14 fevereiro 2023

CLÁSSICO DA 9ª ARTE: «MORTE EM FAMÍLIA»


  35 anos atrás, uma inédita (e polémica) iniciativa interativa da DC selou o trágico destino do Menino-Prodígio. Impotente para salvar o seu fiel escudeiro da malquerença dos fãs, o Cavaleiro das Trevas, de coração contrito, é assombrado até hoje pelo espectro do seu maior fracasso.

Título original: A Death in the Family
Editora: DC
País: Estados Unidos da América
Data de publicação: agosto a novembro de 1988
Títulos abrangidos: Batman #426-429
Argumento: Jim Starlin
Arte: Jim Aparo e Mike Mignola (capas)
Protagonistas: Batman, Robin e Joker
Cenários: Gotham City, Líbano, Etiópia, Nova Iorque
Edições em português: Em novembro de 1989, precisamente um ano após o lançamento da saga original, a Abril brasileira editou a sua primeira versão em português tropical. Sob o título a Morte de Robin, os quatro capítulos da história foram compilados em DC Especial nº1. A Abril foi, de resto, a única editora que não privilegiou a tradução literal do título em inglês. Todas as reedições posteriores, sob a chancela alternada da Panini e da Eaglemoss, foram tituladas Morte em Família
A despeito da sua grada importância na continuidade do Cavaleiro das Trevas, Morte em Família, à semelhança de tantas outras obras capitais da Editora das Lendas, segue inédita em terras lusitanas.


A primeira edição em português da saga foi lançada pela Abril em 1989,
ano em que se celebrou o cinquentenário do Batman.


Chamada para a morte

Pajem adolescente do Cavaleiro das Trevas na sua obstinada cruzada contra o crime, Robin foi apresentado aos leitores em abril de 1940, no 38º número de Detective Comics. Vestia então a fantasia de cores garridas Dick Grayson, um pequeno órfão adotado por Bruce Wayne. Criação conjunta de Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson, o Menino-Prodígio foi introduzido para aumentar o apelo das histórias do Batman junto do público infantil.
A fórmula resultou e, até ao início dos anos 1980, Robin foi a metade jovial do Duo Dinâmico. Por aqueles dias liderava também os Novos Titãs, saindo aos poucos da sombra do seu mentor. Perante esta evolução, fez-se necessário arranjar-lhe um substituto.
Jason Todd fez a sua primeira aparição em Batman #357 (março de 1983), nas vésperas de Dick Grayson renunciar às suas funções de adjunto do Homem-Morcego, para a assumir a identidade de Asa Noturna. Com a bênção do antecessor, Jason herdou então o manto de Robin.
Na sua versão original, a história de Jason Todd era tirada a papel químico da de Dick Grayson. Como este, Jason era filho de acrobatas circenses, tendo sido perfilhado por Bruce Wayne após o assassinato dos seus pais.
No entendimento da DC, manter o status quo era o mais importante. O Duo Dinâmico tinha de continuar a existir. Mesmo que o novo Robin fosse apenas uma cópia barata do original. Com efeito, o diferencial entre as duas personagens resumia-se à cor do cabelo (Jason era louro natural). 
Sem surpresa, aos olhos de muitos fãs Jason era um usurpador, ainda por cima sem metade do carisma do legítimo titular do cargo. Por mais que Jason se esforçasse, Dick Grayson sairia sempre vencedor daquele jogo de espelhos geracional.

Jason Todd era originalmente louro.

Tudo mudou após a Crise nas Infinitas Terras. Como tantas outras personagens da DC, Jason Todd teve a sua origem recontada na nova continuidade. Em Batman #408 (junho de 1987), foi reintroduzido como um menino de rua que cometia pequenos furtos para sobreviver e que, vez por outra, gostava de fumar um cigarro. Bruce Wayne tentou reabilitá-lo depois de Batman ter surpreendido o rapaz enquanto roubava os pneus do Batmóvel estacionado num beco esconso.
O novo Jason Todd provou-se, contudo, ainda mais impopular do que o original. A sua têmpera rebelde e impulsiva irritava solenemente os leitores, mas não só. Também Jim Starlin, o novo escritor das histórias do Batman, não escondia a sua aversão pela personagem, evitando usá-la sempre que possível.
Cientes de que Jason Todd era um problema que precisava ser resolvido, as equipas criativas do Batman começaram a discutir nova reformulação. Starlin, ao invés, defendia abertamente a morte de Jason Todd. Numa surdina cada vez mais ruidosa, outras vozes se lhe juntaram.
Aproveitando a preparação de uma edição especial destinada a sensibilizar os leitores para a prevenção do VIH/SIDA, Starlin, já com as mortes do Capitão Marvel e de Adam Warlock no currículo, sugeriu que Jason Todd sucumbisse ao vírus. Embora rejeitada, a proposta teve o condão de quebrar definitivamente o tabu em redor de uma possível eliminação do mal-amado Menino-Prodígio.

Jim Starlin tinha em Jason Todd um dos seus ódios de estimação.

Durante uma reunião com a Presidente da DC, Dennis O'Neill, à época editor do Batman, propôs que o destino de Jason Todd fosse decidido pelos leitores através de uma votação telefónica. Ideia inspirada naquele que tinha sido um exemplo pioneiro de televisão interativa. Em 1982, durante um episódio do Saturday Night Live, Eddie Murphy convidara os espectadores a decidirem se ele devia ferver uma lagosta viva ou poupar o pobre crustáceo. Para isso, teriam apenas de ligar para um dos dois números de valor acrescentado disponibilizados para o efeito. O meio milhão de chamadas recebidas excedeu todas as expectativas e, no final, a lagosta foi poupada. 
Intrigada, a Presidente da DC deu luz verde a O'Neill. Que, por sua vez, incumbiu Jim Starlin, recém-contratado à Marvel, de criar uma história com dois finais diferentes: um em que Robin sobrevivia, outro em que morria. Quanto ao potencial algoz do Menino-Prodígio, o Joker prefigurou-se como a escolha natural para todos. Mais a mais porque também fora o Palhaço do Crime a assassinar Jason Todd em The Dark Knight Returns (O Regresso do Cavaleiro das Trevas).
Importa ter presente que, até então,  a única iniciativa interativa da DC se tinha resumido a permitir que os leitores escolhessem o líder da Legião dos Super-Heróis. Por comparação com o que estaria em jogo na votação telefónica, era uma minudência.

Eddie Murphy anuncia a votação final no programa que inspirou Dennis O'Neill.

Ainda sem uma clara noção do alcance da saga, os leitores esgotaram os seus dois primeiros capítulos, publicados em Batman #426 e Batman #427. Este último terminava com o Homem-Morcego a carregar o corpo ensanguentado do Menino-Prodígio para fora do armazém que o Joker mandara pelos ares. Ao lado, um anúncio de página inteira rezava assim: "Robin irá morrer porque o Joker quer vingança, mas podes evitá-lo com um telefonema". 
A 15 de setembro de 1988, os dois números de telefone, com um custo associado de 50 cêntimos, foram ativados durante 35 horas. Enquanto a votação decorria, Dennis O'Neill, com os nervos à flor da pele, ia, de hora a hora, verificando a evolução dos resultados. Apesar de ter votado pela sobrevivência de Robin, O'Neill temia que muitos leitores votassem em sentido oposto apenas para ver se a DC respeitaria o veredito fatal.
No total, foram recebidos 10641 votos, 5343 dos quais favoráveis à morte do Menino-Prodígio - apenas mais 72 do que os contabilizados em prol da sua sobrevivência. De tão tangencial, esta diferença alimentou suspeitas de que os resultados poderiam ter sido falseados. Embora tal nunca tenha sido comprovado, circularam rumores de que um advogado californiano teria programado o seu computador para discar o número fatídico a cada poucos minutos.

A vida do Menino-Prodígio foi jogada numa votação telefónica.


Teorias conspiratórias à parte, a morte de Jason Todd dividiu os fãs. Foram tantos os que a celebraram como os que a lamentaram. Meses depois do lançamento do capítulo final da saga, as secções de correspondência das revistas do Batman continuavam em ebulição. Dennis O'Neill recebeu dezenas de telefonemas de fãs furiosos, mas também de avós lacrimosas, sem saberem o que dizer aos netos que idolatravam o Menino-Prodígio.
A exemplo do que, anos depois, sucederia com a morte do Super-Homem, o trágico fim de Robin teve grande ressonância mediática. A Reuters e o USA Today foram dois dos órgãos de comunicação social que lhe deram ampla cobertura. A generalidade dos relatos omitiam, porém, que Jason Todd não era o Menino-Prodígio original.
Apesar da polémica aguerrida que a envolveu (ou, mais provavelmente, por causa dela), A Death in the Family foi o maior best-seller de 1988. Numa verdadeira corrida contra o tempo, a DC conseguiu lançar o respetivo volume encadernado a tempo do Natal desse ano, impulsionando ainda mais as vendas. 
No ano seguinte, o Cavaleiro das Trevas comemoraria o seu cinquentenário sem a presença do seu fiel escudeiro. Uma ausência de peso lamentada por muitos fãs do Duo Dinâmico.

O maior (e mais controverso) best-seller de 1988.


Laços de sangue

O Duo Dinâmico vive um momento conturbado. A relação entre Batman e o seu imberbe parceiro vem azedando por causa das ações cada mais mais imprudentes de Robin. O ponto de rutura ocorre quando, durante uma operação de vigilância a uma perigosa quadrilha, o impetuoso Menino-Prodígio avança sozinho. Agastado com a indisciplina do seu pupilo, o Homem-Morcego decide tomar medidas drásticas: Jason Todd é dispensado das suas funções de Robin.
Em conversa com Alfred, Bruce Wayne atribui a crescente instabilidade emocional de Jason ao facto de ele não ter ainda superado a morte dos pais. Apesar de se recusar a discutir o assunto, Jason visita o bairro onde cresceu, numa zona degradada de Gotham. De passagem pela sua antiga morada, uma vizinha entrega-lhe uma caixa com alguns pertences do pai.
Entre fotografias e documentos, Jason encontra a sua certidão de nascimento. Ao examiná-la constata que o nome da mãe, embora esborratado, tem um S - e não um C, como em Catherine Todd - como letra inicial. Ultrapassado o choque, Jason conclui que Catherine era afinal sua madrasta, e não a mulher que o trouxera ao mundo. Um segredo familiar que o pai levara para o túmulo.
Após voltar a vasculhar a papelada, Jason encontra a agenda de contactos do pai. Nela figuram três mulheres cujos nomes começam por S. Decide então investigar a identidade e paradeiro de cada uma delas com a ajuda do Batcomputador.

A imprudência de Robin levava-o a correr riscos desnecessários. 

Enquanto isso, o Joker consegue escapar, uma vez mais, do Asilo Arkham, deixando para trás uma pilha de cadáveres. Batman fica mortificado ao descobrir que o seu némesis obteve um míssil nuclear e que planeia vendê-la a terroristas do Médio Oriente.
Na Batcaverna, Jason recorre a técnicas forenses para localizar as candidatas a sua mãe biológica. Todas elas se encontram, no entanto, fora dos EUA. Duas vivem atualmente no Líbano, a terceira na Etiópia. Animado pelo desejo de reatar os últimos laços de sangue que lhe restam, Jason foge da Mansão Wayne para embarcar numa demanda que o levará ao outro lado do mundo.
Recém-chegado ao Líbano, Jason reencontra Bruce Wayne, em missão secreta para impedir que um grupo terrorista local use a bomba nuclear do Joker para destruir Tel Aviv. Assim reunido por um acaso do destino, o Duo Dinâmico consegue gorar esse diabólico plano.
Sharmin Rosen, uma agente da Mossad destacada no Líbano, é a primeira candidata interrogada por Jason. Contudo, ela nega ter alguma vez estado em Gotham City.
Perante o desalento de Jason, Bruce concorda em ajudá-lo a entrar em contacto com a segunda candidata. Por coincidência, uma velha conhecida do Batman: a mercenária Lady Shiva. Mas também ela, sob o efeito do soro da verdade, confirma não ser a mulher que procuram. A resposta para o enigma materno poderá estar a um continente de distância.
Na Etiópia, Jason encontra finalmente a sua mãe: Sheila Haywood, uma médica a prestar serviço humanitário naquele país do Corno de África. Apesar do reencontro emotivo, Sheila esconde segredos sórdidos e está a ser secretamente chantageada pelo Joker. O Palhaço do Crime descobrira que ela deixara Gotham depois de ter realizado abortos clandestinos que resultaram na morte de uma jovem. Em troca do seu silêncio, o vilão exigiu que Sheila lhe entregasse todos os suprimentos médicos armazenados pela sua ONG. A ideia era vender parte do material no mercado negro e substituir o restante pelo seu mortífero gás hilariante.
Sheila vinha também desviando verbas da agência e, ao descobrir que Jason é Robin, não hesita em entregar o próprio filho ao Joker, para ter os seus crimes acobertados. A traição materna foi ainda mais dolorosa do que a orgia de violência que se seguiu. 

O emotivo reencontro de Jason Todd com a mãe.

Entre risadas maníacas, o Palhaço do Crime espanca brutalmente o Menino-Prodígio com um pé-de-cabra, deixando-o inanimado numa poça de sangue. Em seguida, tranca-o juntamente com a mãe no interior de um armazém e aciona uma bomba-relógio. A vida do Menino-Prodígio acaba de entrar em contagem decrescente. 
Ao recobrar a consciência, Jason luta desesperadamente para soltar a mãe. Percebendo que não conseguirá fazê-lo a tempo, lança-se sobre a bomba, amortecendo com o corpo o impacto da explosão.
Horas mais tarde, Batman depara-se com os corpos estropiados de Jason e Sheila entre os escombros fumegantes do armazém. Jogando uma cartada fatal, Joker acrescentou o assassinato do Menino-Prodígio ao seu baralho de atrocidades.

A brutal vingança do Palhaço do Crime.

Traumatizado pela morte do seu protegido, Bruce Wayne leva os restos mortais de Jason para Gotham. Além de Alfred, ao funeral comparecem apenas o Comissário Gordon e a sua filha Barbara. O Cavaleiro das Trevas culpa-se pelo cruel destino do seu pajem e volta a ser o guardião solitário de Gotham, cuja noite amortalha o seu sofrimento.
Entretanto, Joker é nomeado embaixador do Irão nas Nações Unidas pelo próprio aiatolá Khomeini. Dias depois, chega a Nova Iorque para participar na Assembleia Geral da ONU. À entrada do edifício, Bruce Wayne é interpelado pelo Super-Homem. Enviado pelo Departamento de Estado americano, o Homem de Aço consegue, a custo, demover o seu velho amigo de atentar contra a vida de um alto dignitário estrangeiro, prevenindo um grave incidente diplomático.
Graças aos seus contactos de alto nível, Bruce obtém no entanto o estatuto de observador não-oficial que lhe garante acesso à Assembleia Geral. Durante o seu discurso perante os delegados, Joker acusa o mundo de tratar o regime iraniano como uma ameaça quase tão grande como ele próprio. De súbito, o vilão tenta libertar o seu gás tóxico, mas é impedido pelo Super-Homem, que a tudo assistia disfarçado de segurança.
Com Batman no seu encalço, Joker tem um helicóptero à sua espera. Enquanto ambos lutam a bordo do aparelho, um dos sequazes do Palhaço do Crime dispara uma rajada de metralhadora, atingindo mortalmente o piloto. O helicóptero despenca, desgovernado, em direção ao rio Hudson, mas Batman é salvo pelo Homem de Aço. Apesar dos esforços deste, o corpo do Joker não é encontrado.
Pesaroso, Batman lamenta que todos os confrontos com o seu arqui-inimigo terminem sem uma solução definitiva. Nunca antes se sentira, porém, tão tentado a ultrapassar a linha vermelha que o separa do Palhaço do Crime.

Dobre a finados pelo Menino-Prodígio.


Apontamentos

*Foi Dick Grayson quem, na origem pré-Crise de Jason Todd publicada em Detective Comics #526 (1983), se prontificou a adotá-lo depois de os pais do rapaz terem sido assassinados pelo Crocodilo. Apesar de Bruce Wayne ter chamado a si essa responsabilidade, é interessante imaginar quão diferente teria sido a vida de Jason se tivesse sido perfilhado pelo Robin original;
*Jason Todd tinha apenas 13 anos quando herdou o manto de Robin. O que significa que terá acolitado o Batman  por quase três anos, uma vez que foi assassinado nas vésperas de completar o seu 16º aniversário;
*Em sinal de respeito pelo seu antecessor, quando Jason Todd ocupou a  vaga de parceiro do Batman, considerou usar um nome diferente de Robin. Ás Voador (Flying Ace), Gaio Azul (Blue Jay), Cardeal (Cardinal) e Rapaz Dinamite (Kid Dynamite) foram algumas das alternativas sugeridas;
*O detetive Harvey Bullock reparou que o novo Robin era mais baixo e mais imaturo do que o original. Quando partilhou as suas suspeitas com o Comissário Gordon, este confirmou que as diferenças também não lhe tinham passado despercebidas. Nenhum deles se atreveu no entanto a interpelar Batman sobre o assunto;
*De todos os Robins, Jason Todd continua a ser o favorito do Joker. Não só porque foi o único que ele conseguiu matar, mas também porque a sua atitude sarcástica divertia genuinamente o Palhaço do Crime;
*Na Batcaverna existe um pequeno memorial dedicado a Jason Todd, cujo antigo uniforme se encontra permanentemente exposto numa cabina de vidro. Para o Batman, representa um doloroso lembrete do seu maior fracasso; para os outros Robins, um aviso para os perigos da função;

O memorial de Jason Todd na Batcaverna.

*A interação entre Batman e Joker nesta história sugere fortemente a possibilidade de o vilão conhecer a verdadeira identidade do herói. Referindo-se ao assassinato de Robin, o Palhaço do Crime diz que "até um louco pode somar dois mais dois". Ainda no mesmo diálogo, Batman refere-se ao seu parceiro como Jason, sendo do conhecimento público que era esse também o nome do pupilo de Bruce Wayne;
*Num arrepiante mau presságio, os três últimos dígitos do número de telefone que recebia os votos favoráveis à morte de Robin eram 666. Na Bíblia Sagrada, esse número representa a Besta que encarna o Mal e trará consigo o fim dos tempos;
*A apenas 15 minutos do encerramento da votação telefónica, a sobrevivência do Menino-Prodígio parecia assegurada por uma vantagem de 38 chamadas. Surpreendentemente, esse resultado seria repentinamente invertido, adensando assim as suspeitas de que o processo poderá ter sido de algum modo adulterado;
*Devido às suas representações estereotipadas dos muçulmanos, A Death in the Family foi acusada de cristalizar a islamofobia. Algumas das críticas mais contundentes partiram do ensaísta americano Jack Shaheen que, num estudo de 1991 intitulado Jack Shaheen versus the Comic Book Arab, se insurgiu contra a confusão entre terroristas, muçulmanos e fanáticos religiosos. O autor aponta também uma série de equívocos relacionados com a cultura do Médio Oriente. Desde logo a veste tradicional árabe usada pelo Joker enquanto embaixador do Irão, apesar de este não ser um país árabe. Shaheen considera que estas e outras gafes denunciam uma confrangedora ignorância por parte dos autores da saga;

Joker usa a roupa errada.

*O apreciável sucesso comercial de A Death in the Family não impediu que Jim Starlin fosse descartado pouco tempo após o lançamento do seu capítulo final. O departamento de licenciamento da DC ficou furioso com a morte de Robin por causa da enorme quantidade de merchandising com a imagem do Menino-Prodígio que ficaria encalhada. Regressado à Marvel, Starlin escreveu a saga cósmica Infinity Gauntlet (Desafio Infinito) que, ironicamente, ressuscitou outra personagem que ele havia matado: Adam Warlock;
*Até 2005, ano da sua ressurreição na saga Under the Hood (Sob o Capuz), Jason Todd integrou o restrito lote de personagens dos comics cujas mortes não foram revertidas. Nessa sua nova iteração, Jason, tomando emprestado o nome original do Joker, criou a persona Capuz Vermelho e passou a agir como um vigilante sanguinário. Continua. no entanto, a ser mais famoso por ter sido o único Menino-Prodígio morto em ação;
*Apesar de controversa, A Death in the Family figura entre as melhores histórias do Batman selecionadas por diferentes plataformas de entretenimento. No Top 10 da Newsarama, por exemplo, surge classificada em 5º lugar;
*Já anteriormente referenciada no filme Batman versus Superman: The Dawn of Justice e na segunda temporada de Titans, em 2020 a morte de Jason Todd deu origem à animação Batman: Death in the Family. Num exercício de interatividade inspirado na votação telefónica dos anos 80, ao espectador foi oferecida a possibilidade de escolher diferentes desfechos para a trama, acompanhando em seguida as ramificações de cada um desses cenários hipotéticos.;
*Por muitos anos, a versão alternativa de Batman #428 na qual Jason Todd sobrevivia permaneceu guardada nos arquivos da DC, em Burbank, Califórnia. Em março de 2020, o boletim online DC Daily divulgou finalmente essas páginas inéditas desenhadas por Jim Aparo.

O que aconteceria se Jason Todd não tivesse morrido?



Vale a pena ler?

Jason Todd estava condenado desde o início. De pálida imitação de Dick Grayson a delinquente juvenil, o segundo Robin nunca caiu nas boas graças dos leitores - que, legitimamente, questionavam o discernimento do Batman ao escolhê-lo para seu parceiro. A julgar pela maneira como lhe foram deformando a personalidade, os argumentistas também não morreriam de amores por ele.
A atitude insolente de Jason, o seu constante desvio do rigoroso código moral do Batman e as inevitáveis comparações com Dick Grayson foram criando cada vez mais anticorpos relativamente à personagem. Quando a DC, qual Pôncio Pilatos, colocou o destino do mal-amado Menino-Prodígio nas mãos dos fãs, foi como distribuir convites para um linchamento popular.
Historicamente, é fácil perceber a opção de dar aos leitores o poder de influenciarem ativamente o curso de uma narrativa tão importante. À época, a opinião pública americana ainda digeria uma sucessão de escândalos - coroada pelo caso Irão-Contras - que tinham exposto as fraquezas e contradições da política externa dos EUA.
Ao longo de toda a década de 1980, a cultura pop americana foi, pois, contaminada por um cinismo paranoico potenciado pela Guerra Fria. Obras como Watchmen e O Regresso do Cavaleiro das Trevas são exemplos pontuais dessa tendência, que perduraria até à viragem do século. Por sua vez, Morte em Família reflete inadvertidamente a desastrada abordagem feita pela Administração Reagan às complexas problemáticas do Médio Oriente. Aquelas que, nesta história, Jim Starlin reduz a uma caricatura baseada em equívocos e estereótipos. 
À ausência de nuances geopolíticas soma-se a crueldade do espetáculo montado a propósito do lançamento da saga. Anunciada como um grande evento, a morte de um mancebo de 15 anos foi orquestrada com um nível de visceralidade inaudito e sob os efeitos de um atroz eclipse moral.
A imagem do Joker a espancar alegremente Robin com um pé-de-cabra ficou para sempre esculpida no subconsciente coletivo. Mesmo passados 35 anos, as repercussões da saga são sentidas de cada vez que alguma das grandes editoras anuncia, com meses de antecedência, o fim de uma personagem importante. Morte em Família não teve apenas impacto nas histórias do Batman, mas em toda a indústria dos comics.
É, pois, de lamentar que os elementos mais controversos de Morte em Família tenham dominado a discussão acerca do seu enredo. Porque, em essência, trata-se de uma comovente tragédia familiar que realça os erros cruciais no relacionamento entre um pai e o seu filho adotivo. Chega a ser angustiante testemunhar o reforço da ligação emocional entre ambos, sabendo que a mesma não perdurará. Um suspiro de profundidade para uma trama que parece desenrolar-se ao acaso.
Com efeito, a desnecessária reviravolta que faz do Joker embaixador do Irão só contribui para o desgaste do arco, que poderia encerrar-se sem esse elemento absurdo - mesmo para os padrões do Palhaço do Crime. Ainda que aceitável, o desejo de vingança de Bruce Wayne nunca seria maior do que a dor resultante daquela que, depois da morte dos pais, foi a sua maior perda.  A morte de Jason Todd criou mais uma fissura no espírito fragilizado do Batman, evidenciando contornos sombrios que sempre estiveram presentes no herói
Vista com distanciamento, Morte em Família é um épico falhado. Tinha tudo para ser uma grande história, mas falta-lhe o nível adequado de dramatismo e suspense. Mesmo que o desenlace resulte da escolha do público, o argumento de Jim Starlin denota a inexistência de estudo prévio das consequências dos acontecimentos. Tanto a curto prazo, nas histórias subsequentes à morte do Menino-Prodígio, como a longo prazo, num futuro em que o surgimento de um terceiro Robin era expectável. Como um todo, o arco enferma de incoerência, como se minutos após a divulgação do resultado da votação telefónica que decidiu o destino de Jason Todd, a história completa se tivesse materializado nas bancas.
Sobra a sempre competente arte de Jim Aparo que, como é seu apanágio, se esmerou na representação das personagens e a transmitir clareza e dinamismo à narrativa visual. Igualmente dignas de nota são as capas desenhadas por Mike Mignola para as edições originais, cuja composição, rica em sombras, inspira uma crescente sensação de pavor e incerteza lúgubre.

Jason Todd: bad boy ou bode expiatório?


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre Robin, Joker, Jim Aparo e Dennis O'Neill disponíveis para leitura complementar.














2 comentários:

  1. Sou suspeito para falar, porque não há, creio, um batfã mais anti-BatFamily. O Batman funciona muito melhor como um Cavaleiro Solitário, ajudado unicamente por Alfred (esse, sim, necessário e mesmo imprescindível). Obviamente, as motivações para a criação do 'conceito' Robin foram comerciais, acarretando uma irremovível desconfiança da parte de muitos quanto à sexualidade do Morcego, acirrada de modo intenso pelo bom (só que não) Dr. Frederick Wertham. Mas até aqui falo de Grayson, que, assim como os outros bat-alguma-coisa, não deveriam, em minha opinião, existir. No que se refere ao Todd, à minha voz juntam-se muitas outras, incluindo a do genial Jim Starlin. Era Jason um carinha chato, irritante e insuportável, e foi com prazeroso sadismo que li essa edição em que ele é imolado. Mas, claro, considerando que os pivetes são apenas peças de reposição, logo o lugar seria ocupado novamente, e por seres humanos dos mais variados tipos.
    O texto do Ricardo é um ótimo trabalho de pesquisa, conseguindo coletar informações que são certamente ignoradas por boa parte dos leitores, mesmo em se tratando de um assunto tão mastigado ao longo dos anos.

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  2. Gostei muito mais da tua análise do que da história. Muitas situações sem explicação (onde o Curinga arrumou uma arma nuclear? Como convenceu o Aiatolá e foi alçado ao cargo de embaixador? Como um rapaz treinado pelo Batman apanhou de um criminoso?) e o traço de Aparo, que nunca me agradou. Acho limitado e repetitivo.
    No fim, é isso mesmo: Morte em Família tinha tudo para ser um clássico, e não foi.

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