27 março 2021

RETROSPETIVA: «CAPITÃO AMÉRICA: O SOLDADO DO INVERNO»


  Forças sinistras conspiram nas sombras para erigir uma nova ordem mundial. Com o arsenal da democracia prestes a cair em mãos erradas e sem saber em quem confiar, o Sentinela da Liberdade depara-se com um inimigo tão perigoso quanto perturbadoramente familiar.

Título original: Captain America: The Winter Soldier
Ano: 2014
País: Estados Unidos da América
Duração: 136 minutos
Género: Ação / Espionagem / Super-heróis
Produção: Marvel Studios
Realização: Joe e Anthony Russo
Argumento: Christopher Markus e Stephen McFeely
Distribuição: Walt Disney Studios Motion Pictures
Elenco: Chris Evans (Steve Rogers / Capitão América); Scarlett Johansson ( Natasha Romanoff / Viúva Negra); Sebastian Stan ( Bucky Barnes / Soldado do Inverno); Anthony Mackie ( Sam Wilson / Falcão); Robert Redford (Alexander Pierce); Samuel L. Jackson (Nick Fury); Cobie Smulders (Maria Hill); Emily VanCamp (Sharon Carter / Agente 13); Frank Grillo (Brock Rumlow); Hayley Atwell (Peggy Carter)
Orçamento: 170 milhões de dólares
Receitas globais: 714, 4 milhões de dólares

Anatomia de um épico

Aquele que seria o terceiro capítulo da Fase 2 do Universo Cinemático Marvel (MCU, na sigla inglesa) começou a ganhar forma ainda antes de Capitão América: O Primeiro Vingador chegar às salas de cinema. Logo em abril de 2011 - três meses antes da estreia da primeira longa-metragem do Sentinela da Liberdade com a chancela dos Estúdios Marvel -, foi confirmada a recontratação dos argumentistas Christopher Markus e Stephen McFeely para trabalharem na respetiva sequência. 
Inicialmente, Markus e McFeely consideraram inserir na trama múltiplos flashbacks da II Guerra Mundial, mas acabariam por deixar cair a ideia. Em vez disso, resolveram transitar de género: se o primeiro filme fora, em substância, uma história de guerra, o segundo seria um thriller de espionagem ao melhor estilo de John le Carré. Nesse sentido, clássicos como Os Três Dias do Condor (1975) e O Homem da Maratona (1976) serviram como principais influências temáticas e narrativas da estrutura do roteiro.

Os 3 Dias do Condor foi a principal inspiração
 para o segundo filme do Capitão América.

A intenção de Markus e McFeely era confrontar Steve Rogers, eterno soldado e supremo patriota, com os tiques autoritários de uma agência governamental, enfraquecendo dessa forma a sua lealdade para com ela. Perfil que caía como uma luva à SHIELD, habituada a operar em zonas cinzentas, e com a qual o Capitão América vinha colaborando desde o seu "descongelamento". 
Estabelecida a premissa, a dupla de escribas decidiu adaptar a saga The Winter Soldier (O Soldado do Inverno; O Soldado Invernal, no Brasil). Da autoria de Ed Brubaker, a história, publicada originalmente entre setembro de 2005 e abril de 2006, fora aclamada pelos fãs e definira o tom da franquia moderna do Capitão América. Circunstâncias que a tornavam perfeita para uma transição ao celuloide. 
O processo de adaptação revelou-se, todavia, mais difícil do que o previsto e só ao fim de meio ano Markus e McFeely se consideram aptos a executá-lo. Ed Brubaker, por seu lado, ficou encantado com a perspetiva de ver a sua obra transposta ao grande ecrã. E mais empolgado ficou depois de ler o rascunho do guião que, apesar das muitas liberdades poéticas, captava na perfeição a essência da sua trama.

A saga homónima saída da pena de Ed Brubaker.

Durante esse ínterim, os Estúdios Marvel tinham incluído quatro nomes na sua lista de potenciais diretores do projeto: George Nolfi (Ocean's Twelve), F. Gary Gray (Um Golpe em Itália) e os irmãos Anthony e Joe Russo (Eu, Tu e o Emplastro). Descartados os nomes sonantes da Fase 1, como Jon Favreau (Homem de Ferro) ou Keneth Branagh (Thor), a aposta recaía agora sobre uma nova leva de cineastas.
Depois de Gray ter manifestado a sua indisponibilidade para dirigir o projeto, as opções resumiam-se a Nolfi e aos irmãos Russo, com claro favoritismo do primeiro. Surpreendentemente, a escolha incidiria sobre os segundos. Uma opção que deixou alguns fãs apreensivos, uma vez que o currículo dos Russos incluía várias séries cómicas, como Community (de que o CEO dos Estúdios Marvel, Kevin Feige, era grande admirador), e tinham feito o grosso da sua carreira na televisão. 
Todas as dúvidas e rumores se desvaneceriam quando, na San Diego Comic-Con de 2013, a Marvel revelou o título oficial do segundo filme do Capitão América e confirmou os irmãos Russo como realizadores.

A escolha dos irmãos Russo surpreendeu meio mundo.

Com Cleveland como cenário, a rodagem de Capitão América: O Soldado do Inverno arrancou a 1 de abril de 2013. Depois de ter servido de pano de fundo a algumas das mais memoráveis sequências de Os Vingadores (2012), a hospitaleira cidade do Ohio, a troco de generosas benesses fiscais, voltava a acolher uma grande produção dos Estúdios Marvel. 
Em contraste com a turbulenta produção de Thor: O Mundo Sombrio (2013), as filmagens de Capitão América: O Soldado do Inverno decorreram sem sobressaltos, com o respetivo cronograma a ser cumprido na íntegra. Em razão desse elevado nível de eficiência, os irmãos Russo viram ser-lhes confiado não só o capítulo final da trilogia do Sentinela da Liberdade, mas também aquele que foi, até à data, o projeto mais ambicioso do MCU: Vingadores: Ultimato (2018) e Vingadores: Guerra Infinita (2019).
Sob uma revoada de críticas positivas, Capitão América: O Soldado do Inverno fez a sua estreia mundial a 4 de abril de 2014, no mítico El Capitan Theatre de Los Angeles. Duplicando as receitas globais do seu antecessor, seria o sétimo filme mais rentável desse ano e um dos melhores de sempre dentro do  seu género.

Enredo

Dois anos volvidos sobre a épica Batalha de Nova Iorque (eventos narrados no filme Os Vingadores), Steve Rogers vive agora em Washington D.C. e trabalha para a agência de contraespionagem SHIELD enquanto prossegue a sua difícil adaptação ao mundo moderno.
Integrados na equipa STRIKE sob o comando de Brock Rumlow, o Capitão América e a Viúva Negra participam numa operação de resgate em alto-mar. A tripulação de um navio da SHIELD foi sequestrada por piratas liderados pelo mercenário francês Georges Batroc. Durante a intervenção a bordo com vista à libertação dos reféns, o Sentinela da Liberdade descobre que a sua parceira tem uma missão paralela: extrair dados do computador da embarcação, por ordem de Nick Fury.
De regresso ao Triskelion, o quartel-general da SHIELD, o Capitão América confronta Fury, sendo informado por este acerca do projeto Insight: três porta-aviões aéreos em rede com satélites-espiões, projetados para identificar e eliminar preventivamente ameaças à segurança nacional. Repugnado pelo viés fascizante da ideia, o Sentinela da Liberdade expressa a sua veemente discordância relativamente ao que está em preparação. 
Mais tarde, ao falhar em desencriptar os ficheiros obtidos pela Viúva Negra, o próprio Fury começa a ter suspeitas e pede ao Secretário da Segurança Interna, Alexander Pierce, para atrasar o projeto Insight. Pierce compromete-se então a analisar o pedido do diretor da SHIELD.

Alexander Pierce, o todo-poderoso Secretário da Segurança Interna.

Porém, a caminho de um encontro com a agente Maria Hill, Fury é emboscado em plena rua por um grupo fortemente armado e liderado por um misterioso indivíduo com um braço metálico. Apesar de ferido, Fury consegue escapar ao ataque e procura refúgio no apartamento de Steve Rogers.
Fury alerta Rogers para o facto de a SHIELD estar comprometida ao mais alto nível, momentos antes de ser baleado pelo homem com o braço de metal. Antes de desfalecer, Fury entrega a Rogers uma pen drive, instando-o a não confiar em ninguém.
Rogers parte no encalço do atirador, mas este desaparece na noite sem deixar rasto. Horas depois, Fury é dado como morto durante uma cirurgia no hospital e a agente Hill reclama o corpo.
No dia seguinte, o Capitão América é convocado ao Triskelion por Alexander Pierce. Perante a recusa do Sentinela da Liberdade em revelar a informação que lhe foi repassada por Fury, Pierce considera-o um renegado e dá ordens à SHIELD para capturá-lo.
Após uma breve escaramuça com Rumlow e os seus homens, o Capitão América consegue escapar do Triskelion e vai ao encontro da Viúva Negra. Esta revela-lhe que o assassino de Fury é uma figura lendária nos meandros da espionagem internacional; um "fantasma" treinado pelos soviéticos e responsável por dezenas de assassinatos nos últimos 50 anos a quem chamam Soldado do Inverno.


O misterioso e mortífero Soldado do Inverno.

Incapazes de decifrarem os dados da pen drive, o Capitão América e a Viúva Negra descobrem, contudo, a origem dos mesmos: a antiga base militar em Nova Jérsia onde Rogers foi treinado após receber o Soro do Supersoldado.
No interior de um bunker secreto instalado no perímetro da base, a Viúva Negra consegue ativar um supercomputador que contém a consciência preservada de Arnim Zola, um dos mais brilhantes cientistas do III Reich. É através dele que os dois heróis ficam a saber que a HIDRA está incrustada na espinha dorsal  da SHIELD desde a sua fundação, no final da II Guerra Mundial. 
Semeando o caos global, a HIDRA espera pacientemente que a Humanidade troque a sua liberdade por segurança. Zola explica ainda que a pen drive armazena um algoritmo criado por ele, mas não tem tempo de explicar o seu propósito, uma vez que o bunker é atingido por um míssil da SHIELD.
Escapando por milagre ao ataque, o Capitão América e a Viúva Negra são atingidos pela dolorosa evidência de que o líder da HIDRA não é outro senão Alexander Pierce.
Depois de garantirem a ajuda de Sam Wilson, um ex-militar paraquedista com quem Rogers contraíra estreita amizade, o Capitão América e a Viúva Negra interrogam um agente infiltrado da HIDRA. Jasper Sitwell revela-lhes o real propósito do algoritmo desenvolvido por Zola: identificar indivíduos que possam representar ameaça para os planos da HIDRA, sendo a função dos porta-aviões aéreos da SHIELD eliminar esses alvos. 
Longe dali, Pierce convoca o Soldado do Inverno e ordena-lhe que mate o Capitão América e a Viúva Negra.
A caminho do Triskelion, o Capitão América e os seus aliados são atacados pelo Soldado do Inverno, que trata de matar Sitwell em primeiro lugar. Na contenda que se segue, a máscara do vilão cai e o Sentinela da Liberdade, mortificado, reconhece Bucky Barnes, o seu melhor amigo dado como morto desde os últimos dias da II Guerra Mundial. O reconhecimento, porém, não é mútuo e o Soldado do Inverno investe ferozmente sobre o seu adversário.

Um herói que só pode confiar em si mesmo.

O grupo liderado pelo Capitão América acaba capturado pela SHIELD, mas é libertado pouco depois pela agente Hill. Que, em seguida, os leva à presença de Nick Fury. O ex-diretor da SHIELD encenara a própria morte para poder prosseguir sem interferências a sua investigação ao projeto Insight. Sem delongas, apresenta o seu plano para neutralizá-lo: sabotar os porta-aviões aéreos substituindo os respetivos chips de controlo.
Após a chegada dos membros do Conselho de Segurança Mundial ao Triskelion para acompanharem in loco o lançamento dos porta-aviões aéreos, o Capitão América invade o edifício e revela a todos os agentes fiéis à SHIELD que a organização é controlada pela HIDRA.
Disfarçada como uma das conselheiras, a Viúva Negra captura Pierce, que é forçado por Fury a desbloquear o acesso ao banco de dados da SHIELD. Enquanto isso, o Capitão América e o Falcão conseguem sabotar dois dos porta-aviões aéreos, mas ao chegarem ao terceiro são atacados pelo Soldado do Inverno. Com o Falcão fora de combate, o Sentinela da Liberdade luta com Bucky mas recusa-se a matá-lo. Em nome da velha amizade que em tempos os uniu, tenta, em vão, fazê-lo lembrar-se de quem é. 
O Capitão América consegue substituir o último chip, transferindo desse modo o controlo remoto das aeronaves para a agente Hill. Esta faz com que elas disparem umas contra as outras, destruindo-se mutuamente.

O último dos porta-aviões aéreos da SHIELD despenca com um gigantesco pássaro ferido.

Em meio às explosões, Bucky reconhece vagamente algo que lhe é dito pelo Capitão América. Quando este é derrubado da aeronave e cai inconsciente no rio Potomac, é resgatado pelo vilão, que o arrasta para a margem antes de desaparecer como um fantasma.
Com a SHIELD em tumulto, a Viúva Negra participa numa subcomissão do Senado organizada para discutir o futuro da organização. Algures na Europa, Fury, ainda oficialmente morto, procura descobrir a localização das restantes bases secretas da HIDRA. Também Steve Rogers e Sam Wilson seguem o rasto do Soldado do Inverno, usando algumas informações fornecidas pela Viúva Negra.
Numa primeira cena de epílogo, o barão von Strucker proclama que os esforços da HIDRA para impor uma nova ordem mundial irão prosseguir. Strucker observa, em seguida, o Cetro de Loki e dois estranhos prisioneiros: um com velocidade sobre-humana, outra com poderes telecinéticos (os gémeos Mercúrio e Feiticeira Escarlate, respetivamente). Na segunda cena pós-créditos, Bucky Barnes visita o Museu Nacional de História Natural, onde observa um memorial em sua homenagem, reconhecendo finalmente a sua verdadeira identidade.

Trailer


Prémios e nomeações

De um total de meia centena de indicações para galardões sortidos da 7ª Arte - incluindo o Óscar para Melhores Efeitos Visuais - , Capitão América: O Soldado do Inverno saiu vencedor em apenas duas ocasiões. Ao Golden Trailer Award na categoria de Melhor Spot Televisivo acrescentou um prémio especial atribuído anualmente pelos críticos cinematográficos de Washington D.C. à película que melhor representa a capital federal dos EUA.
A título individual, Chris Evans arrecadou o People´s Choice Award para Melhor Ator de Ação. Apesar da parada de estrelas que compunha o elenco, Evans foi o único dos seus representantes a ter a sua atuação premiada.
Na lista dos cem melhores filmes de super-heróis divulgada em 2019 pela Paste - publicação independente especializada em música e entretenimento  - , Capitão América: O Soldado do Inverno surge em 7º lugar, sendo o quarto filme da Marvel mais bem cotado no ranking.


Curiosidades

*Comummente associado à Guerra Fria e ao período passado por Bucky Barnes em animação suspensa com recurso à criogenia, o epíteto Soldado do Inverno remete, de facto, para uma citação de Thomas Paine (1737-1809), um dos Pais Fundadores dos EUA: "Estes são os tempos que põem à prova as almas dos homens. O soldado estival e o patriota ensolarado irão, nesta crise, encolher-se ao serviço do seu país. Mas o soldado do inverno que se apresta a servi-lo, esse é merecedor da gratidão do povo em nome de quem luta.". Do ponto de vista simbólico, o verdadeiro Soldado do Inverno é, pois, o Capitão América, e não Bucky Barnes;
*Organização terrorista internacional de extração fascista, a HIDRA, numa alusão à Hidra de Lerna da mitologia clássica, tem como divisa "Se uma cabeça for cortada, duas nascerão no seu lugar.". Fundada pelo Caveira Vermelha ainda durante a II Guerra Mundial, a HIDRA começou por ser uma excrescência do III Reich - espécie de Estado paralelo fora do controlo do Führer - que sobreviveu à capitulação deste. Sob a liderança do barão Wolfang von Strucker, no pós-guerra a HIDRA converteu-se num sindicato do crime de feição neonazi e deu prossecução às suas atividades subversivas. Nos comics, os seus agentes envergam tradicionalmente uniformes verdes adornados com o símbolo da serpente e praticam a saudação "Hail HIDRA!" de braço direito estendido. Foi em Tales of Suspense #135 (agosto de 1965) que esta sinistra organização fez a sua primeira aparição, numa história assinada por Stan Lee e Jack Kirby. Embora tenha na SHIELD a sua arquirrival, a HIDRA já teve os seus planos de dominação mundial gorados por uma extensa lista de justiceiros fantasiados encabeçada pelo Capitão América;


O barão von Strucker refundou a HIDRA no pós-guerra.

*Sebastian Stan só percebeu a importância do papel que lhe caberia representar quando o título do segundo filme do Capitão América foi formalmente anunciado na San Diego Comic-Con de 2013. A sua  preparação para dar corpo ao Soldado do Inverno incluiu cinco meses de intenso treino físico e pesquisa exaustiva de temas relacionados com a Guerra Fria e lavagem cerebral. Stan aproveitava também as pausas entre filmagens para praticar os seus movimentos de combate com uma faca de plástico;
*Através da sua participação em Capitão América: O Soldado do Inverno, Anthony Mackie cumpriu o sonho de interpretar uma personagem da Casa das Ideias. Nos anos que antecederam o seu escalonamento para o papel de Falcão, o ator entupiu a caixa de correio eletrónico dos Estúdios Marvel com dezenas de emails em que se oferecia para os mais variados papéis. As suas mensagens captaram a atenção de Kevin Feige, o presidente executivo dos Estúdios Marvel, que, por fim, lhe fez a vontade. Mackie ficou no entanto desapontado com o figurino hi-tech da sua personagem, visto que preferia o uniforme de licra vermelha usado pelo Falcão nos quadradinhos. Em resposta às tensões raciais que ciclicamente irrompem na sociedade estadunidense, na viragem da década de 60 o Falcão foi emparelhado com o Capitão América, com quem passaria a dividir a respetiva série mensal. Foi também o primeiro super-herói afro-americano do Universo Marvel;

Na BD, o Falcão foi o parceiro mais duradouro do Capitão América.

*Robert Redford aceitou interpretar Alexander Pierce a pedido dos netos, fãs incondicionais do MCU. A escolha do veterano ator representou, em certa medida, uma homenagem ao seu papel em Os Três Dias do Condor (1975), o thriller de espionagem que mais influenciou a trama de Capitão América: O Soldado do Inverno. Redford ansiava, ademais, pela oportunidade de vestir a pele de um vilão, algo que raramente aconteceu ao longo da sua vetusta e oscarizada carreira;
*Amigos de infância inseparáveis na vida real, Chris Evans e Scarlett Johansson escreveram juntos os próprios diálogos para algumas das partes do filme em que contracenavam. Partiu também de Johansson a ideia de usar em várias cenas um colar com um pendente em forma de flecha. Além da óbvia referência ao Gavião Arqueiro - seu colega nos Vingadores, cuja participação na película chegou a ser equacionada - a joia sugeria um hipotético relacionamento amoroso entre ambos, idêntico ao que em tempos as duas personagens viveram na banda desenhada;
*A cena em que o Capitão América salta de um avião militar a grande altitude sem se preocupar em usar um paraquedas referencia uma cena idêntica do número inaugural de The Ultimates (Os Supremos, versão moderna dos Vingadores). Já o uniforme em tons mais escuros usado pelo herói na primeira metade do filme foi decalcado do modelo por ele utilizado durante a fase em que, nos comics, foi diretor interino da SHIELD;
*Velho inimigo do Capitão América, Batroc, o Saltador - um mercenário francês mestre em  savate -  foi interpretado por Georges St-Pierre, ex-campeão mundial de artes marciais mistas nascido na província canadiana do Québec;

Batroc, o Saltador em ação.

*As filmagens em Washington D.C. tiveram como pano de fundo alguns dos monumentos nacionais mais importantes dos EUA, com destaque para o Memorial Abraham Lincoln, o Capitólio e a Ponte Theodore Roosevelt. Esta última foi encerrada pela primeira vez na sua história para acolher a gravação de um filme;
*Elizabeth Olsen foi uma das atrizes cogitadas para interpretar Sharon Carter, antigo interesse amoroso do Capitão América nos quadradinhos. Apesar de o papel ter sido atribuído a Emily VanCamp, Olsen surgiu numa das cenas de epílogo como Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate;
*Além do inevitável Stan Lee, também Ed Brubaker, autor da saga homónima em que o filme foi baseado, fez um pequeno cameo: era ele um dos cientistas que testemunharam a apresentação do Soldado do Inverno num bunker secreto;
*Antes do lançamento do filme, havia algumas dúvidas acerca do apelo que ele teria fora dos Estados Unidos, atendendo à circunstância de ter como protagonista um símbolo do patriotismo yankee. No entanto, Capitão América: O Soldado do Inverno obteve enorme êxito além-fronteiras. Surpreendentemente, foi na China que teve melhor acolhimento. Ao que parece, as aventuras de um super-herói disposto a desafiar o seu Governo quando o considera moralmente necessário mostraram-se particularmente atrativas para os cidadãos de uma nação com um regime autoritário;

O Sentinela da Liberdade é idolatrado mesmo pelos rivais dos EUA.


Veredito: 86%

À terceira foi de vez. Após duas partidas em falso (Thor: O Mundo Sombrio e, sobretudo, Homem de Ferro 3), a Fase 2 do MCU acertou o passo com Capitão América: O Soldado do Inverno. Os fãs puderam respirar de alívio com um filme que, além de épico, abriu caminho para o futuro. 
Apesar do título sugerir o contrário, Capitão América: O Soldado do Inverno não adapta apenas uma das melhores sagas do Sentinela da Liberdade; transpõe toda a respetiva ambientação e estilo narrativo. O próprio Soldado do Inverno, visualmente fiel aos quadradinhos, não é a personagem charneira da trama, antes uma peça importante de uma engrenagem muito maior. 
Sólida e cativante, a trama de Capitão América: O Soldado do Inverno faz inveja a muitos filmes de espionagem. Sem grandes falhas a nível de argumento e com uma toada empolgante - alternando entre sequências frenéticas e momentos mais calmos - a película é um autêntico festival de ação. O que não impediu o bom tratamento concedido a novas personagens, especificamente a Alexander Pierce e ao Falcão. Mesmo sem funcionar como um alívio cómico, este último proporciona alguns dos momentos mais divertidos da história. 
Com efeito, o humor típico da saga volta a destacar-se sem, contudo, cair nos exageros de capítulos anteriores. Do mesmo modo que o bromance entre Steve Rogers e Sam Wilson não resvala para um perturbante homoerotismo. 
No que respeita aos aspetos visuais, a película merece também rasgados elogios. Aos soberbos efeitos especiais - pedra de toque do MCU - acrescem vibrantes cenas de ação e lutas corpo a corpo muito bem coreografadas. O duelo inicial entre o Capitão América e Batroc é sensacional, perdendo apenas na comparação  com as cenas de luta envolvendo o Soldado do Inverno.
Lamentavelmente, esse nível elevado acaba por sair beliscado por aquele que é um dos pontos fracos do filme: a sequência final a bordo dos porta-aviões aéreos da SHIELD. Após tanta criatividade e emoção, custa a engolir a solução genérica de apertar um botão para neutralizar a ameaça. Ficando também a sensação de que o Soldado do Inverno poderia - e deveria - ter tido um papel mais grandioso no clímax.
De resto, a história está pejada de easter-eggs: de menções a personagens novas a locais icónicos do Universo Marvel, são muitas as pequenas preciosidades a fazerem as delícias dos verdadeiros fãs da Casa das Ideias. 
Motivos de sobra para considerar Capitão América: O Soldado do Inverno, ex aequo com Os Vingadores, o melhor filme do MCU. Que me perdoem os fãs da Saga do Infinito, mas prefiro boas tramas a produções megalómanas.

O verdadeiro Soldado do Inverno é aquele
 que não se submete à tirania nem perde a esperança
em tempos sombrios.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Artigos sobre a Viúva Negra e o filme dos Vingadores disponíveis para leitura complementar.















04 março 2021

GALERIA DE VILÕES: DENTES-DE-SABRE


  Matar faz parte da natureza de qualquer predador, mas apenas a besta-fera mutante o faz por diversão. A sua desvairada sede de sangue não poupa sequer a própria espécie e, por isso, tem Wolverine como presa favorita.

Denominação original: Sabretooth
Editora: Marvel Comics
Criadores: Chris Claremont (história) & John Byrne (arte conceptual) 
Estreia: Iron Fist #14 (agosto de 1977)
Identidade civil: Victor Creed
Espécie: Homo Superior
Local de nascimento: Edmonton, na província canadiana de Alberta.
Parentes conhecidos: Victoria e Zebadiah Creed (pais, falecidos); Luther e Saul Creed (irmãos, falecidos); Clara Creed (irmã); Graydon Creed (filho)
Ocupação: Ex-soldado e ex-mercenário, ganha por estes dias a vida como assassino profissional a soldo de organizações criminosas como a Yakuza ou o Tentáculo.
Base operacional: Sempre no encalço de novas presas e ele próprio com a cabeça a prémio, raramente permanece mais do que um par de semanas no mesmo local. 
Afiliações: Ex-operacional do Programa Arma X; ex-líder da Equipa X; ex-parceiro do Constritor; ex-membro dos Carrascos, do Tentáculo e da Irmandade de Mutantes. Apesar de preferir operar a solo, Dentes-de-Sabre possui uma faceta gregária. As suas alianças são no entanto sempre precárias. A sua torpeza moral fará com que, à primeira oportunidade, traia e/ou mate os seus companheiros de equipa.
Némesis: Wolverine
Poderes e parafernália: Dentes-de-Sabre é um mutante cuja habilidade primária consiste, tal como Wolverine, num fator de cura acelerado que lhe permite regenerar tecidos destruídos e ossos fraturados em questão de minutos. Esse poder inato concede-lhe, ademais, imunidade a um amplo espectro de doenças, venenos e toxinas, retardando, ainda, drasticamente o seu processo natural de envelhecimento. Embora a data precisa do nascimento de Victor Creed seja uma incógnita, estima-se que terá vindo ao mundo cerca de 200 anos atrás.
Em função da equipa criativa, a extensão dos poderes de Victor Creed oscilou ao longo dos anos. O seu fator de cura, por exemplo, só seria introduzido no âmbito de um retcon que o transformou no inimigo figadal de Wolverine. Tanto assim que, nas suas aparições inicias em Iron Fist, Dentes-de-Sabre era um vilão mediano, facilmente derrotado pelo Punho de Ferro num mano a mano. 
Imitando o animal pré-histórico de quem tomou emprestado o nome, Dentes-de-Sabre possui sentidos aguçados que lhe permitem, entre outras coisas, rastrear pessoas através do respetivo odor corporal, mesmo que este se tenha deteriorado ou sido mascarado por outros cheiros. Esse é, de resto, um dos talentos mais apreciados pelos seus empregadores.

Dentes-de-Sabre nunca perde o rastro da presa.

Dependendo do nível de ruído ambiente, Dentes-de-Sabre consegue ouvir qualquer coisa num raio de cinco quilómetros. É também um excelente caçador noturno, graças à sua capacidade de enxergar no escuro. Diz-se até que os seus olhos conseguem detetar porções infravermelhas e ultravioletas do espectro luminoso impercetíveis ao olho humano.
Dono de um físico imponente, Dentes-de-Sabre teve a sua força artificialmente aumentada em diversas ocasiões. Apesar do limite superior da mesma nunca ter sido aferido, sabe-se que o vilão é capaz de dobrar barras de ferro com as próprias mãos e levantar perto de meia tonelada.
Em complemento a estes aprimoramentos físicos, o fator de cura de Dentes-de-Sabre dota-o de vigor e resistência sobre-humanos, inibindo o acúmulo de ácido lático nos seus músculos. Mesmo em esforço contínuo, serão precisos vários dias até que ele sinta fadiga.
Tanto as garras retráteis nas mãos e pés de Dentes-de-Sabre como os seus caninos salientes são feitos de uma substância mais densa do que os ossos humanos, a qual lhe permite estraçalhar facilmente a carne dos seus oponentes. Depois de revestido com adamantium, o esqueleto do vilão tornou-se virtualmente inquebrável. Como se perceberá na secção seguinte, não sendo imortal, Dentes-de-Sabre é duro de matar.
A agilidade e reflexos felinos de Dentes-de-Sabre fazem dele um exímio caçador furtivo. Raramente as suas presas se apercebem da sua presença até ser tarde demais. E mais raramente ainda sobrevivem ao ataque. 
Guiado pela sua mente predatória, o Mutante Selvagem não faz distinção entre humanos e Homo Superior. Uns e outros não passam de carniça para aplacar a sua fome leonina de violência e morte. No entanto, quanto mais exigente for a caçada, maior será o prazer que Dentes-de-Sabre retirará dela.
Quando tomado pela sua fúria animalesca - algo que sucede com perturbadora frequência - Dentes-de-Sabre torna-se imune à dor e aumenta a sua resistência ao controlo mental. Apesar dessa sua ferocidade intrínseca, Victor Creed evidencia elevada inteligência a nível tático e estratégico. Patente, por exemplo, na sua habilidade para evitar a captura e para escapar, sem qualquer tipo de assistência, de estabelecimentos prisionais de segurança máxima. 
Em resultado do treino recebido na Equipa X, Dentes-de-Sabre é extremamente competente no combate armado e desarmado, revelando proficiência no manejo de armamento diversificado. É também fluente em Alemão e Espanhol.
Em suma, pelo seu sadismo e crueldade, Dentes-de-Sabre representa sempre um festival de sofrimento para os seus oponentes. Mesmo o mais endurecido dos guerreiros sente o toque gelado do medo perante as suas erupções de violência irracional. Que o diga Wolverine, que nunca saiu vitorioso de um duelo com o seu sanguinolento arquirrival.

Brinde a um velho inimigo.

Fraquezas: Devido às semelhanças entre os poderes de ambos, Dentes-de-Sabre e Wolverine possuem algumas fragilidades em comum. Desde logo, a vulnerabilidade à Lâmina Muramasa. Também conhecida como Catana Amaldiçoada, trata-se de uma espada mística forjada, segundo reza a lenda, a partir de um fragmento da alma do ferreiro japonês do século XV que lhe deu nome. A Muramasa ceifa a vida de todos aqueles que corta, aprisionando as almas das suas vítimas na sua lâmina encantada. Mesmo fatores de cura ultraeficientes como os de Dentes-de-Sabre e Wolverine podem ser anulado por ela.
Também a exposição ao carbonadium pode comprometer seriamente o fator de cura de Dentes-de-Sabre. Se uma bala comum dificilmente arrancará mais do que um rosnado de dor à besta-fera mutante, um projétil revestido por esse material radioativo de fabrico soviético poderá provocar-lhe ferimentos graves, que demorarão muito mais tempo a sarar do que o habitual.
Não obstante, existem apenas dois métodos comprovadamente capazes de matar Dentes-de-Sabre: afogamento e decapitação / dano espinhal severo. Na primeira opção, os mais de 45 Kg de adamantium implantados no corpo do Mutante Selvagem reduzem a sua flutuabilidade. A imersão em água ou em qualquer outro líquido privará de oxigénio o seu cérebro, desabilitando dessa forma o seu fator de cura. Idêntico princípio decorre da segunda opção: o seccionamento da cabeça de Dentes-de-Sabre impedirá a sua mente de enviar sinais aos órgãos vitais, que assim entrarão em falência.

Wolverine recebe a Lâmina Muramasa das mãos do seu criador. 


Instinto assassino

À primeira vista, Dentes-Sabre pode parecer apenas uma versão perversa (e ainda mais sanguinária) de Wolverine. Estreitando, porém, o zoom, descobre-se uma personagem complexa com alguns apontamentos surpreendentes. Desde logo o facto de nem sempre ter sido mutante ou ter tido qualquer ligação aos X-Men.
De facto, quando em agosto de 1977, Dentes-de-Sabre fez a sua estreia em Iron Fist #14, não possuía fator de cura nem foi feita qualquer referência à sua condição de Homo Superior. Chris Claremont e John Byrne tinham-no concebido como antagonista recorrente do Punho de Ferro, com quem foi à liça repetidas vezes antes de cruzar o caminho dos pupilos do Professor X.

A sangrenta estreia de Dentes-de-Sabre em Iron Fist #14 (1977).

Em aparições subsequentes, Dentes-de-Sabre foi emparelhado com o Constritor, passando a dupla a enfrentar vigilantes urbanos como os Heróis de Aluguer. Sem que (quase) nada fosse revelado acerca do seu passado, Dentes-de-Sabre parecia predestinado a ser apenas outro vilão genérico. Mas Chris Claremont tinha outros planos para ele e aprestou-se a desvelar-lhe a origem, com muitos paralelismo com a de Wolverine.
Acredita-se que Victor Creed, o homem que o mundo aprendeu a temer como Dentes-de-Sabre, terá nascido nas primeiras décadas do século XIX, numa cidadezinha esquecida na província canadiana de Alberta. No entanto, as suas memórias foram adulteradas por organizações clandestinas como a Arma X, pelo que se afigura difícil saber quais são reais e quais aquelas que foram implantadas na sua mente.
De todo o modo, a memória mais antiga de Victor remonta ao dia em que, ainda criança, assassinou o seu irmão por causa de uma fatia de bolo. Especula-se que esse trágico incidente poderá ter coincidido com a primeira manifestação dos seus poderes mutantes. Outros relatos apontam para que isso tenha acontecido anos antes, quando o pequeno Victor terá matado o médico que, a pedido dos pais, o examinava.

O irmão de Victor Creed foi a primeira vitima da sua selvajaria.

Acorrentado pelo pai numa cave, Victor viveu os anos seguintes como um animal enjaulado. Até ao dia em que mordeu a própria mão para escapar. Apesar de ter matado o pai que o torturara, poupou a vida à mãe que fora surda às suas súplicas.
Finalmente livre do seu longo cativeiro, Victor, qual besta-fera sedenta de sangue e vingança, deu rédea solta ao seu instinto assassino. Aos 13 anos já assolara três províncias canadianas e matara outros tantos agentes da Lei. 
Mais tarde, em 1912, Victor atacou Blackfoot, uma pequena comunidade onde coabitavam brancos e indígenas. E que, por aqueles dias, dava guarida a um homem solitário e sem passado chamado Logan. Do ataque resultou a (aparente) morte de Raposa Prateada, a amante índia de Logan. Foi, pois, com o sangue de uma inocente que começou a ser escrita a história de uma das mais velhas e cruéis inimizadas dos quadradinhos. 
Após várias décadas em paradeiro incerto, Victor Creed, agora cognominado Dentes-de-Sabre, ressurgiu em plena Guerra do Vietname no comando da Equipa X, grupo especializado em operações clandestinas com o patrocínio da CIA. Durante esse período, Victor e Logan combateram lado a lado. Mas nem o facto de serem irmãos de armas amenizou o ódio mútuo. Ao contrário do rival, Victor não fazia o menor esforço para reprimir a sua selvajaria e deliciava-se com a matança de aldeões.
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Victor Creed reencontrou Logan na Equipa X.

Anos mais tarde, durante uma missão na Alemanha, Dentes-de-Sabre foi designado para proteger Leni Zauber, uma sedutora espia germânica. O casal tornou-se íntimo e Zauber (na verdade, Mística sob disfarce) acabaria por dar à luz um filho em segredo. Em adulto, Graydon Creed fundaria os Amigos da Humanidade em vésperas de se candidatar à Casa Branca estribado numa agenda antimutante. Graydon nunca perdoou o abandono a que foi votado pelos pais mutantes - embora, em abono da verdade, Victor ignorasse a sua existência. 
Cooptado para a Arma X, um programa militar ultrassecreto do Governo canadiano objetivando a criação de supersoldados, Dentes-de-Sabre foi submetido a uma lavagem cerebral e teve falsas memórias implantadas. Reencontrou, uma vez mais, Logan (vulgo Wolverine) e, tal como ele, teve o seu esqueleto revestido com adamantium. Se um e outro já eram perigosos antes dessa transformação, depois dela converteram-se em máquinas de matar virtualmente indestrutíveis. 
Primeiro sozinho, depois em parceria com o Constritor, Dentes-de-Sabre passaria entretanto a operar como um assassino de aluguer muito requisitado no submundo do crime. Tal como Wolverine, ele era o melhor naquilo que fazia. Mas o que fazia não era bonito de se ver.
Logo após a dissolução da sua sociedade com o Constritor (e de o ter deixado às portas da morte), Dentes-de-Sabre foi recrutado por Gambit para integrar os Carrascos. Às ordens do Senhor Sinistro, o grupo massacrou os Morlocks, a comunidade de párias mutantes instalada nos túneis subterrâneos de Nova Iorque. Dentes-de-Sabre e Wolverine voltaram a então a digladiar-se, tendo sido essa a primeira ocasião em que o vilão se assumiu como mutante.
Fiel à sua natureza selvagem, Dentes-de-Sabre reconhece apenas a lei do mais forte e continua a ter em Wolverine a sua presa favorita. Todos os anos, no dia de aniversário de Logan, Dentes-de-Sabre acossa o seu rival e tenta matá-lo. Numa versão mais brutal do jogo do gato e do rato, em que apenas o primeiro se diverte.
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Sangue na neve.


Miscelânea

*Esquartejador, El Tigre, Deus da Caça, Mutante Selvagem, Senhor dos Assassinos do Hemisfério Oriental e Carniceiro de Daimsho são as macabras alcunhas associadas a Dentes-de-Sabre. Com centenas de mortes no currículo, faz jus a cada uma delas e a sua sangrenta reputação precede-o;
*Dentes-de-sabre é a designação genérica atribuída aos grandes felídeos pré-históricos que, cerca de 700 mil anos atrás, percorriam os vastos territórios correspondentes à América do Norte e do Sul. Caçadores eficientes, dispunham de membros anteriores excecionalmente desenvolvidos e longos caninos concebidas para abaterem animais de porte superior ao seu, como bisontes, cavalos ou até mamutes. O mais conhecido era o esmilodonte, extinto há, aproximadamente, 10 mil anos;
*Antes de deixar a série mensal dos X-Men, John Byrne tinha várias histórias prontas. Uma delas mostraria como Dentes-de-Sabre (que, até então, tinha aparecido apenas em Iron Fist), depois de assassinar Mariko, a amada de Wolverine, acabava morto às mãos deste. Não sem antes revelar que era o pai de Logan. Esta revelação iria ao encontro da velha pretensão de Chris Claremont de atribuir a paternidade de Wolverine ao seu arquirrival, ligação familiar que outros escritores dos Filhos do Átomo descartaram;
*Apesar de, ao longo da vida, Victor Creed pouco ou nada ter feito para contrariar o seu instinto assassino, por vezes o seu lado animalesco oprime-o. Para o manter controlado, coagiu em tempos uma telepata chamada Colibri a ministrar-lhe regularmente um sedativo psíquico a que ele chamava "Brilho". Após a morte de Colibri, os sintomas de abstinência exacerbaram ainda mais a ferocidade de Dentes-de-Sabre, levando-o a procurar ajuda junto dos X-Men. Acabaria no entanto lobotomizado pelo Professor X e, durante algum tempo, colocou os seus extraordinários talentos de rastreador ao serviço do grupo;

Colibri era um bálsamo para alma atormentada de Victor Creed.

*Quando, a fim de garantir a subserviência dos Carrascos, o Senhor Sinistro clonou os seus membros aos pares, Maré Selvagem (Riptide, no original) foi o parceiro genético de Dentes-de-Sabre. Por razões nunca explanadas, o Senhor Sinistro lamentaria mais tarde a impossibilidade de voltar a clonar Dentes-de-Sabre;
*Dentes-de-Sabre serviu de inspiração a um vilão da DC chamado Coiote. Trata-se de um dos integrantes dos Extremistas, grupo de terroristas meta-humanos que, em diversas ocasiões, mediram forças com a Liga da Justiça;

Coiote (DC) versus Dentes-de-Sabre. 
Descubram as diferenças.

*Dentes-de-Sabre fez a sua primeira aparição no Brasil em Mestre do Kung Fu nº30 (Bloch, 1978). Três anos mais tarde, em 1981, já sob o selo da Abril, a sua origem seria revisitada em Heróis da TV nº21. Nessa e noutras histórias subsequentes publicadas pela mesma editora, o vilão surgiu identificado como Dente-de-Sabre, numa tradução literal da sua nomenclatura original (em inglês, "tooth" é o singular de "teeth");
*Desde 2009 que Dentes-de-Sabre ocupa, resvés com Pistoleiro e Arlequina (ambos da DC), o 44º lugar na lista dos cem maiores vilões de todos os tempos elaborada pelo site de entretenimento IGN. No ano anterior, a revista Wizard atribuíra-lhe a 193ª posição no seu ranking das 200 melhores personagens dos quadradinhos;
*Presença assídua em várias séries animadas e jogos de vídeo dos Filhos do Átomo, no cinema Dentes-de-Sabre foi interpretado pelo ex-wrestler Tyler Mane em X-Men (2000) e por Liev Schreiber em X-Men Origins: Wolverine (2009), sendo retratado neste último como meio-irmão de Logan.

Liev Schreiber (esq.) e Tyler Mane encarnaram Dentes-de-Sabre no cinema.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à variante europeia da Língua Portuguesa.
*Artigos sobre Chris Claremont, John Byrne, Mística, Senhor Sinistro e Massacre de Mutantes disponíveis para leitura complementar.






04 fevereiro 2021

HERÓIS EM AÇÃO: SOCIEDADE DA JUSTIÇA DA AMÉRICA


   A história da primeira equipa de super-heróis - aliança de velhas glórias da Idade de Ouro - confunde-se com a da própria DC. Tantas vezes arrastado pelo inelutável caudal de uma continuidade convulsa, o seu legado mantém-se teimosamente à tona na memória coletiva.

Denominação original: Justice Society of America
Editora: DC
Criadores: Sheldon Mayer e Gardner Fox
Estreia: All-Star Comics #3 (dezembro de 1940)
Local de formação: Casa Branca, Washington D.C.
Membros fundadores: Lanterna Verde (Alan Scott), Flash (Jay Garrick), Homem-Hora (Rex Tyler), Senhor Destino (Kent Nelson), Átomo (Albert Pratt), Gavião Negro (Carter Hall), Espectro (Jim Corrigan) e Sandman (Wesley Dodds)
Base operacional: Civic City, um subúrbio de Filadélfia, foi o primeiro quartel-general da equipa, sediada desde o pós-Crise num discreto edifício de arenito no centro da Nova Iorque da Terra-2.
Némesis: Sociedade da Injustiça

Cavaleiros da Távola Redonda

Qual figuração moderna dos Cavaleiros da Távola Redonda, a Sociedade da Justiça da América (SJA) vem combatendo o Mal nas suas diferentes formas desde 1940, ano em que inaugurou uma nova e bem sucedida tendência. Foi ela, com efeito, a primeira equipa de super-heróis da história dos comics, pavimentando o caminho para uma multidão de epígonos.
De tão inextricavelmente ligada à fundação da DC, a origem da SJA confunde-se com a da própria editora que a apadrinhou. Tudo começou em 1939, quando o proprietário da National Comics, Harry Donenfeld, se associou ao pioneiro da indústria dos quadradinhos Max Gaines para formar uma empresa irmã chamada All-American Publications. A despeito do seu estatuto de subsidiária, a nova companhia disporia de ampla autonomia editorial, bem como do seu próprio acervo de personagens.
Ao cabo do primeiro ano de existência, no inventário da All-American Publications pontificavam ativos tão valiosos como Flash, Lanterna Verde ou Gavião Negro. Todos eles desfilavam o seu heroísmo pelas páginas de All-American Comics, título antológico que serviria de inspiração ao lançamento de All-Star Comics, em junho de 1940.
A proposta editorial de All-Star Comics consistia inicialmente em reunir numa mesma revista os heróis mais populares das duas empresas que, pouco tempo depois, se fundiriam para dar origem à DC. Um almanaque pejado de justiceiro fantasiados representava, por si só, uma novidade, logo replicada pela concorrência. Nos meses seguintes, a MLJ (subsidiária da Archie Comics) apostaria forte em Jackpot Comics, ao passo que a Timely (antepassada da Marvel) brindaria os leitores com All-Winners Comics.
A verdadeira inovação chegaria, porém com o terceiro número de All-Star Comics, datado de dezembro de 1940. Por sugestão de Sheldon Mayer, editor-chefe da All-American Publications, os habitués da série foram, pela primeira vez, reunidos numa mesma história. Assinada por Gardner Fox, nela participaram dois representantes de cada uma das quatro antologias então publicadas pela National e pela All-American: Flash & Gavião Negro (Flash Comics), Átomo & Lanterna Verde (All-American Comics), Senhor Destino & Espectro (More Fun Comics) e ainda Homem-Hora & Sandman (Adventure Comics). Oito titãs da justiça que nunca antes haviam trabalhado juntos. Mas isso estava prestes a mudar.  

O ato fundador da SJA teve lugar em All-Star Comics #3 (1940).

Desse primeiro conclave informal resultou a formação da Sociedade da Justiça da América. À falta de um inimigo comum que justificasse a união de esforços, os heróis, sentados a uma mesa de restaurante(!), limitaram-se a compartilhar entre si algumas das suas maiores façanhas. Extasiados, os leitores ficaram no entanto sem saber o que motivara aquela inusitada reunião. Com efeito, conforme se perceberá na segunda parte deste artigo, só três décadas mais tarde seria revelada a origem oficial do grupo. 
Conscientes de que haviam tropeçado numa mina de ouro, a National e a All-American apressaram-se a alterar a periodicidade de All-Star Comics de trimestral para bimestral. Ao invés de apenas revisitarem os seus feitos individuais, os heróis passaram, também, a operar como um verdadeiro coletivo. 
Nas suas primícias, All-Star Comics apresentava aventuras a solo de vários heróis (frequentemente desenhados pelas seus equipas criativas regulares), culminando com a reunião da SJA contra um inimigo comum na ponta final de cada história. Com uma extensão até 58 páginas, os contos de recorte épico enlevavam os leitores, aparentemente indiferentes à arte tosca e às muitas inconsistências cronológicas (à época, continuidade era mera abstração).
Ao elenco estelífero da SJA começou por presidir o Flash, mas o seu mandato seria curto. Devido às suas obrigações como defensor de Keystone City, o Velocista Carmesim viu-se obrigado, logo em All-Star-Comics #7, a renunciar à liderança da recém-fundada equipa. Em boa verdade, o motivo para essa circunstância foi outro. Flash acabara de ganhar a sua própria série mensal, prerrogativa que ditou a sua inapelável expulsão da antologia.

Flash foi o primeiro líder da SJA.

Com o tempo, All-Star Comics passara a ter como objetivo primordial a promoção de personagens de segunda linha. Em razão dele, qualquer herói que protagonizasse a sua própria série seria considerado inelegível para participar na antologia. De modo a prevenir os perigos subjacentes à sobre-exposição, era pois esse o principal critério de admissão na SJA. O mesmo que explica a atribuição do estatuto de membros honorários ao Super-Homem e ao Batman, reduzidos a participações esporádicas nas histórias do grupo. 
No entanto, a recíproca também era aplicável: se uma personagem perdia destaque noutra série era prontamente desfiliada da SJA. A primeira vítima dessa regra foi o Homem-Hora, após ter tido o respetivo segmento cancelado em Adventure Comics.
Após a saída forçada do Flash, a SJA seria brevemente capitaneada pelo Lanterna Verde. Cujo mandato seria ainda mais curto do que o do antecessor, ao ser-lhe, logo em seguida, atribuída uma série epónima. Sucedeu-lhe então o Gavião Negro, que lideraria a equipa até ao cancelamento de All-Star Comics, no início de 1951.
Desfalcada de dois dos seus membros mais proeminentes, a SJA admitiria logo depois nas suas fileiras Johnny Trovoada (até então uma espécie de mascote da equipa) e Starman (Ted Knight), em quem os editores depositavam grandes esperanças. Menores, ainda assim, do que aquelas que depositavam na Mulher-Maravilha, cuja estreia ocorreu em All-Star Comics #8 (dezembro de 1941). Em nome da diversidade, Diana juntar-se-ia à equipa quatro números depois, mas como sua secretária(!). Uma indignidade para a Princesa Amazona, que deixaria qualquer feminista moderna de cabelos em pé. No entanto, eram os anos 1940 e a descrição de funções da novata incluía, por exemplo, a redação das atas das reuniões da SJA.

A Mulher-Maravilha rejubila com a sua "promoção" a secretária da SJA.

Em consequência da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, a SJA foi temporariamente transformada numa força-tarefa especial denominada Batalhão da Justiça, que tinha por missão combater as forças do Eixo ao lado do Exército americano. Durante essa fase, a equipa recrutou dois novos membros: Senhor Incrível (Terry Sloane) e Pantera (Ted Grant). Apesar de a participação de ambos se ter resumido a All-Star Comics #24, histórias posteriores estabelecê-los-iam como integrantes mais ativos. Quem também em, diversas ocasiões, colaborou com a SJA sem, contudo, ter sido oficialmente admitida no grupo foi a Mulher-Gavião - essencialmente devido à sua parceria heroica e amorosa com o Gavião Negro.
No final de 1944, coincidindo com o auge de All-Star Comics, Max Gaines dissolveu inopinadamente a sua sociedade com Harry Donenfeld. Decisão tomada no rescaldo de uma querela entre ambos motivada pela entrada de Jack Liebowitz (o contabilista da National Comics) no Conselho de Administração da All-American Publications. Consequentemente, Espectro e Starman, ambos detidos pela National, foram expulsos da SJA. Castigo idêntico àquele que já havia sido aplicado a Sandman e Senhor Destino, após o cancelamento dos respetivos títulos a solo. 
Quando a poeira assentou, Gaines vendeu a Donenfeld a sua participação na All-American Publications, e esta foi formalmente fundida com a National, dando origem à neófita Detective Comics. Surpreendentemente, o elenco da SJA continuou a ser composto na totalidade por heróis da All-American.
Indiferente a tudo isto, o grupo continuava a medir forças com alguns dos mais formidáveis vilões da Idade de Ouro. De Vandal Savage a Solomon Grundy, passando pelo Pirata Psíquico, eram muitos os adversários que punham à prova as capacidades da SJA. Seguindo o velho mantra "A união faz a força.", alguns desses supervilões formariam entretanto a Sociedade da Injustiça, depressa elevada a némesis da SJA.

A Sociedade da Injustiça reunia alguns dos mais poderosos vilões da Idade de Ouro.

Com os regressados Flash e Lanterna Verde e a arte aprimorada de uma nova leva de talentosos desenhadores encabeçada, entre outros, por Alex Toth e Andy Kubert, All-Star Comics escapou à primeira onda de cancelamentos determinada pela perda de tração do género super-heroico no pós-guerra. Em 1947, quando esse declínio era já uma evidência solar, a SJA daria as boas-vindas à sua segunda integrante feminina. Canário Negro juntou-se à equipa em All-Star Comics #38, preenchendo a última vaga no elenco clássico.
Quando, em 1949, a DC cancelou praticamente toda a sua linha de super-heróis, à razia foram somente poupados os títulos solo da Trindade e All-Star Comics. Foi nele que as personagens antes queridas da All-American se entrincheiraram para resistir às investidas do oblívio. Mas o melhor que conseguiram foi adiar o inevitável.
Sem pompa nem circunstância, a SJA fez a sua última aparição na Idade de Ouro em All-Star Comics #57 (março de 1951). Na edição seguinte, a série foi renomeada All-Star Western, assinalando o fim de uma era. E o início do longo purgatório da Sociedade da Justiça da América.

Regresso ao futuro

Contrastando com a miríade de super-heróis relegados ao ostracismo nos anos terminais da Idade de Ouro, após a sua saída de circulação a SJA converteu-se num fenómeno de culto entre os fãs. Mesmo longe da vista, o grupo manteve-se, assim, perto do coração do público.
Na segunda metade da década de 1950, quando a DC começou a apresentar versões modernas de algumas das suas velhas glórias, a SJA inspirou a criação da sua sucessora espiritual da Idade de Prata: a Liga da Justiça da América.
Para explicar a (co)existência de dois Flashes, dois Lanternas Verdes, dois Gaviões Negros, etc., a DC inventou outras tantas realidade paralelas. Ficando desse modo estabelecido que os integrantes da SJA e demais heróis clássicos eram, na verdade, originários, da Terra-2, servindo a Terra-1 de lar aos seus congéneres contemporâneos. Um jogo de espelhos geracional que lançou as bases do complexo Multiverso da Editora das Lendas.
Em 1963, o intenso clamor dos fãs pelo regresso da SJA motivou Julius Schwartz (à época, editor da Liga da Justiça) a produzir um crossover entre as duas equipas. Perante a reação entusiástica dos leitores, Schwartz resolveu transformar o evento numa tradição anual, apenas interrompida em 1985 pelos efeitos disruptivos da  Crise nas Infinitas Terras.

O primeiro encontro SJA/LJA ocorreu em Justice League of America #21-22 (1963).

Essa renovada onda de afeição pela SJA culminaria em 1976 com a revivificação de All-Star Comics retomando a sua numeração original, um quarto de século após a chegada da última edição às bancas.
A nova vida de All-Star Comics não foi, contudo, um mero exercício nostálgico a pensar nos leitores da velha guarda. Recém-contratado à Marvel, o escritor Gerry Conway encarregou-se de injetar sangue fresco na série.
Nos seus últimos anos de atividade, a SJA, já curada da sua misoginia, funcionara como monstra para as suas integrantes femininas. Tanto a Mulher-Maravilha como a Canário Negro vinham ganhando cada vez maior preponderância no grupo. Dentro do mesmo espírito, a SJA admitiu duas novas heroínas: Caçadora e Poderosa (respetivamente, a filha do Batman e da Mulher-Gato e a versão madura da Supergirl, ambas da Terra-2). Nem o poder combinado da SJA evitou, porém, o cancelamento de All-Star Comics. Cujo número 78, dado à estampa em outubro de 1978, sinalizou a segunda morte desse histórico título da DC.

O último número de All-Star Comics.

Concebida como a solução final para a convulsa continuidade da DC, em 1985 a saga Crise nas Infinitas Terras implodiu o Multiverso. Dada a existência de uma única Terra, os editores, prevenindo novas incongruências cronológicas, entenderam por bem desembaraçar-se de vez da SJA. Com o seu desaparecimento a ser explicado através da recriação do mito de Sísifo. 
Numa desesperada tentativa para inverter o rumo do conflito, nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial Adolf Hitler pusera em marcha o Ragnarok, equivalente do Apocalipse na mitologia nórdica. Para travá-lo, Espectro e Senhor Destino transportaram a SJA para o Limbo, onde o grupo enfrentou e derrotou os deuses antigos. No entanto, sempre que o faziam a batalha recomeçava. À semelhança do ordálio de Sísifo, a SJA viu-se obrigada a combater os mesmos inimigos até ao fim dos tempos.
Objeto de sucessivos revivalismos ao longo de toda a década de 1990, sob a forma de séries e minisséries, a SJA teve finalmente a sua origem revelada em Secret Origins Vol.2 #31. Saída da pena de Roy Thomas (que, desde a infância, idolatrava o grupo), a história mostrava como, em finais de 1940, o Presidente Franklin D. Roosevelt, contornando o isolacionismo americano imposto pelo Congresso, recrutara um contingente de justiceiros fantasiados para colaborarem secretamente com os aliados europeus que resistiam como podiam ao ímpeto conquistador do III Reich. Findo o conflito, a SJA mantivera-se ativa no combate ao crime e à corrupção.
Num outro retcon foi igualmente aduzida a verdadeira razão para a saída de cena da SJA. Intimados, em 1951, a depor perante o Comité de Atividades Antiamericanas presidido pelo senador republicano Joseph McCarthy, os seus membros recusaram revelar as suas identidades civis, preferindo a reforma antecipada e uma velhice tranquila.

A SJA desafia o todo-poderoso Comité de Atividades Antiamericanas.

No contexto dos Novos 52, o último evento redefinidor do Universo DC, diversas personagens da Idade de Ouro foram reimaginadas por forma a torná-las apelativas para as novas gerações. Cinco anos após a morte da Trindade às mãos do Lobo da Estepe, o poderoso general de Darkseid, a Terra-2 testemunhou o alvorecer de uma nova era heroica. Flash (agora adolescente), Lanterna Verde (agora homossexual), Senhor Incrível (agora negro) e outras maravilhas uniram forças para repelir nova invasão massiva das hordas de Apokolips. Apesar de o espírito ser o mesmo, o grupo não reclamou para si o legado nominal da Sociedade da Justiça da América. Aquele que, em 2010, marcou presença em dois episódios da 9ª temporada de Smallville e que, por estes dias, desempenha papel central na série Stargirl. Neste seu regresso ao futuro pelas estradas digitais do terceiro milénio, a SJA terá ainda oportunidade de brilhar no vindouro filme do Adão Negro. 
À luz dos padrões contemporâneos, os heróis da Idade de Ouro parecem demasiado simplistas, mas personificavam uma visão esperançosa e moralizadora do mundo, bastante revigorante neste século XXI sob o signo do relativismo. Nas suas diferentes encarnações, a SJA provou ser notavelmente resistente às ondas de revisionismo e cinismo que, de tempos a tempos, varrem a indústria dos comics. Em vários aspetos, estas reminiscências da Idade de Ouro representam o passado da DC (e, por extensão, de toda uma subcultura), e por mais que a empresa tente matá-las ou apagar o seu lastro histórico, elas aí estão para enriquecer novas gerações de leitores. Porque não existe futuro despido de passado e porque certos valores, tal como os heróis que os representam, nunca saem de moda.

Heróis de ontem, hoje e amanhã.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
* Artigos sobre Gardner Fox, Gavião Negro, Lanterna Verde, Vandal Savage, Roy Thomas e Crise nas Infinitas Terras disponíveis para leitura complementar.



























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07 janeiro 2021

ETERNOS: SY BARRY (1928 - ...)

Sy  Barry é uma lenda vida da 9ª Arte, uma inspiração para artistas de diferentes gerações e um dos últimos detentores da memória descritiva da Idade de Ouro dos comics. No decurso da sua vetusta carreira, produziu mais de 11 mil tiras do Fantasma lidas diariamente por milhões de pessoas nos quatro cantos do mundo. Parceiro criativo de Lee Falk, inúmeras histórias por ele ilustradas converteram-se em clássicos e ainda hoje são reimpressas. Em 1994, deixou um sentimento de orfandade nos fãs do Espírito-Que-anda ao abandonar a personagem a quem emprestara o traço durante mais de três décadas. 

Mesmo após tanto tempo, a sua popularidade segue em alta e a sua obra continua a ser reverenciada. Em 2005, foi galardoado com um Inkpot Award, prémio que anualmente distingue as personalidades mais influentes da cultura popular. Para os leitores mais recentes, porém, não passa de um ilustre desconhecido. Importa, por isso, dar a conhecer um pouco melhor o homem que, tal como o Espírito-Que-Anda, nasceu predestinado à imortalidade. 

Seymour "Sy" Barry veio ao mundo a 12 de março de 1928 em Nova Iorque, cidade onde passou praticamente toda a vida e onde continua a residir. Irmão mais novo de Dan Barry, artista consagrado pelo trabalho desenvolvido nas tiras diárias de Flash Gordon na década de 1950, o pequeno Sy tinha no lápis uma espécie de extensão da sua mão direita. Tanto assim que afirma não guardar memória de uma ocasião em que não estivesse a rabiscar um esboço. Com efeito, foi ainda nos tempos de meninice que o seu talento atraiu as primeiras atenções e louvores.

Quando várias escolas primárias da Grande Maçã organizaram um concurso artístico, Sy resolveu submeter um dos seus desenhos à apreciação do júri. O desenho em questão não só arrebatou o primeiro prémio como teve o privilégio de ficar em exposição, durante largas semanas, no Museu de Arte de Nova Iorque. 

No liceu, o talento inato de Sy também não passou despercebido. Um dos seus professores incentivou-o a tentar a admissão na School of Industrial Art de Nova Iorque. Sy tentou a sua sorte e fez parte do restrito lote de eleitos entre milhares de candidatos rejeitados. Corria o ano da graça de 1943 e foi nessa mui prestigiada instituição que Sy cunhou amizade para a vida com outros artistas com pedigree, como Joe Giella, Al Scaduto ou Emilio Squeglio. Representantes, todos eles, da ínclita geração de arquitetos e obreiros da Idade de Prata.

Concluídos os estudos, Sy empreendeu a sua carreira profissional como freelancer da Famous Funnies, aquela que muitos historiadores da cultura popular identificam como a primeira revista americana de banda desenhada. Nos anos imediatos, faria praticamente o pleno das principais editoras da época: Lev Gleason, Hillman Publications, Timely Comics e National Comics (estas últimas, antepassadas da Marvel e da DC, respetivamente). 

Famous Funnies acolheu os primeiros trabalhos profissionais de Sy Barry.

Em virtude dos modestos salários praticados pelas editoras, Sy, seguindo o exemplo de tantos outros oficiais do mesmo ofício, apostou na diversificação do seu portfólio. Nesse sentido, ao seu significativo aporte para o desenvolvimento da indústria dos comics somou colaborações em obras de literatura infantil e panfletos publicitários. Durante essa fase inicial da sua carreira, teve o privilégio de trabalhar com outros futuros mestres da Arte Sequencial, como Alex Toth (criador de Space Ghost), Frank Giacola (arte-finalista de Jack Kirby) ou André LeBlanc (seu futuro assistente nas tiras do Fantasma). Relações profissionais invariavelmente pautadas pela admiração mútua e que, não raro, estiveram na origem de boas amizades. 

Pouco tempo depois, Sy passaria a arte-finalizar os esboços do seu irmão nas tiras de Flash Gordon. Ainda que não tenha sido devidamente creditado, chegou mesmo a desenhar algumas histórias enquanto Dan esteve ausente na Europa. Cada vez mais requisitado, assumiu também a arte das tiras diárias do Super-Homem e do Batman, bem como de títulos emblemáticos como Action Comics (onde, em 1938, o Homem de Aço fizera a sua estreia). De histórias românticas a contos policiais, foram vários os géneros pelos quais transitou ao longo dessa sua primeira fase seminal.

Tira dominical colorida de Flash Gordon produzida pelos irmãos Dan e Sy Barry.


Em 1957, quando os afroamericanos ensaiavam os primeiros passos na sua tortuosa marcha pelos direitos civis, Sy Barry foi o artista escolhido para desenhar Martin Luther King and the Montgomery Story. Uma banda desenhada que era, simultaneamente, um manifesto político e um guia para ações de desobediência civil. Além de revisitar o boicote aos autocarros organizado, entre 1955 e 1956, pela população negra da cidade de Montgomery (Alabama) em protesto contra as leis segregacionistas, a obra incluía também uma pequena biografia de Martin Luther King. Com uma tiragem de 375 mil exemplares (um terço dos quais em espanhol), a revista foi distribuída em escolas e congregações frequentadas por afroamericanos e foi instrumento essencial para a propagação do evangelho igualitário do reverendo idealista que sonhava com uma sociedade pós-racial. Anos mais tarde, Sy declarou que esse trabalho serviu para aperfeiçoar a sua habilidade de desenhar negros, que tão útil lhe seria nas histórias do Fantasma.

A obra que associou o nome de Sy Barry à luta pelos direitos civis.

Apesar de a assinatura de Sy Barry figurar na capa da primeira edição de Martin Luther King and the Montgomery Story, em edições posteriores ela seria coberta por uma caixa de texto. Em razão disso, a identidade do desenhador foi, durante muito tempo, objeto de controvérsia e especulação. Até que, em 2008, Sy Barry confirmou ser ele - e não o irmão, como alguns suspeitavam - o legítimo dono do traço. Em 2018, um dos painéis da obra seria incluído na lista das cem páginas mais marcantes da história da banda desenhada divulgada pela revista Vulture

Sempre sob a asa do seu irmão mais velho, Sy logo passaria também a assisti-lo na tira de Tarzan. Apesar de enternecedora e profícua, a parceria entre os manos Barry tinha os dias contados. 

Quando, em 1961, Wilson McCoy sucumbiu a um fulminante ataque cardíaco, a King Features Syndicate apressou-se a encontrar novo artista para as tiras do Fantasma. A escolha inicial incidiu sobre Bill Lignate, mas o seu traço desagradava a Lee Falk. Cedendo às pressões do criador do Espírito-Que-Anda, a King Features despachou Lignate e lançou um concurso para escolher o sucessor de McCoy. Sy inscreveu-se e foi o escolhido para ilustrar aquela que era então a tira mais popular a nível global. 

Iniciava-se, assim, uma ligação de 33 anos, que faria de Sy Barry o recordista de longevidade nas histórias do Fantasma. Nenhum outro artista lhe emprestou o traço durante tanto tempo. E nenhum teve tanta influência na evolução da personagem.

Desde o início, Sy teve como principal preocupação a modernização da tira, que começava a acusar algum anquilosamento. Nesse sentido, persuadiu Lee Falk a modificar alguns elementos anacrónicos presentes no imaginário do Fantasma. No que pode ser percecionado como uma prefiguração da África pós-colonial, Bangalla (agora uma nação soberana) ganhou um presidente negro (Lamanda Luaga) e a Patrulha da Selva deixou de ter um comandante branco (o tradicional coronel Weeks foi rendido no posto pelo coronel Worubu). Apenas dois das dezenas de novos coadjuvantes que, no rolar das décadas, Sy Barry ajudaria a criar, enriquecendo ainda mais a mitologia do Espírito-Que-Anda.

Lamanda Luaga, o primeiro presidente negro de Bangalla.

Tal como os leitores, Lee Falk depressa ficou rendido ao trabalho de Sy Barry. Os seus traços sofisticados evidenciavam interpretações simplificadas e eram uma síntese harmoniosa das refinadas técnicas de Wilson McCoy com o estilo elegante do próprio Sy em Flash Gordon. Com o passar do tempo, este último acabaria por prevalecer, embora em permanente evolução. Sy chegou mesmo a utilizar referências fotográficas retiradas da revista National Geographic para imprimir um toque de maior realismo às paisagens da selva. Que, no entanto, deixou ser o único habitat do Espírito-Que-Anda.

Sob o traço de Sy Barry, a tira do Fantasma ganhou novo fôlego.

Retirar com maior frequência o Fantasma da Floresta Negra transplantando-o para a selva de betão foi outra das inovações introduzidas por Sy Barry. O seu contributo foi igualmente decisivo para o estabelecimento do visual definitivo do herói. Em 1972, essa modernização plástica traduziu-se num novo modelo de máscara que se tornou icónico: mais pequena e no formato de dois triângulos invertidos verticalmente. 

Dono de um traço expressivo e dinâmico, o estilo de Sy Barry possuía outros pontos de interesse. O intrincado sombreado da misteriosa presença do Fantasma ao fundo dos painéis ou a aglomeração imaginária de crânios flutuantes são alguns dos exemplos mais memoráveis. Quando o Espírito-Que-Anda visitava ruínas, cada folha, pedra ou sombra era meticulosamente desenhada até ao mais ínfimo pormenor. De igual modo, as simplificadas, porém elegantes, poses do Fantasma de Sy Barry serviram de referência visual a outros artistas. Também Billy Zane se inspirou nelas para a sua interpretação do herói na longa-metragem epónima de 1996.



Sy Barry é considerado o artista definitivo do Fantasma.

No auge da sua popularidade, por volta de 1966, as tiras do Fantasma, publicadas em jornais e revistas,  eram lidas diariamente por mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Muitas dessas histórias são ainda incluídas em volumes antológicos editados em países como Índia, Suécia ou Austrália. Pela mão de Sy Barry, o Espírito-Que-Anda tornou-se um fenómeno global. 

Apesar de ter sido sob o incansável lápis de Sy Barry que o Fantasma viveu os seus anos de maior esplendor, a verdade é que muitas dessas histórias foram na verdade desenhadas por um contingente de "artistas-fantasmas". Neal Adams, Fred Fredricks, André LeBlanc e George Olensen (o mais frequente) foram alguns dos desenhistas cujos esboços foram finalizados por Sy. Era ela no entanto quem definia os cenários, as angulações e demais elementos necessários para a execução gráfica da narrativa. Foi esse o expediente encontrado por Sy para fazer face aos prazos apertados (apontados, de resto, como a principal razão para a sua algo precoce saída de cena). 

Interessado em abraçar novos projetos e em passar mais tempo na companhia da família e amigos, Sy Barry abandonou a tira do Fantasma em 1994. Atualmente com 92 anos, desfruta do inverno da vida no remanso de Long Island (Nova Iorque) na companhia da esposa, ocupando a maior parte do seu tempo a aperfeiçoar as suas técnicas de pintura. Especializou-se em desenhar retratos e paisagens misturando óleo, acrílico e aguarelas. Mas o Fantasma paira ainda sobre os seus dias. 

Nos últimos anos, foram vários os esboços de Sy que serviram de capa a edições do Fantasma publicadas em diferentes pontos do globo. Foi o caso, por exemplo, da capa do número inaugural de The Phantom: Ghost Who Walks, série mensal lançada em março de 2009 pela Moonstone.

Sy Barry assinou uma das capas de The Phantom: Ghost Who Walks #1.

Sy conserva também gratas memórias dos seus encontros com fãs. Em 2001, durante a sua digressão pela Escandinávia (onde o Fantasma é um totem da cultura popular), foi recebido como uma estrela de rock. Sempre humilde e afável, apesar do seu estatuto de aristocrata da 9ª Arte, Sy retribui o carinho dos seus admiradores marcando presença em jantares e convenções anuais, onde tem por hábito presenteá-los com desenhos a lápis da sua autoria. Verdadeiros tesouros sem preço para qualquer amante da banda desenhada.

Revisitar a exuberante obra de Sy Barry, o último dos grandes mestres da Arte Sequencial, é pois um revigorante passeio pelas alamedas da memória com a encantatória presença do Espírito-Que-Anda pressentida a cada passo.

Sy Barry mantém uma relação próxima com os fãs.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.

*Artigos sobre Lee Falk e o filme do Fantasma disponíveis para leitura complementar.