05 fevereiro 2024

RETROSPETIVA: «MULHER-MARAVILHA»



  Para acabar com a mãe de todas as guerras instigada por Ares, a princesa guerreira das Amazonas troca o seu paraíso secreto pelo caótico Mundo dos Homens. Ao mesmo tempo que ilumina corações e mentes com o esplendor da Verdade, Diana terá de dissipar as sombras que ocultam o seu destino.

Título original: Wonder Woman
Ano: 2017
País: Estados Unidos da América
Duração: 141 minutos
Género: Drama / Ação / Fantasia / Super-heróis
Produção: Warner Bros. Pictures, DC Films e Atlas Entertainment
Realização: Patty Jenkins
Argumento: Allan Heinberg, Jason Fuchs e Zack Snyder
Distribuição: Warner Bros. Pictures
Elenco: Gal Gadot (Diana Prince / Mulher-Maravilha); Chris Pine (Steve Trevor); Robin Wright (Antíope); Danny Huston (General Erich Ludendorff); David Thewlis ( Patrick Morgan / Ares); Connie Nielsen (Rainha Hipólita); Elena Anaya (Doutora Isabel Maru); Lucy Davis (Etta Candy);Ewen Bremner (Charlie); Eugene Brave Rock (Chefe); Saïd Taghmaoui (Sameer)
Orçamento: 149 milhões de dólares
Receitas globais: 824 milhões de dólares

Anatomia de um épico pós-feminista

Malgrado a sua magna importância na mitologia da DC, a Mulher-Maravilha foi a última integrante da Trindade a transitar para o celuloide. Enquanto Batman e Super-Homem acumulavam décadas de acertos e fracassos no segmento audiovisual, a Princesa Amazona só ganhou visibilidade em 1975, com a série televisiva estrelada pela ex-Miss América Lynda Carter.
Inúmeras tentativas frustradas de adaptar a Mulher-Maravilha ao cinema deixaram muitos fãs conformados com a ideia de que esse seria um daqueles filmes sempre prestes a ser feito, mas que nunca sairia da gaveta. Habituada a superar as mais duras provações na banda desenhada, Diana fez também o caminho das pedras para chegar ao grade ecrã.
Com muitos avanços e recuos à mistura, o desenvolvimento da primeira longa-metragem da Mulher-Maravilha demorou mais de uma década. Os primeiros planos nesse sentido remontam a 1996, quando Ivan Reitman - cineasta eslovaco celebrizado por Ghostbusters - foi contratado como produtor e possível realizador.
Deixado a aboborar durante meia dúzia de anos, em 2001 o projeto passou para as mãos do produtor Joel Silver. Na esperança de ter Sandra Bullock no papel principal, Silver incumbiu Todd Alcott de escrever o argumento. Lucy Lawless, a atriz neozelandesa que por aqueles dias emprestava o corpo a outra princesa guerreira (Xena), também foi considerada.

Sandra Bullock confirmou os contactos - e o interesse -
para dar vida à Mulher-Maravilha no cinema.

Já sem Reitman a bordo, em março de 2005 a Warner Bros. subiu ao leme determinada em levar o projeto a bom porto. Patty Jenkins, que, dois anos antes, conquistara o público e a crítica com Monster - a produção independente que valeu o Óscar a Charlize Theron - foi a realizadora escolhida. Uma inesperada gravidez impediu-a, porém, de abraçar esse novo desafio.
Joss Whedon, que acabara de dirigir o seu primeiro filme (Serenity), tornou-se o novo timoneiro de uma nau à deriva. O enredo proposto por Whedon incluía Steve Trevor como narrador e uma violenta escaramuça entre Diana e a Rainha Hipólita, motivada pela decisão da princesa de trocar Temiscira pelo Mundo dos Homens. Apesar de nenhuma atriz ter sido oficialmente escalada para o papel, Kate Beckinsale e Angelina Jolie encabeçavam a lista de favoritas do estúdio.
Nas vésperas de Whedon abandonar o projeto, na primavera de 2007, a Warner Bros. e a Silver Pictures compraram um argumento escrito a meias por Matthew Jennison e Brent Strickland. Ambientada na II Guerra Mundial, a trama impressionou os executivos da Silver, ainda que, na verdade, tudo não tenha passado de um expediente para conservar os direitos da Mulher-Maravilha.
Quase em simultâneo, a Warner Bros. deu luz verde ao desenvolvimento de uma película baseada na Liga da Justiça. Justice League Mortal seria dirigido por George Miller (Mad Max) e contaria com a participação da Mulher-Maravilha, interpretada pela modelo australiana Megan Gale. Atrasos na produção e preocupações orçamentais ditaram, todavia, o seu cancelamento.

Fotos promocionais de Megan Cale como Mulher-Maravilha em Justice League Mortal.

Novamente em ponto morto, o filme da Mulher-Maravilha teve, por fim, ordem para avançar em 2010. Em resposta ao sucesso da recente franquia cinemática da Marvel, a Warner Bros. anunciou que a Princesa Amazona era, em conjunto com Flash e Aquaman, uma das três personagens da DC sinalizadas como prioritárias para uma adaptação ao grande ecrã.
À procura de uma visão feminina para o projeto, a Warner sondou várias realizadoras, incidindo a escolha sobre ninguém menos do que Patty Jenkins - que assim se tornaria a primeira mulher a dirigir o filme de uma super-heroína. Funcionando como uma prequela da participação da Mulher-Maravilha em Batman versus Superman: Dawn of Justice (2016), o enredo teria a I Guerra Mundial como pano de fundo e referenciaria tanto as histórias clássicas da autoria de William Moulton Marston como a aclamada fase pós-Crise de George Pérez.
Gal Gadot, ex-Miss Israel cuja carreira na representação começara com Fast & Furious (2009), foi a escolha pessoal - e muito contestada - de Zack Snyder para Mulher-Maravilha. Desde que fora confirmada a participação de Diana em Batman versus Superman que muitos fãs sonhavam ver Alexandra Daddario como princesa das Amazonas. Ao recusar explicar o motivo da sua escolha, Snyder endossou teorias conspiratórias que atribuíram a escalação de Gadot à influência do poderoso lóbi judaico.

Gal Gadot, Miss Israel 2004, foi a eleita para interpretar a Princesa Amazona.

A fotografia principal do filme começou a 21 de novembro de 2015, com as filmagens realizadas em França, Itália e Inglaterra a ficarem concluídas em 9 de maio de 2016, data de nascimento de William Moulton Marston.
Wonder Woman fez a sua antestreia no Pantages Theatre de Los Angeles a 26 de maio de 2017, uma semana antes de chegar às salas de cinema de todo o mundo. Apesar do rotundo sucesso de bilheteira (encerrou o Top 10 das produções mais lucrativas daquele ano) e das loas da crítica (eleito o melhor filme de 2017 pelo American Film Institute), não escapou à controvérsia.
Seguindo o exemplo libanês, vários países árabes, como a Argélia e a Tunísia, boicotaram a exibição de Wonder Woman, em protesto contra a escolha de uma ex-soldado israelita para protagonista. Em 2014, Gal Gadot declarara publicamente o seu apoio às ações militares de Israel na Faixa de Gaza, sendo acusada de sionismo pelos partidários da causa palestiniana.
Na frente doméstica, a polémica foi aditivada pelas sessões exclusivas para mulheres, organizadas em Austin, a capital texana. A chuva de protestos contra a discriminação dos homens sequer salpicou, porém, um épico pós-feminista em que a heroicidade e a vilania são unissexo.

Foi longa e árdua a jornada de Diana até chegar às salas de cinema.


Enredo

A trabalhar como restauradora de obras de arte no Museu do Louvre, em Paris, Diana é surpreendida pela entrega de uma fotografia antiga enviada por Bruce Wayne. O retrato desbotado em que ela posa entre um grupo de homens durante a I Guerra Mundial é o seu passaporte para uma viagem ao passado.
Muitos séculos atrás, Diana, a irrequieta filha da Rainha Hipólita, cresce alegremente na ilha escondida de Temiscira, lar das Amazonas. Essa raça de ferozes guerreiras foi criada pelos deuses olimpianos para proteger a Humanidade.
Certa noite, Hipólita deixa a pequena Diana fascinada com a história de como Ares, o deus da guerra, sentia ciúmes dos humanos e orquestrou a sua destruição. Quando os outros deuses porfiaram esforços para impedi-lo, Ares matou-os sem dó nem piedade. Também ele mortalmente ferido, Zeus usou o último resquício do seu imenso poder para derrotar Ares. Antes de perecer, Zeus preparou as Amazonas para o inevitável regresso do seu vingativo filho, e agraciou-as com uma arma infalível chamada Matadora de Deuses.
Pressionada pela sua irmã Antíope, Hipólita concorda relutantemente que Diana seja treinada para ser uma guerreira. As Amazonas depressa percebem o extraordinário potencial da sua princesa, enquanto esta se questiona sobre qual será o seu verdadeiro destino.

À medida que Diana cresce, a ilha vai-lhe ficando estreita.

Avançando para 1918, Diana salva o Capitão Steve Trevor de morrer afogado quando este, aos comandos de um avião roubado aos alemães, se despenha na costa de Temiscira. Ato contínuo, a ilha é invadida pelos marinheiros alemães que perseguiam Steve.
Na sangrenta batalha que se segue, as Amazonas, mesmo sofrendo pesadas baixas, desbaratam os invasores. Antíope, por sua vez, sacrifica-se para salvar Diana de uma bala perdida.
Mais tarde, atado pelo Laço de Héstia, que compele qualquer um a falar verdade, Steve Trevor revela que uma grande guerra devasta o mundo exterior e que ele é um espião Aliado. Na sua posse tem um caderno de anotações roubado à química-chefe dos alemães. Sob as ordens do General Erich Ludendorff, a Doutora Maru desenvolveu uma fórmula mais letal do gás mostarda, capaz de dissolver as máscaras antigás.
O horripilante relato de Steve deixa Diana profundamente angustiada. Convicta de que Ares está por trás da carnificina, a princesa das Amazonas, desafiando a vontade materna, parte para o Mundo dos Homens, acompanhada por Steve e armada com a espada Matadora de Deuses. Seja qual for o seu desfecho, mãe e filha sabem que aquela será uma viagem sem retorno.

Steve Trevor foi o primeiro homem a pisar Temiscira.

Em Londres, Diana e Steve entregam o caderno de Maru ao Conselho Supremo da Guerra, onde Sir Patrick Morgan, um ardoroso pacifista, tenta sem sucesso negociar um armistício com a Alemanha. Ao traduzir os apontamentos de Maru, Diana descobre que os alemães planeiam soltar o novo gás mostarda na Frente Ocidental.
Ao arrepio das ordens diretas do seu comandante e com o financiamento secreto de Sir Patrick, Steve recruta o espião argelino Sameer, o atirador escocês Charlie e o Chefe Napi, um contrabandista blackfoot. Juntamente com Diana, formam o grupo de desajustados que irá auxiliar Steve na sua arriscada missão de sabotagem no laboratório do terror de Maru.
Chegado à Bélgica, o grupo é impedido de prosseguir a sua jornada devido ao intenso fogo alemão. Num ímpeto, Diana avança sozinha pela Terra de Ninguém e, para assombro de todos, destrói a trincheira inimiga.
Depois de libertarem Veld, uma pequena vila ocupada pelos alemães, o grupo comemora brevemente, sendo o momento eternizado numa chapa fotográfica. Nessa mesma noite, enquanto dançam sob uma chuva de minúsculos flocos de neve, Diana e Steve apaixonam-se.

Retrato para a posteridade.

No dia seguinte, Steve é informado do baile de gala que se irá realizar no Alto Comando Alemão, a poucos quilómetros da vila. Steve e Diana infiltram-se separadamente na festa, com objetivos diferentes. Diana pretende matar Ludendorff, mas é impedida por Steve, receoso de que isso comprometa a sua missão primária: localizar e destruir o gás.
Ludendorff escapa em meio à confusão e ordena a libertação do gás sobre Veld, matando todos os seus habitantes. Culpando Steve pelo massacre, Diana persegue Ludendorff até ao aeródromo onde um bombardeiro alemão com destino a Londres está ser carregado com o gás.
Diana encurrala Ludendorff, mas fica confusa quando a morte do general não põe fim à guerra. Sir Patrick entra em cena e revela ser o disfarce humano de Ares. O deus da guerra admite ter influenciado subtilmente os homens, mas foram eles que, mercê da sua natureza corrupta e violenta, decidiram matar-se uns aos outros.
Diana golpeia Ares com a Matadora de Deuses, mas o vilão quebra a lâmina sem esforço. Divertido com a perplexidade de Diana, Ares revela que, como filha de Zeus e Hipólita, é ela, e não a espada, a verdadeira Matadora de Deuses.

Ares regressou da morte e trouxe o Inferno com ele.

Ao mesmo tempo que Diana e Ares retomam a sua contenda, Steve e a sua equipa destroem o laboratório de Maru. Depois de sequestrar o bombardeiro com a carga mortífera, Steve fá-lo explodir a uma altitude segura. No solo, Diana testemunha, impotente, o martírio do homem que ama.
Ares procura manipular a raiva e a dor de Diana, instigando-a a matar Maru, mas a Princesa Amazona já passou tempo suficiente no Mundo dos Homens para saber que existe bondade no coração humano. Poupando a vida a Maru, Diana redireciona o raio de Ares, matando-o para sempre. Mais tarde nessa noite, soldados e civis comemoram em conjunto o fim da mãe de todas as guerras.
De volta ao presente, Diana envia um email a Bruce Wayne, agradecendo-lhe a fotografia. O espectro da guerra volta a pairar sobre o Mundo dos Homens, mas a princesa das Amazonas será sempre uma Embaixadora da Paz.

Trailer

Curiosidades

*A grande batalha na praia que opõe as Amazonas aos marinheiros alemães no encalço de Steve Trevor demorou duas semanas a ser rodada e envolveu duas unidades de filmagem equipadas com seis câmaras. As tomadas de cena eram composições digitais de dois locais distintos: um com grandes falésias brancas, outro com um areal extenso o suficiente para acomodar a ação. Matthew Jensen, o diretor de fotografia, afirmou que, além de filmar um cenário visual tão complexo devido à profusão de câmaras, atores e figurantes, o maior desafio passou por manter a iluminação consistente ao longo de tantos dias, e com várias alterações meteorológicas à mistura;
*Interpretadas por supermodelos e atletas de alta competição de diversas nacionalidades (nenhuma delas grega), algumas das Amazonas usam um tecido cor de pele sobre um dos lados do peito. Trata-se de uma referência à forma como essa lendária casta de guerreiras era tradicionalmente retratada na arte clássica. Fontes antigas afirmam que as Amazonas amputavam ou queimavam o seio do lado dominante, de modo a melhorar o seu desempenho em combate, especialmente quando usavam arco e flechas. O seu nome deriva, aliás, do vocábulo grego "a-mazos", que significa "sem peito";

Brooke Ence, referência mundial de Crossfit,
deu corpo a uma Amazona.

*Após ser salvo dos alemães por Diana e suas irmãs de armas, Steve Trevor refere-se sarcasticamente ao lar das Amazonas como Ilha Paraíso. Era esse o nome original da ilha na banda desenhada e, também, na série televisiva da Mulher-Maravilha. No pós-Crise, quando George Pérez recontou a origem da Princesa Amazona, a Ilha Paraíso foi rebatizada de Temiscira, em tributo à mitologia helénica;
*O General Erich Ludendorff foi uma personagem real e de má memória para os soldados inimigos. Valendo-se da sua condição de comandante supremo das forças alemãs durante a I Guerra Mundial, autorizou o uso do famigerado gás mostarda, um agente corrosivo capaz de derreter tecidos moles e que, dependendo do grau de exposição, podia causar cegueira temporária ou permanente, danos duradouros nos pulmões e, no limite, uma morte excruciante. Após o Armistício, Ludendorff, como tantos outros ex-combatentes germânicos, sentiu-se traído pela classe política e apoiou o golpe fracassado de Adolf Hitler em Munique, mas distanciou-se do futuro chanceler muito antes do Partido Nazi alcançar o poder;
*O relógio que Steve Trevor usa é um relógio de bolso adaptado com um estojo de couro para ser usado no pulso. Geralmente presos numa corrente, os relógios de bolso eram os mais comuns na época, mas provaram-se impraticáveis na linha da frente. Uma vez que o tempo era fundamental para coordenar ações em grande escala, como ataques de infantaria apoiados por barragens de artilharia, os soldados passaram a usar os relógios nos pulsos. No final da guerra, a moda espalhou-se entre os civis, tornando os relógios de bolso acessórios obsoletos;
*A escolha da atriz espanhola Elena Anaya para interpretar a Doutora Maru (uma mulher desfigurada que esconde as cicatrizes com uma prótese plástica) foi uma homenagem de Patty Jenkins à sua atuação em A Pele Onde Eu Vivo (2011), de Pedro Almodóvar. Uma das mais antigas adversárias da Mulher-Maravilha na banda desenhada, Maru surgiu no início de 1942, no rescaldo do ataque a Pearl Harbor, como uma princesa japonesa que chefiava o departamento de armas químicas dos nazis, sendo por isso alcunhada de Doutora Veneno;

Doutora Veneno é uma das mais antigas 
adversárias da Mulher-Maravilha.

*Melhor amiga e companheira de aventuras da Mulher-Maravilha, Etta Candy foi criada, tal como a própria Diana, por William Moulton Marston e H.G. Peter. Apesar de ter sido várias vezes reinventada desde a Idade de Ouro, foi quase sempre retratada como uma mulher alegre, anafada e afoita. Descontando a mudança de nacionalidade (de americana passou a inglesa), a sua congénere cinematográfica evoca a aparência e maneirismos da personagem original;
*Patty Jenkins, uma grande admiradora da série televisiva da Mulher-Maravilha, convidou Lynda Carter e Lyle Wagoner (o Steve Trevor original) a participarem no filme, mas ambos foram impedidos de aceder ao pedido da realizadora, devido aos seus compromissos profissionais. Ignora-se que papéis teria Jenkins em mente, mas muitos fãs sonhavam com uma Rainha Hipólita interpretada por Lynda Carter;
*Sucedendo no papel a Cathy Lee Crosby e Lynda Carter, Gal Gadot foi a terceira atriz (e a primeira não americana) a emprestar corpo à Mulher-Maravilha. Apesar do treino intensivo a que se sujeitou durante nove meses e que lhe acrescentou quase oito quilos de massa muscular, Gal não mereceu a aprovação de muitos fãs, desagradados com o seu corpo demasiado esguio. Quando foram necessárias refilmagens, Gal, grávida do seu segundo filho, insistiu em fazer ela própria as cenas mais arriscadas;

Cathy Lee Crosby (1974) e Lynda Carter (1975-79) foram
as primeiras Mulheres-Maravilha de carne e osso.

*No início de 2021, Zack Snyder compartilhou na suas redes sociais uma imagem conceptual que mostrava Diana durante a Guerra da Crimeia (1853-1856). Além de ter sido o primeiro conflito bélico a ser fotografado (e um dos primeiros a ser telegrafado), a Guerra da Crimeia foi, pela sua escala continental, uma espécie de prelúdio da I Guerra Mundial. A imagem em questão mostrava Diana segurando uma lança e três cabeças decapitadas, sugerindo que a história idealizada por Snyder teria sido muito mais sombria;
*Na cena extra incluída na versão DVD e Blu-ray, Etta Candy, Sameer, Charlie e o Chefe voltam a reunir-se logo após o Armistício, com vista à preparação de uma missão secreta envolvendo uma Caixa Materna. A cadeia de eventos por eles colocada em marcha culminaria, séculos mais tarde, na formação da Liga da Justiça para impedir a invasão da Terra pelas hordas de Darkseid;
*Perto do final do filme, Diana descobre, enfim, a sua verdadeira origem e propósito. A princesa das Amazonas é o fruto da união transgressora da Rainha Hipólita com Zeus, fazendo de Ares seu meio-irmão. Esta relação familiar remete para a versão moderna da Mulher-Maravilha apresentada na fase Novos 52, mas sem qualquer substrato comum com a mitologia grega. Na história clássica, Hipólita era filha de Ares e, portanto, neta de Zeus (sendo Diana sua bisneta).


Veredito: 80%

Não era de estranhar o ambiente de receosa expectativa que rodeava a estreia da primeira longa-metragem da Mulher-Maravilha. O fogo cerrado da crítica sobre Batman versus Superman e Esquadrão Suicida parecia ter ferido de morte a incipiente franquia cinematográfica da DC. Como Atlas, Diana foi, pois, chamada a carregar nos ombros o peso, não do mundo, mas de todo um universo expandido.
Ciente da enormidade da tarefa, a realizadora Patty Jenkins tomou a decisão sensata de optar por um caminho simples. Mulher-Maravilha é uma história clássica de origem, estruturada para apresentar ao grande público a campeã da Verdade e do feminismo criada por William Moulton Marston, no já distante ano de 1941.
Na sua narrativa leve e divertida, intercalada por empolgantes cenas de ação, são óbvias as influências de Superman (1978). Acresce ainda um bónus raro nas atuais produções do género: apesar da referência inicial a Batman versus Superman, não é necessário ter assistido aos filmes anteriores da franquia para compreender a história.
Essa combinação - simplicidade narrativa e apelo emocional - confere à película uma aura de cinema antigo, que se distancia do tom sombrio dos seus antecessores, resgatando graciosamente o Universo Estendido da DC da pátina do cinismo e da desesperança.
No cômputo geral, Mulher-Maravilha é uma obra bem balanceada. Até as cenas de luta, que geralmente se estendem por longos e fastidiosos minutos de CGI e câmara lenta, acontecem no tempo certo. Em vez de ser a atração principal, a pirotecnia digital serve apenas como uma ferramenta.
Embora coberto de virtudes, o filme tem também os seus pecadilhos, desde logo a caracterização dos vilões. Ares é o gatilho para a transformação de Diana em Mulher-Maravilha, mas a sua revelação ocorre tardiamente e não surpreende (quase) ninguém. Rasos como pires, o General Ludendorff e a Doutora Maru são praticamente caricaturas vilanescas. Esta última podia perfeitamente ter sido substituída por um cientista genérico, já que a sua função na trama se resume a criar o gás.
Apesar dos pesares, Mulher-Maravilha é o filme que a DC precisava, que os fãs pediam e que Diana merecia. A sua mensagem simples, calorosa e universal, relembra-nos que os heróis e heroínas servem para nos inspirar, não para deprimir-nos. Para isso já basta o mundo contingente dos homens e mulheres comuns.

A Mulher-Maravilha reergueu sozinha o Universo Estendido da DC.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre William Moulton Marston e a fase de George Pérez disponíveis para leitura complementar.












20 setembro 2023

ETERNOS: BOB KANE (1915-1998)

 
  Imortalizou-se como autor único do Batman mantendo o seu parceiro criativo perpetuamente na penumbra. Apesar da sua imensurável importância para a cultura popular, tem o seu legado contestado. Visionário ou charlatão, o criador plástico do Maior Detetive do Mundo é ainda um enigma por resolver.

Desde a sua estreia, já lá vão quase 85 anos, Batman conquistou os corações e as mentes de sucessivas gerações, sendo a sua popularidade transversal a todas elas. Surgido nos anos terminais da Grande Depressão, o Cruzado Encapuzado foi a resposta ao desejo de justiça de todos quantos sofriam com a dor da perda.
Do cinema aos jogos de vídeo, Batman foi adaptado a todos os segmentos culturais, tornando-se um ícone global e uma das franquias mais lucrativas de sempre. Muitos consideram, no entanto, que o maior vilão da história do Cavaleiro das Trevas não é o Joker, tão-pouco Ra's al Ghul, mas sim o seu próprio criador.
Apesar de ter dado ao mundo um dos seus maiores heróis, Bob Kane teve uma relação difícil com a verdade e com a ética. Colecionou polémicas aguerridas e recusou sempre dividir os louros da sua maior criação, tornando-se assim uma das figuras mais incompreendidas da 9ª Arte. Alguns dos seus detratores vão ainda mais longe, colando-lhe o selo pesado de fraude.
Essa perceção negativa relativamente a um dos maiores titãs da indústria dos comics assenta, parcialmente, em equívocos e ideias feitas. Todas as histórias têm dois lados, e esta não foge à regra. Importa, por isso, reexaminar o legado de Bob Kane com a lupa da objetividade. Exatamente como faria o Maior Detetive do Mundo: um delicado exercício de arqueologia forense que permita à História julgar um indivíduo e não a sua caricatura.
Nova-iorquino de gema, Bob Kane nasceu no Bronx a 24 de outubro de 1915, Mas esse não era o seu nome batismal. Primogénito de um casal de imigrantes judeus asquenazes originários da Europa Oriental, na sua certidão de nascimento começou por constar Robert Khan.
O salário do pai, tipógrafo no jornal New York Daily News, proporcionava uma vida confortável à família. Ao contrário de muitas crianças daquela época, Bob teve, por isso, uma infância tranquila e sem privações.
Ainda petiz, Bob descobriu o fascínio pelo desenho e, ao longo de toda a vida, descrever-se-ia como uma rabiscador. Inseparável dos seus lápis de carvão, gostava de desenhar em folhas de papel, panfletos e até em caixas de cereais.
Com apenas dez anos, Bob encontrou a sua vocação profissional: queria ser cartunista. O pai, que conhecia bem a realidade desse ofício, trazia para casa os suplementos dominicais do jornal, para que o filho pudesse decalcar as tiras e outras ilustrações.

Os suplementos dominicais do New York Daily News
levaram Bob Kane a querer ser cartunista.

Sempre encorajado pelos pais, o pequeno Bob continuou afincadamente a aperfeiçoar o seu talento. Sonhava poder, um dia, ganhar a vida a rabiscar. Mal sabia ele que um desses rabiscos o imortalizaria no imaginário popular.
Por vezes, o pai de Bob levava, também, alguns dos desenhos do filho para os cartunistas do jornal avaliarem. Os artistas davam opiniões, dicas e, sobretudo, incentivos. Todos lhe auguravam uma carreira promissora a trabalhar com o lápis.
Mais ainda depois de Bob ter ficado em segundo lugar num campeonato interestadual de desenho. O objetivo da competição era descobrir quem desenhava melhor as tiras Just Kids, da autoria de Gene Byrne. Bob tinha então quinze anos e, pouco tempo depois, começou a vender as suas próprias bandas desenhadas. Uma delas rendeu-lhe os primeiros cinco dólares - quantia apreciável para a época - da imensa fortuna que acumularia ao longo da vida.
Por essa altura já Bob estudava no DeWitt Clinton - o maior liceu dos EUA, famoso pelo seu edifício em forma de H -, onde contraiu estreita amizade com outra futura luminária da 9ª Arte: Will Eisner. Seria, aliás, pela mão do criador de Spirit que Bob daria, anos mais tarde, os primeiros passos na indústria dos comics.
A par do desenho, Bob tinha no cinema outra das suas paixões. Influenciado por ambas, decidiu que queria, afinal, trabalhar no campo da animação. Em 1934, logo após ter concluído o ensino  secundário, Bob foi estagiar para os Estúdios Max Fleischer, que tinham em Betty Boop e Popeye os seus ativos mais valiosos. 

Bob Kane conseguiu o primeiro emprego nos Estúdios Fleischer,
os mesmos que, em 1943, produziram a primeira animação do Super-Homem.

Nos dois anos imediatos, a vida correu-lhe de feição: ao emprego de sonho Bob somou uma bolsa de estudo. Foi graças a ela que pôde estudar Arte na Cooper Union, uma prestigiada universidade privada de Manhattan, conhecida por privilegiar a criatividade dos seus alunos em detrimento da técnica. Ironicamente, Bob Kane ganharia reputação de ser mestre na técnica de se apropriar de ideias de outrem...
Pensando em reforçar a sua imagem como artista, tão-logo atingiu a maioridade Bob contratou um advogado para alterar legalmente o seu nome. O exótico Robert Khan deu assim lugar ao mais familiar Bob Kane. Essa mudança de identidade denota, por outro lado, o pouco apego de Bob à sua herança judaica - de resto, raramente mencionada na sua autobiografia.
Bob Kane ingressou no mundo dos quadradinhos em 1936. Como ilustrador freelancer da Fiction House, ainda nesse ano teve a sua primeira arte publicada, no terceiro número da revista Wow, What a Magazine!. Embora tenha colaborado em outros projetos, o seu maior contributo para a editora de Sheena, a Rainha da Selva foi Hiram Hick, série cómica por ele desenhada e arte-finalizada.

Hiram Hick foi o primeiro trabalho profissional de Bob Kane.

Quando, em 1937, Will Eisner se associou a Jerry Iger para fundar um dos primeiros estúdios que forneciam material às editoras que se aventuravam a publicar histórias aos quadradinhos, Bob Kane aceitou de bom grado o convite do amigo para reforçar a equipa de artistas residentes.
Durante essa fase, o seu trabalho mais notável foi Peter Pupp. Não obstante ser apenas mais uma série protagonizada por animais antropomórficos, destacava-se das demais pelo tom sombrio. Ao serviço da Eisner & Iger, Bob produziu também material para as duas empresas que dariam origem à DC Comics.
Paralelamente a tudo isto, Bob tinha uma vida social muito preenchida. Era habitué em festas, e foi numa delas que conheceu Bill Finger, seu futuro parceiro criativo. Apesar das personalidades contrastantes dos dois jovens (Bob era extrovertido, Bill ensimesmado), unia-os a paixão pelos quadradinhos e pelos filmes.
Finger era, por aqueles dias, um vendedor de sapatos com aspirações literárias, ao passo que Bob era o eterno rabiscador que precisava de alguém que lhe escrevesse as histórias. Os dois tornaram-se amigos e Bob prometeu a Bill um emprego como argumentista. Do casamento criativo de ambos nasceria um dos maiores totens da cultura popular do século XX. Mas, também, uma controvérsia que ainda hoje faz correr rios de prosa.

Em Bill Finger Bob Kane encontrou
 o seu parceiro criativo de excelência. Juntos, criariam um ícone global.
Mas apenas um ficaria para a História

Em 1939, o editor-chefe da National Comics Publications, Vincent Sullivan, procurava uma nova personagem capaz de reproduzir o grandioso sucesso comercial alcançado pelo Super-Homem no ano anterior. Bob Kane chamou a si a difícil missão de, durante um fim de semana, criar outro justiceiro fantasiado capaz de alavancar as vendas da editora.
Depois de passar a noite acordado a rabiscar freneticamente, Bob criou o Bat-Man (era esta a grafia original), muito diferente, contudo, do Homem-Morcego que todos conhecemos. Em vez do traje cinzento com capa e capuz negros, o Bat-Man vestia de vermelho, usava uma mascarilha e tinha um par de asas rígidas acopladas às costas. Este último elemento estético referenciava o ornitóptero de Leonardo da Vinci. Nesse momento primordial, Bob ponderou crismar a sua criação de Birdman (Homem-Pássaro), mas depois teve uma ideia melhor.
Apesar de os morcegos o deixarem apavorado, Bob era fascinado por eles. O medo que esses animais noctívagos habitualmente despertam nas pessoas inspirou-o a criar uma personagem capaz de intimidar criminosos com a sua silhueta ameaçadora.

O Bat-Man de Bob Kane era muito diferente do Batman que todos conhecemos.

Bob intuiu, porém, que o seu Bat-Man era ainda uma pedra bruta, à espera de ser burilada. Nada melhor, portanto, do que pedir sugestões ao seu amigo Bill Finger - que, entretanto, começara a trabalhar como seu escritor-fantasma.
Influenciado, fundamentalmente, pelo Zorro de Douglas Fairbanks e pelo filme mudo The Bat (1926), Finger reformulou por completo o visual do Batman. De uma penada, transformou-o num detetive científico como Sherlock Holmes, descartando o vigilante alado idealizado por Bob Kane. Finger deu ainda ao Homem-Morcego uma identidade civil e uma cidade para morar - Bruce Wayne e Gotham City, respetivamente.
Sucede que, além de o Batman ser uma espécie de monstro de Frankenstein costurado quase inteiramente a partir de ideias preexistentes, a sua primeira aventura é um despudorado plágio. Publicado em Detective Comics #27, de maio de 1939, O Caso da Sociedade Química, saído da pena de Bill Finger, foi decalcado de Partners of Peril, um conto do Sombra dado ao prelo três anos antes. Ambas as histórias acompanham a investigação motivada pelas misteriosas mortes de poderosas figuras da indústria química.
Ao parecer estético contemporâneo, tal cópia renderia um processo judicial com vitória garantida para os detentores dos direitos do plagiado. Mas, para sorte dos plagiadores, isso nunca aconteceu. Talvez porque, em bom rigor, o Batman foi, depois do Besouro Verde e do Detetive Fantasma, o último espécime de uma série de imitadores do Sombra. 


A primeira história do Batman foi tirada a papel química de um conto do Sombra.

De todo o modo percebe-se o que levou Bob Kane e Bill Finger a lançarem mão de tal subterfúgio: precisavam de uma história que vendesse o Batman. Condicionado na sua criatividade pelo prazo apertado, Finger reescreveu uma história bem-sucedida,  ajustando-a à medida do seu novo protagonista. Nem Bob nem Bill, parceiros neste crime quase perfeito, alguma vez negaram o plágio - que, por sinal, não foi caso único no percurso editorial do Cavaleiro das Trevas.
Com efeito, também a origem do Batman, revelada em Detective Comics #33 (novembro de 1939), teve muitos dos quadros e painéis retirados do livro infantil Junior G-Men, ilustrado por Henry Vallely. Até o morcego que entra repentinamente pela janela da mansão Wayne imita uma cena de Popular Detective #2 (dezembro de 1934). Por sua vez, a imagem de encerramento foi decalcada de um desenho de Tarzan feito por Hal Foster.
Como se tudo isso não bastasse, o juramento de Bruce Wayne reproduz, quase ipsis verbis, o juramento solene do Fantasma. Enquanto a personagem que Lee Falk idealizou em 1936 jurava, sobre o crânio do assassino do seu pai, dedicar a vida à aniquilação da pirataria, da cobiça e da crueldade em todas as suas formas, Batman jurava vingar a morte dos pais dedicando o resto da vida a combater o crime.
Como se sabe, nada disto impediu que o Batman se tornasse a nova mina de ouro da DC, passando inclusivamente a disputar ao Super-Homem o estatuto de figura de proa da editora. Menos de um ano volvido sobre a sua estreia em Detective Comics, o Cruzado Encapuzado ganhou revista própria e um ajudante adolescente. Robin, o Menino Prodígio, serviu para expandir a audiência das histórias do Batman, cativando as crianças que não se identificavam com o taciturno guardião de Gotham City.

Depois do Super-Homem, Batman foi o segundo super-herói a ter a sua própria revista.
Robin ajudou-o a caçar bandidos e a prender leitores de palmo e meio.

Animado pelo crescente sucesso da sua personagem, Bob Kane foi um dos raríssimos profissionais dos quadradinhos a ter a clarividência de, assessorado pelo advogado do pai, negociar um contrato que lhe renderia fama e fortuna. Além de bastante lucrativo, o acordo incluía uma cláusula que o consagrava, a título perpétuo, como autor único do Batman.
Como foi isto possível? A resposta é simples. Bob Kane nunca encarou Bill Finger como um sócio, mas sim como um empregado. Era igualmente essa a perceção da DC, que sempre tivera em Bob o seu único interlocutor em todo o processo negocial. Finger, ademais, preferiu ficar na penumbra a ter de voltar a vender sapatos para ganhar a vida.
Assim sendo, quando a DC começou a requisitar mais histórias do Batman do que Kane conseguia desenhar, a solução passou pela contratação de artistas fantasmas. A partir de um estúdio instalado no edifício do New York Times, Dick Sprang, George Roussos, Jerry Robinson e tantos outros emprestavam secretamente o seu traço ao Homem-Morcego. Nenhum deles foi no entanto alguma vez creditado, levando os leitores a acreditar ser Bob Kane a única pessoa por detrás do seu herói favorito.
A partir de 1943, Bob Kane passou a dedicar-se por inteiro às tiras do Batman. Apesar disso, era a sua assinatura estilizada que continuava a surgir em todas as histórias do Cruzado Encapuzado publicadas nas revistas da DC. Situação impensável nos dias que correm, mas importa lembrar que, naquela época, as regras era muito diferentes. Direitos de autor e vínculos contratuais eram conceitos estranhos numa indústria dominada por gente pouco recomendável. A própria DC, por exemplo, foi fundada por ex-contrabandistas de álcool durante a Lei Seca...
Acresce ainda o facto de que, para todos os efeitos, os artistas fantasmas de Bob Kane eram seus funcionários. Em razão dessa circunstância, Kane pôde continuar a colher todos os louros, ao ponto de se tornar quase tão famoso como o próprio Batman.
A ética profissional de Bob Kane voltaria, entretanto, a ser colocada em xeque num episódio que envolveu os criadores do Super-Homem. Na viragem da década de 40, quando Jerry Siegel e Joe Shuster resolveram processar a DC na esperança de recuperarem os direitos da sua personagem, convidaram Kane a juntar-se a eles. Em vez disso, ele usou essa informação para renegociar o seu próprio contrato com a Editora das Lendas.
Perante a renitência da DC em aceitar os novos termos, Bob Kane alegou ter assinado o contrato original quando ainda era menor de idade. Apesar de se tratar de uma absoluta falsidade (em 1939 Kane tinha 24 anos), contou com a cumplicidade dos pais e com o misterioso sumiço da sua certidão de nascimento para lograr os seus intentos.
Ainda hoje considerado um dos melhores contratos do setor, o novo acordo celebrado por Bob Kane garantia-lhe direitos de revisão e uma melhor percentagem dos lucros decorrentes do licenciamento do Batman. Foi graças a esta audaciosa jogada que, nas décadas seguintes, Kane acumulou uma fortuna estimada em dez milhões de dólares.

Uma modelo fantasiada de Mulher-Gato posa para Bob Kane.
Para o mundo, ele era o único criador do Batman.

A pantomima perdurou até 1965, quando Bill Finger, na qualidade de orador convidado numa das primeiras convenções de quadradinhos, revelou publicamente as suas múltiplas contribuições para a conceção do Batman e respetiva mitologia. Bob Kane, que até aí tinha tido por hábito resguardar-se das críticas sob um manto de fleuma, reagiu com inesperada violência.
Numa carta aberta com várias páginas, reafirmou ser ele o único criador do Batman e, carregando nas tintas, acusou Bill Finger de mentir. Mas nada seria como dantes. Nos bastidores editoriais, a surdina foi ficando cada vez mais ruidosa, com muitos profissionais dos quadradinhos a corroborarem as palavras de Finger.
Quando a polémica estalou, já Bob Kane tinha trocado, há vários anos, Nova Iorque por Los Angeles, e os quadradinhos pela televisão. Em 1965, aceitara colaborar com a série em ação real do Batman. Apesar de se tratar de um programa cómico, Kane apreciava genuinamente o formato porque sempre considerou ridículo o conceito de super-herói.
Na Cidade dos Anjos, Bob Kane conseguiu realizar também o sue velho sonho de criar um desenho animado. Courageous Cat and Minute Mouse - um gato e um rato antropomórficos que, juntos, combatiam  o crime - parodiavam as aventuras do Duo Dinâmico. À boleia do sucesso desse seu primeiro projeto televisivo, Kane criou outra série animada intitulada Cool McCool, a qual acompanhava as trapalhadas de um agente secreto inepto.
Bon vivant, Kane apreciava os prazeres mundanos e a companhia de celebridades, como Sammy Davis Jr. ou Muhammad Ali. Sentia-se como peixe na água nas glamorosas festas de Hollywood e não parecia sentir saudades de Nova Iorque ou da sua vida anterior.

Entre 1960 e 1962, foram para o ar 130 episódios de Courageous Cat and Minute Mouse,
 paródias de Batman e Robin.

A partir do final da década de 60, quando a DC reviu por fim a sua linha editorial, creditando os verdadeiros artistas das histórias do Batman, Bob Kane passou a ser apenas discretamente mencionado como criador da personagem,
Mercê desse novo status quo, Bob Kane atravessou a década seguinte em relativo ostracismo. Dedicando-se agora às Belas Artes, expunha os seus quadros em galerias e museus da Costa Oeste. Apesar de visualmente apelativas, parte dessas obras foram na verdade pintadas por artistas fantasmas. Por causa disso, alguns dos críticos que escrutinaram o trabalho de Kane não hesitaram em expô-lo como charlatão.
A reputação de Bob Kane foi ainda mais beliscada pela morte de Bill Finger na mais abjeta pobreza. Acusado de ter negligenciado o amigo e parceiro criativo, Kane, então com 59 anos, antecipou a reforma e saiu de cena. Mas nem por isso caiu nos alçapões da História para onde atirou tantos dos que com ele colaboraram.
Bob Kane voltou a atrair os holofotes mediáticos em 1989. No ano em que se celebrava o cinquentenário do Cruzado Encapuzado, Kane lançou (com a ajuda, está bem de ver, de um escritor fantasma) a sua autobiografia sugestivamente intitulada Batman and Me. Numa das entrevistas em que se desdobrou para promover a obra, teve um rebate de consciência e reconheceu, urbi et orbi, a tremenda injustiça a que sujeitara Bill Finger. Um pequeno atro de contrição que os mais cínicos interpretaram como um golpe de marketing.

Em 1989, Bob Kane lançou o primeiro volume da sua autobiografia.
O segundo, intitulado Batman and Me - The Saga Continues, seria lançado em 1996.

Ainda em 1989, Bob Kane colaborou como consultor no filme Batman, de Tim Burton. Problemas de saúde impediram-no de fazer a pequena participação prevista na película, mas é da sua autoria o desenho do morcego gigante que o cartunista do Gotham Gazette mostra a Alexander Knox. 
Reabilitado perante os seus pares, nos últimos anos de vida Bob Kane foi por eles cumulado de honrarias. Depois de ter sido introduzido no Jack Kirby Hall of Fame em 1994, dois anos mais tarde passou a figurar também no Will Eisner Comic Book Hall of Fame.
Bob Kane faleceu, de causas naturais, no dia 3 de novembro de 1998, menos de um mês depois de ter completado 83 anos. Foi sepultado num cemitério de Hollywood Hills e a sua lápide perpetua-o como autor único do Batman. 
Visionário aos olhos de alguns, charlatão aos olhos de muitos, Bob Kane continua a ser uma figura controversa. Não por acaso, o único vilão do Batman que ele comprovadamente criou sozinho foi o Duas-Caras. Dificilmente haverá  melhor alegoria para a ambiguidade moral daquele que, mesmo com o legado maculado pelo oportunismo e falta de escrúpulos, foi um dos maiores vultos da 9ª Arte.

Na lápide de Bob Kane pode ler-se que Batman foi uma criação da "mão de Deus".
Onde foi que já ouvimos isto?



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Textos sobre Bill Finger, Jerry Robinson, Dick Sprang, Joker e Robin disponíveis para leitura complementar.






  



 













 











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23 junho 2023

HERÓIS EM AÇÃO: DOUTOR ESTRANHO


  Antes de perder tudo num golpe do destino, Stephen Strange somava fama, fortuna e soberba. O seu doloroso despertar interior começou no fundo do poço e culminou no topo do mundo. No místico Tibete, fronteira entre os mundos físico e espiritual, estudou as artes arcanas e, como Feiticeiro Supremo, encontrou novo propósito de vida.

Denominação original: Doctor Strange
Editora: Marvel Comics
Criadores: Stan Lee & Steve Ditko
Primeira aparição: Strange Tales #110 (abril de 1963)
Identidade civil: Stephen Vincent Strange
Espécie: Humano
Local de nascimento: Filadélfia, Pensilvânia
Parente conhecidos: Eugene e Beverly Strange (pais, falecidos); Victor Strange / Khiron (irmão, presumivelmente falecido); Donna Strange (irmã, falecida); Clea (esposa); Umar e Orini (sogros)
Ocupação: Outrora um dos mais renomados neurocirurgiões do mundo, Stephen Strange desdobra-se atualmente entre as funções de Feiticeiro Supremo, aventureiro e consultor do Oculto.
Base de operações: Sanctum Sanctorum, Greenwich Village (Nova Iorque)
Afiliações: Fundador e líder de facto dos Defensores.
Némesis: Dormammu 
Poderes e parafernália: Após décadas de estudo intensivo das artes místicas, o Doutor Estranho é um dos mais poderosos magos de todo o Multiverso Marvel. Transmutação da matéria, consciência cósmica, projeção astral ou abertura de portais interdimensionais são apenas alguns dos seus truques mais aparatosos. Diz-se ainda que seria capaz de matar um homem com um simples gesticular das mãos e, sozinho, já levou Galactus ao tapete.
Agamotto, Hoggoth e Oshtur, a tríade de divindades extradimensionais conhecidas com os Vishanti, são os principais patronos mágicos do Feiticeiro Supremo. É canalizando a energia virtualmente ilimitada dessas e de outras entidades metafísicas, como os Principados ou a Octossência, que o Doutor Estranho executa um repertório quase infinito de feitiços, encantamentos e sortilégios. Em razão dessa sinergia espiritual, ele é sempre tão poderoso quanto o deus por ele invocado.
Os Vishanti assumem diferentes disfarces porque
 as suas verdadeiras formas seriam incompreensíveis para os humanos.

Algumas dessas entidades são tradicionalmente invocadas para efeitos específicos: Ikonn para projetar ilusões; Serafim para proteção mística; Agamotto para revelar a Verdade; Cyttorak para restringir adversários; Cinnibus para dissipar a escuridão, etc.
Aparentemente, a substância dos reinos místicos é, por vezes, invocada em vez dos seres que os governam. Um bom exemplo é quando o Doutor Estranho manipula as Chamas de Faltine da Dimensão Negra, lar do seu arqui-inimigo Dormammu. Graças a esse subterfúgio, o Feiticeiro Supremo consegue invocar entidades malignas sem ficar à mercê delas. Este não é, no entanto, um exercício isento de perigos.
Seguindo os ensinamentos do seu mestre - o enigmático Ancião -, o Doutor Estranho consegue também executar feitiços menos elaborados manipulando apenas a energia mística ambiente. Com recurso a ela pode, entre muitas outras coisas, lançar rajadas ectoplasmáticas, comunicar telepaticamente ou erguer campos de força.
O Doutor Estranho tem ainda à sua disposição uma panóplia de relíquias e artefactos místicos, na qual pontificam o Olho de Agamotto e o Manto da Levitação.
Assim como o Mjolnir, o Olho de Agamotto só pode ser usado por aqueles que provarem ser dignos. Além de potenciar os talentos psíquicos do Doutor Estranho, a sua luz trespassa todo o engano e é anátema para demónios e outras criaturas funestas.
Existe, ademais, um forte vínculo entre o Olho de Agamotto e o Orbe de Agamotto, outro dos instrumentos místicos ao dispor do Doutor Estranho. Um e outro dotam o seu usuário de clarividência, mas o alcance do segundo é muito superior. Espécie de bola de cristal hiperpoderosa, o Orbe permite a perceção nítida de qualquer lugar em qualquer dimensão ou reino do Multiverso, tendo como principal função monitorizar potenciais ameaças externas à Terra. 

Inspirado no Olho que Tudo Vê de Buda, o Olho de Agamotto
 é autoconsciente e só pode ser usado para magia benigna.

Construído no local de sacrifícios pagãos, o Sanctum Sanctorum, residência e base de operações do Doutor Estranho, é um ponto focal para energias sobrenaturais. Na sua biblioteca repousam centenas de tomos esotéricos, incluindo o Livro de Vishanti. Trata-se do repositório indestrutível de todos os feitiços de Magia Branca e do conhecimento arcano acumulado por diferentes gerações de magos. Stephen Strange tornou-se seu fiel depositário quando, após a morte do Ancião, foi arvorado a Feiticeiro Supremo.
Complementarmente ao estudo das artes místicas, Stephen Strange foi também iniciado pelos monges tibetanos nas artes marciais, que continua a praticar regularmente com Wong. Lutador habilidoso, o seu estilo já foi elogiado pelo próprio Mestre do Kung Fu. O Doutor Estranho exibe igualmente notável destreza no manuseamento de espadas, lanças e outras armas magicamente criadas por ele.
Seja a batalha física ou espiritual, o Doutor Estranho será sempre um formidável guerreiro do Bem contra o Mal.

Fraquezas: A despeito do incomensurável poder subjacente à sua condição de Feiticeiro Supremo, Stephen Strange ainda é apenas um homem. Desse fator humano decorrem tanto limitações físicas quanto metafísicas.
Durante as frequentes incursões do Doutor Estranho no plano astral, por exemplo, o seu corpo físico permanece num espécie de transe inerte. Nesse estado em tudo semelhante à morte, Strange fica vulnerável a ataques de qualquer tipo. Se deles resultarem ferimentos fatais, ele ficará para sempre preso num limbo incorpóreo.
O mesmo sucederá caso Strange permaneça mais do que 24 horas na sua forma etérea. Ultrapassado esse limiar crítico, o seu corpo físico começará a deteriorar-se a um ritmo acelerado podendo, no limite, culminar na sua morte.

A projeção astral comporta
 consideráveis riscos para o corpo físico do Doutor Estranho.

Outra brecha passível de ser explorada pelos inimigos do Doutor Estranho é a sua elevada dependência relativamente a encantamentos recitados, gestos ritualísticos e artefactos místicos. Como já referido, os seus feitiços mais poderosos extraem energia de entidades divinas invocadas verbalmente e, quase sempre, com a ajuda de amuletos. O Doutor Estranho ficará contudo impedido de conjurá-los se for amordaçado, manietado e/ou privado do acesso ao seu arsenal arcano. 
Algo que também acontecerá se ele perder os favores dos seus patronos sobrenaturais. Sem o poder insondável de Vishanti, Agamotto ou Cyttorak, o Doutor Estranho seria incapaz de se bater em paridade de armas com adversários como Dormammu, Pesadelo ou Mefisto.
A Alta Magia, por sua vez, cobra sempre um proporcional preço físico aos seus usuários, e o Feiticeiro Supremo não foge à regra. Travar batalhas místicas, particularmente no plano astral ou em outras dimensões, requer um esforço enorme. Do qual podem resultar desde tonturas momentâneas a comas prolongados.
Apesar do seu passado ligado à prática da Medicina, o Doutor Estranho, ironicamente, não consegue duplicar magicamente nada criado pela Ciência. Alguns indícios sugerem ainda que os seus encantamentos e sortilégios perdem eficácia contra seres mecânicos. Robôs, androides e outras máquinas demonstram ter, em geral, uma elevada resistência, quando não imunidade, à sua magia.

Misticismo psicadélico

De todos os ilustres moradores da Casa das Ideias surgidos na primeira metade da década de 60, contam-se pelos dedos de uma só mão aqueles em cuja conceção Jack Kirby não esteve, direta ou indiretamente, envolvido. A par do Homem-Aranha, o Doutor Estranho foi outra das notáveis exceções à regra. Tanto o Escalador de Paredes como o Mestre das Artes Místicas tiveram assinatura de Stan Lee e Steve Ditko.
Quase todas as criações de Stan Lee procuravam, em última análise, renovar grandes mitos da cultura popular originados em géneros diversos: na origem do Quarteto Fantástico esteve a ficção científica; Thor saiu diretamente da mitologia nórdica; e o Homem de Ferro, nas suas primícias, referenciava as histórias de espionagem.
Até à entrada em cena do Doutor Estranho, a magia e a feitiçaria tinham estado praticamente ausentes do Universo Marvel. Como era seu apanágio, Stan Lee mais não fez do que reinterpretar, de forma inovadora, conceitos preexistentes. No caso específico do Feiticeiro Supremo, Lee foi beber inspiração a um folhetim radiofónico que fizera as suas delícias na infância. Chandu, o Mago - um dos programas do género mais populares e duradouros dos anos 30 - narrava as aventuras de um mágico que usava os seus poderes místicos para defender a Humanidade de forças maléficas de origem sobrenatural.
A aparência do Doutor Estranho, por outro lado, foi baseada na de Vincent Price. Presença assídua nos filmes de terror dos anos 50 e 60, Price representava amiúde bruxos, vampiros e quejandos. O nome completo do Doutor Estranho - Stephen Vincent Strange - é, de resto, uma homenagem ao saudoso ator conhecido pelo bigode estiloso e olhar penetrante.

O mágico Chandu e o multifacetado ator Vincent Price (em baixo)
 foram as principais inspirações do Doutor Estranho.



Mas para além dessas influências iniciais, o Doutor Estranho adquiriu uma personalidade e uma riqueza muito próprias, superiores às da personagem que o tinha inspirado. Para isso foi fundamental a participação de Steve Ditko, seu criador plástico e o artista que Stan Lee escolhia sempre que queria orquestrar uma história sob o signo do mistério e do suspense. Por aqueles dias, Lee e Ditko já tinham dado ao prelo dezenas de historietas desse tipo, na sua maioria publicadas em Strange Tales. Em razão disso, num primeiro momento Ditko sugeriu que o novo herói fosse batizado de Mister Strange, nome que Lee rejeitou dadas as semelhanças com o já existente Mister Fantastic.
Renomeado Doutor Estranho, o novo mestre das artes arcanas fez a sua primeira aparição em Strange Tales #110, com data de abril de 1963. Em apenas cinco páginas, os leitores ficaram a conhecer um feiticeiro que nada tinha a ver com os tradicionais prestidigitadores de cartola, varinha mágica e truques baratos. O Doutor Estranho era misterioso, parco em palavras e vestia paramentos asiáticos, que deixavam adivinhar uma possível origem no Extremo Oriente. Tinha, também, pouco em comum com os super-heróis convencionais, apesar de partilhar a revista com um deles.
As aparições subsequentes do Doutor Estranho em Strange Tales acrescentaram novas camadas dramáticas à personagem, atraindo a atenção e o louvor dos leitores. Em resposta ao crescente interesse relativamente ao passado de Stephen Strange, Lee e Ditko revelaram por fim a sua origem, no 115º número da revista que continuava a ter o Tocha Humana como atração principal.

Há exatos 60 anos, o Doutor Estranho fazia a sua estreia em Strange Tales #110,
revista que tinha o Tocha Humana como astro principal.

Dentre as possíveis influências para a origem do Doutor Estranho, a mais óbvia é a do Lama Verde. Personagem obscura com raízes fincadas na literatura pulp que, na Idade de Ouro, foi transposta aos quadradinhos pela Prize Comics. Jethro Dumont, um milionário nova-iorquino, passou uma longa temporada no Tibete a estudar para ser um lama (guru budista), aprendendo muitos segredos místicos no processo. Quando, por fim, regressou aos EUA, usou os seus talentos e ensinamentos no combate ao crime. Saltam à vista as semelhanças entre a sua história e a do Doutor Estranho (vide texto seguinte).

A origem do Doutor Estranho tem vários pontos em comum com a do Lama Verde.

Desde as primeiras aventuras do Doutor Estranho condensadas em menos de uma dezena de páginas e em que se alternavam casos típicos, como o de uma casa assombrada, com duelos místicos com o Barão Mordo, a série foi crescendo paulatinamente em complexidade e sofisticação. Até chegar a uma fase de autêntico delírio ácido dos sentidos, pautada por excursões a mundos diferentes do nosso, próximos do onírico e do surrealista.
Por conta desse viés psicadélico, muitos leitores chegaram a tomar Stan Lee por um verdadeiro iniciado no esoterismo, somando-se a suspeita de que Ditko seria viciado em alucinogénicos. Nada disto tinha, no entanto, qualquer fundamento. Os dois autores tinham-se limitado a dar largas às suas pródigas imaginações, criando inadvertidamente um ícone da contracultura e dos movimentos New Age.
Apenas um ano após o seu debute, o Doutor Estranho viveu a sua primeira grande saga, publicada nos números 126 e 127 de Strange Tales. Demonstrando um enorme salto qualitativo, o arco em questão acrescentou duas personagens-chave à mitologia do Feiticeiro Supremo: Dormammu e a sua sobrinha Clea. Enquanto o primeiro de pronto substituiu o Barão Mordo como némesis do Doutor Estranho, a segunda com o tempo viria a tornar-se discípula, amante e, por fim, esposa de Stephen Strange.

As paisagens psicadélicas desenhadas por Steve Ditko eram
 um espetáculo visual para os leitores e um pesadelo lisérgico para os coloristas.

A fase seminal do Doutor Estranho, assinada por Lee e Ditko, prosseguiria ainda até meados de 1966, quando o artista abandonou a série e a Casa das Ideias. Mesmo órfão da arte psicadélica de Ditko, o Feiticeiro Supremo ganharia, pouco tempo depois, revista própria. Para celebrar essa conquista, Roy Thomas e Dan Atkins, dois dos principais representantes de uma nova geração de autores da Marvel, levaram a cabo uma reconstrução muito pormenorizada do mito, atualizando e expandindo a origem do Doutor Estranho.
Com os normais altos e baixos, a revista regular do Doutor Estranho continuou a chegar às bancas americanas até 1996. Ao longo das décadas foram muitos os grandes nomes da 9ª Arte que passaram pelas suas páginas, entre os quais cabe destacar as duplas Steve Englehart / Frank Brunner e Roger Stern / Marshall Rogers e, ainda, os inúmeros episódios da série desenhados pelo decano da luz e da sombra, Gene Colan.
Durante todos esse tempo, o Doutor Estranho foi o maior expoente de feitiçaria do Universo Marvel, para além de ter servido de catalisador à formação dos Defensores (ver Miscelânea). Após o cancelamento da sua revista mensal, o Feiticeiro Supremo passaria os anos terminais do século XX como convidado especial noutras séries. A exemplo de Nick Fury e do Surfista Prateado, por essa altura já se tinha convertido naquele tipo de ícone fundamental na estrutura do Universo Marvel, mas sem um título seu onde pudesse continuar a evoluir. Já neste século, o impulso dado pelas múltiplas participações do Doutor Estranho no MCU provou-se insuficiente para recuperar a sua tração comercial nos quadradinhos. Todas as recentes tentativas de relançamento de uma série própria do Feiticeiro Supremo foram malsucedidas, reforçando assim o seu estatuto de coadjuvante de luxo em títulos alheios. 

Em 1996, o último número de Doctor Strange, Sorcerer Supreme
marcou também o fim de uma era de esplendor.
  
Renascimento espiritual

Antes de ser o Feiticeiro Supremo, Stephen Strange foi o cirurgião supremo. Mas, nessa sua qualidade inicial, Strange salvava apenas as vidas daqueles que podiam pagar pelos seus serviços. Nada no seu caráter cínico e egocêntrico prenunciava, pois, a missão sagrada que viria a abraçar: ser o guardião espiritual da Terra contra ameaças sobrenaturais.
Primeiro dos três filhos de um modesto casal nova-iorquino, Stephen Strange nasceu em 1930, durante as férias dos pais em Filadélfia. A sua vocação precoce para a Medicina manifestou-se ainda na infância. Com apenas onze anos, Stephen improvisou talas para a perna partida da irmã mais nova e um garrote para estancar a hemorragia resultante da fratura exposta.
Aluno brilhante, Strange, ainda nos seus verdes anos, especializou-se em Neurocirurgia na Universidade de Columbia antes de ser admitido no Hospital Presbiteriano de Nova Iorque. Onde, por conta do seu prodigioso talento, rapidamente alcançou notoriedade internacional. O seu êxito profissional teve, todavia, como reverso a húbris e a insensibilidade social.
Insulado numa bolha de privilégio, Strange não demonstrava um módico de empatia pelos seus pacientes, a quem cobrava sempre honorários exorbitantes. A sua crença no valor do altruísmo fora fortemente abalada, anos antes, pela sua incapacidade de salvar a irmã de morrer afogada. Para preencher esse seu vazio emocional, Strange vivia obcecado pelos bens materiais e pelos prazeres mundanos.
Uma noite, enquanto acelerava no seu bólide desportivo, Strange sofreu um terrível acidente que lhe mudaria para sempre a vida. Apesar de ter sobrevivido, teve os ossos e os nervos das mãos severamente danificados. Incapaz de realizar cirurgias e demasiado orgulhoso para aceitar as funções de consultor, Strange calcorreou o mundo em busca de uma cura.
Depois de ter malbaratado a sua fortuna em tratamentos inúteis, Strange regressou a Nova Iorque apenas para sofrer novo rombo na dignidade. Sozinho e sem dinheiro, passou a viver nas ruas como um vagabundo.
O destino encarregou-se de dar uma lição de humildade a Stephen Strange.

Certa noite, num bar junto às docas, ouviu dois marinheiros conversarem acerca de um misterioso eremita no Tibete capaz de curar qualquer maleita. Um sábio milagreiro, sem nome nem idade, conhecido apenas como Ancião. 
Animado por uma esperança desesperada, Strange desfez-se do resto dos seus pertences e viajou para o Tibete. O Ancião, intuindo o egoísmo do recém-chegado, recusou porém ajudá-lo. Acreditando estar na presença de um charlatão, Strange aprestou-se a partir, mas foi impedido de fazê-lo por uma violenta tempestade de neve.
Enquanto esperava que a tempestade passasse, Strange testemunhou, incrédulo, um ataque místico lançado contra o Ancião. E mais incrédulo ficou ao descobrir que o mesmo fora lançado pelo principal discípulo do guru, o sinistro Barão Mordo.
Embora ciente da traição de Mordo, o Ancião ficou comovido por Strange ter arriscado a vida para avisá-lo e ofereceu-se para iniciá-lo nas artes místicas. Strange aceitou e à medida que as semanas se transformavam em meses e os meses em anos, a sua vida foi ganhando um novo e profundo sentido.
A meta de Strange passou a ser a evolução espiritual, num incessante - e, por vezes, doloroso - despertar interior. No topo do mundo, entre o éter e a materialidade, alcançou a clarividência que lhe permitia enxergar para além da realidade física percecionada pelos sentidos humanos.
De regresso a Nova Iorque acompanhado por Wong (seu amigo e valete), Stephen Strange instalou-se no Sanctum Sanctorum, para, como Doutor Estranho, passar a travar as batalhas esotéricas que apenas poderiam ser vencidas pelo Feiticeiro Supremo.

Renascido espiritualmente, Stephen Strange sucedeu ao Ancião como Feiticeiro Supremo.

Miscelânea

*Sanctum Sanctorum é a tradução latina da expressão bíblica "Santo dos Santos", referenciando tradicionalmente o lugar mais sagrado do Tabernáculo, onde apenas o Sumo Sacerdote de Israel podia adentrar. Foi este o nome simbolicamente escolhido por Stan Lee e Steve Ditko - ambos de ascendência judaica - para a mansão geminada de três andares que serve de residência e base de operações ao Doutor Estranho. Com corredores labirínticos e portas que dão acesso a outras dimensões, o Sanctum Sanctorum é protegido de invasões místicas pelo Selo de Vishanti. Quem já o visitou garante que o seu interior é muito maior do que aparenta ser visto de fora; 
*Sito no coração de Greenwich Village, o bairro boémio de Nova Iorque, o Sanctum Sanctorum está associado a um endereço verdadeiro, que pode inclusivamente ser encontrado no Google Maps. No mundo real, o número 177A de Bleecker Street corresponde ao apartamento que Roy Thomas e Gary Friedrich - à época escribas de Doctor Strange - dividiram na segunda metade da década de 60;

Com o seu interior a ser constantemente reconfigurado, 
o Sanctum Sanctorum desafia as leis da física e do espaço.

*Quase todos os feitiços executados pelo Doutor Estranho envolvem posições especiais das mãos. Alguns desses gestos ritualísticos aparentam ter sido baseados no Mudra do Budismo e de outras religiões asiáticas. O mais comum deles é a mano cornuta ("chifres" feitos dobrando os dois dedos internos para baixo), muito semelhante, de resto, ao gesto que o Homem-Aranha - outra criação da dupla Lee/Ditko - costuma fazer quando lança as suas teias sintéticas;
*Desconhece-se a real extensão das lesões nas mãos de Stephen Strange causadas pelo acidente de viação que lhe mudou para sempre as agulhas do destino. São tantos os escritores que as descrevem como incapacitantes como aqueles que garantem ser os surtos de ego de Strange a impedi-lo de retomar a atividade cirúrgica;
*O Doutor Estranho foi o primeiro a descobrir que o uniforme negro do Homem-Aranha era na verdade um simbionte alienígena cujo controlo sobre o seu hospedeiro aumentava à medida que o vínculo entre ambos era reforçado. Por algum motivo insondável, Strange guardou no entanto segredo acerca da verdadeira natureza do traje e do perigo que ele representava;
*Incapaz de enfrentar sozinho uma horda de demónios extradimensionais conhecidos como Imortais, o Doutor Estranho cooptou Hulk e Namor a ajudá-lo. Dessa aliança pontual nasceram os Defensores, aos quais se juntaria pouco tempo depois o Surfista Prateado. À primeira vista um aglomerado de heróis aleatórios sem nada em comum, o grupo reunia-se apenas quando necessário. A sua especialidade, conforme o nome indica, era defender a Terra de ameaças místicas e sobrenaturais; 

Os Defensores foram sempre menores do que a soma das partes.

*Stephen Strange é tecnicamente imortal. Numa história publicada em outubro de 1974, no quarto número de Doctor Strange, o Feiticeiro Supremo travou uma desesperada batalha contra a Morte dentro do Olho de Agamotto. Ao evocar os ensinamentos do Ancião, de que a morte é apenas outra etapa da vida, o Doutor Estranho parou subitamente de lutar, possibilitando, desse modo, a vitória da sua adversária. Em resultado da sua rendição à Morte, Strange parou de envelhecer desde então. Significando isto que, podendo ser morto por causas exógenas, o Doutor Estranho nunca sucumbirá aos efeitos da passagem do tempo;
*Face à queda das vendas da revista mensal do Doutor Estranho, no início de 1969 a Marvel decidiu dotar a personagem de um visual mais super-heroico. Para esse efeito, foi adicionada uma máscara azul ao traje (ligeiramente retocado) do Feiticeiro Supremo. A justificação para a mudança de look foi, contudo, outra: depois de ter tido a sua identidade usurpada por Asmodeus, Strange ficou preso em outra dimensão, e a única forma de conseguir escapar era ocultando o seu rosto;

A fase mascarada do Feiticeiro Supremo
serviu para disfarçar a queda nas vendas da sua revista.

*No Universo Amálgama, o Doutor Estranho foi combinado com o Senhor Destino e o Professor X, dando origem ao sorumbático Doutor Mistério (Doctor Strangefate). Por ser o único ciente da verdadeira natureza daquela dimensão paralela, era ele o principal empecilho à demanda de Acesso pela separação dos universos Marvel e DC;
*As viagens psicadélicas do Doutor Estranho através de outras dimensões inspiraram a capa do álbum A Saucerful Of Secrets, lançado pelos Pink Floyd em junho de 1968. O Feiticeiro Supremo é igualmente mencionado na canção Cymbaline incluída no álbum More que a mesma banda produziu no mês seguinte;
*O Doutor Estranho surge em 38º lugar na lista dos cem melhores heróis dos quadradinhos do site IGN, ao passo que a ComicBook.com o classificou em 35º no seu Top 50 dos super-heróis mais importantes de todos os tempos;
*Benedict Cumberbatch não foi o primeiro ator a interpretar o Doutor Estranho. Essa honra pertenceu, em 1978, a Peter Hooten, num telefilme do Feiticeiro Supremo produzido pela Universal e transmitido  pela CBS. Na trama, recheada de licenças poéticas, Stephen Strange era um psiquiatra fascinado pelo Oculto escolhido pelo Ancião para enfrentar a perversa Morgan Le Fay. O filme deveria ter servido de episódio-piloto de uma série que nunca saiu do papel.

Peter Hooten (esq). encarnou o Doutor Estranho quase 40 anos
 antes de Benedict Cumberbatch assumir o papel, em 2016.




*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Perfil de Steve Ditko disponível para leitura complementar.