada. Finger participou ainda na criação de Joker e Robin (respetivamente, némesis mortal e fiel escudeiro do Cavaleiro das Trevas), e deu nome à opressiva metrópole (Gotham City) que servia de habitat a toda esta exótica fauna. A Bat-Caverna e o Bat-Móvel foram outros dos conceitos icónicos introduzidos por Finger, normalizando dessa forma a aplicação do prefixo "Bat" a todo e qualquer acessório utilizado pelo herói que escolheu o morcego como símbolo.
Outra das marcas distintivas de Finger enquanto argumentista do Batman era a utilização recorrente de adereços gigantes - por norma, objetos do quotidiano como máquinas de costura ou de escrever. Um bom exemplo dessa tendência é a moeda gigante guardada na sala de troféus da Bat-Caverna, e que reporta originalmente a uma história da Idade de Ouro da autoria de Finger.

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Mulher-Gato e a moeda gigante com a efígie de Abraham Lincoln:
duas criações icónicas de Bill Finger na Idade de Ouro.
Arte-finalista das primeiras histórias do Batman, o saudoso George Roussos assinalava a minúcia de Finger como uma das suas características mais ambivalentes. Segundo ele, Finger facilitava consideravelmente o trabalho dos desenhistas ao fornecer-lhes referências fotográficas (normalmente retiradas da National Geographic) de prédios ou infraestruturas, como fábricas ou estações ferroviárias. Essas pesquisas exaustivas atrasavam, porém, o processo de escrita. Finger sentia sempre grande dificuldade em cumprir prazos, contingência que, em meados dos anos 1940, ditou a sua substituição temporária por Gardner Fox. Não sem antes ter assinado a história de origem do Homem-Morcego que, a despeito das múltiplas revisitações, se mantém praticamente inalterada até hoje.
Com o tempo Bill Finger começou a trabalhar diretamente para a DC. Superman e Superboy foram dois títulos em que deixou marca. Foi ele quem, por exemplo, incorporou a kryptonita (conceito apresentado anos antes num folhetim radiofónico) no cânone do Homem de Aço. Já o Superboy foi presenteado com um interesse amoroso: ninguém menos do que Lana Lang. Pelo meio, Finger foi creditado como coautor do primeiro Lanterna Verde e do Pantera (Wildcat, no original). No caso do Gladiador Esmeralda esse reconhecimento decorreu do simples facto de ter escrito a primeira história do herói, para cuja conceção em nada contribuiu.
Numa época marcada pela itinerância dos profissionais da 9ª Arte, Bill Finger colaborou igualmente com editoras concorrentes da DC. Quality Comics, Fawcett Comics e Timely Comics foram algumas das que requisitaram os seus préstimos. Para esta última, em 1946, ajudou a criar, em resposta ao êxito da Sociedade da Justiça da América (DC), o Esquadrão Vitorioso (All-Winners Squad), a primeira equipa de super-heróis dessa antepassada da Marvel.

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Alan Scott, o primeiro Lanterna Verde, e Lana Lang.
Outras das criações emblemáticas de Bill Finger.
Em 1961, numa conjuntura de renascimento dos super-heróis, Bill Finger abandonou quase por completo a indústria dos quadradinhos para abraçar uma nova carreira como argumentista no cinema e na TV. Foi nessa qualidade que, cinco anos depois, escreveu dois episódios da série televisiva do Batman estrelada por Adam West. Tendo sido essa a primeira vez que recebeu crédito por uma história do herói que ajudara a criar. Algo que certamente não terá agradado a Bob Kane.
Por essa altura a relação entre ambos já se deteriora em consequência de uma controvérsia relacionada, precisamente, com a criação do Homem-Morcego. Em 1965, na edição inaugural da Comic Con de Nova Iorque, Bill Finger participou num painel composto por autores de banda desenhada. Questionado sobre o seu papel na criação do Batman, Finger revelou a verdadeira dimensão do seu contributo para a definição do herói.
A resposta de Bob Kane não se fez esperar e foi tudo menos polida. Numa contundente missiva publicada no fanzine Batmania, apelidou de fraude o seu ex-associado, sonegando-lhe uma vez mais o direito a ser reconhecido como coautor do Cavaleiro das Trevas.
No que poderá ser interpretado como uma expressão de atroz cinismo ou um tardio rebate de consciência, na sua autobiografia lançada em 1989 (na verdade, um panegírico escrito a meias com Tom Andrea), Bob Kane escreveu: "Agora que o meu velho amigo Bill Finger nos deixou, devo admitir que ele nunca obteve a fama e o reconhecimento merecidos. Ele foi a força motriz do desenvolvimento do Batman. Foi um herói anónimo." Diga-se, no entanto, que Kane tudo fez para garantir esse anonimato.
Traído pelo seu coração, Bill Finger foi encontrado morto no seu apartamento num condomínio de Manhattan a poucos dias de completar 60 anos, e quando o movimento pela defesa dos direitos autorais ainda gatinhava. Corria o ano de 1974 e durante muito tempo especulou-se que o seu corpo teria sido sepultado numa campa anónima. A verdade, porém, é que foi cremado e as suas cinzas espalhadas pelo seu único filho, Frederick (era ele a misteriosa figura no início do texto), numa praia do Oregon. E esse poderia ter sido o epílogo desta apaixonante história se, em 2012, Marc Tyler Nobleman, um estudioso da 9ª Arte, não tivesse lançado Bill the Boy Wonder (Bill, o Menino-Prodígio), uma biografia ilustrada que exumou verdades incómodas.

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Em 2012, a biografia ilustrada de Bill Finger
 abriu caminho para o seu reconhecimento público.
A aturada investigação levada a cabo por Nobleman possibilitou a descoberta da única herdeira viva de Bill Finger: a sua neta Athena, nascida dois anos após a morte do avô. No corolário de uma árdua disputa judicial travada por Athena, em 2015 a DC consagrou por fim Bill Finger como cocriador do Batman. Mesmo a tempo da estreia do filme Batman versus Superman: O Despertar da Justiça. Pela primeira vez surgiu no grande ecrã a inscrição "Batman criado por Bob Kane com Bill Finger".
Num mundo perfeito, ler-se-ia "Batman criado por Bob Kane e Bill Finger". Num mundo perfeito, Bill Finger, há muito reconhecido pelos seus pares que até criaram um prémio com o seu nome, teria reclamado em vida o lugar no Olimpo da 9º Arte que é seu por direito. Mas este não é um mundo perfeito e nem sempre a amizade prevalece.
Desde dezembro de 2017 que uma esquina do Bronx tem o nome de Bill Finger. Uma homenagem toponímica que nada teve de aleatória. A esquina em questão dista poucos metros do Poe Park, local onde tantas vezes dois jovens amigos se encontraram para trocar ideias sobre a personagem que os haveria de imortalizar, mas também separar.

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Em Batman vs Superman, Bill Finger foi creditado
 pela primeira vez como coautor do Cavaleiro das Trevas.
Athena Finger na inauguração da esquina com o nome do avô:
 uma via para a eternidade.