28 janeiro 2019

ETERNOS: GARDNER FOX (1911-1986)


  Arquiteto de duas eras, construiu as bases do Multiverso DC, (re)criou e reuniu pela primeira vez alguns dos maiores símbolos da Editora das Lendas. A despeito da importância e grandiosidade do seu legado, permanece um ilustre desconhecido para muitos aficionados da 9ª Arte.

Num belo dia de 1967, a Universidade do Oregon recebeu uma inusitada oferenda: 14 caixas a abarrotar de livros, bandas desenhadas, argumentos, correspondência e documentação diversa pertença de um tal Gardner Fox. A conselho do seu agente literário, aquele que foi um dos mais prolixos e versáteis escribas de sempre, doou à centenária instituição parte do seu acervo cultural, por forma a obter benefícios fiscais. Meio século volvido, o sobredito material permanece com a sua fiel depositária e constitui parcela significativa do espólio desse grande vulto da 9ª Arte. Cuja riquíssima obra, conquanto reverenciada pelos seus pares, continua a ser ignorada por muitos fãs de super-heróis, mormente entre aqueles que elegem a DC como predileta.
Nova-iorquino de gema, Gardner Francis Cooper Fox nasceu a 20 de maio de 1911 no Brooklyn, um dos mais pitorescos bairros da cidade insone. Criado no seio de uma família de burgueses conservadores, mal aprendeu a juntar as primeiras letras deu mostras de uma insaciável volúpia literária.
Por volta dos 11 anos de idade, o pequeno Gardner Fox leu, de um fôlego, duas histórias que, segundo o próprio, lhe apresentaram um mundo completamente novo. Ambas saídas da virtuosa pena de Edgar Rice Burroughs (criador de Tarzan e John Carter, e uma das principais influências literárias de Fox), The Gods of Mars e The Warlord of Mars incutiram-lhe o fascínio pela ficção científica, um dos géneros em que, futuramente, mais se notabilizaria.

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Uma das histórias que mais marcou
 Gardner Fox nos seus verdes anos.
Depois de cursar Direito no St. John's College, seleta universidade católica que lhe serviu de alma mater, entre 1935 e 1937 Gardner Fox foi advogado de barra em diferentes tribunais nova-iorquinos. Em plena Grande Depressão, depressa percebeu, porém, que teria melhores perspetivas de carreira naquela que era uma das poucas indústrias promissoras numa economia convalescente após a terapia de choque do New Deal: os comic books.
Pela mão de Vic Sullivan, à época editor-chefe da National Allied Publications (uma das antecessoras da DC Comics), em meados de 1937 Gardner Fox ingressou na casa onde o Super-Homem haveria de pendurar a capa. Apesar de a sua estreia como argumentista ter ocorrido em Detective Comics nº4, nos anos seguintes Fox assinaria centenas de histórias nos principais títulos que compunham o catálogo da editora. Nada que obstasse à intensa colaboração que desenvolvia, em paralelo, com vários magazines pulp que davam à estampa os seus contos de ficção científica.

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Edição onde Gardner Fox fez a sua estreia como argumentista.
Senhor de um saber enciclopédico, Gardner Fox (para quem o acúmulo de conhecimento era, nas suas próprias palavras, uma espécie de passatempo) salpicava as suas narrativas com um pot-pourri de referências históricas, mitológicas e científicas.
Em 1971, numa missiva endereçada a Jeff Bails, o fundador da comunidade de fãs de super-heróis, Gardner Fox revelava possuir dois gabinetes e um sótão atulhados de livros, revistas e toda a sorte de material relacionado com Ciência, Natureza e factos invulgares, que amiúde consultava para escrever as suas histórias. E foram muitas. Estima-se que tenham sido 4 mil no total, 1500 das quais para a DC. Cifras impressionantes que, em conjunto com a centena de novelas publicadas (a uma média anual de três), testificam bem a monumentalidade da sua obra literária.
Ao cabo de alguns meses a relatar as proezas detetivescas de personagens como Speed Saunders ou Steve Malone em Detective Comics, em meados de 1938 Gardner Fox teve a sua primeira experiência narrativa com super-heróis, ao assumir, em Action Comics, as histórias do mago Zatara - pai de Zatanna e pastiche de Mandrake, o Mágico. Em janeiro do ano seguinte daria o seu primeiro contributo para  a expansão do incipiente panteão da Editora das Lendas ao criar Sandman, um misterioso vigilante urbano equipado com uma máscara de gás e uma pistola especial que usava para gasear os malfeitores.

Sandman, o primeiro super-herói
 com assinatura de Gardner Fox.
Em julho de 1939, Gardner Fox regressaria a Detective Comics (onde Batman fizera a sua estreia apenas dois meses antes), desta feita para assessorar Bob Kane e Bill Finger nas histórias do Cruzado Encapuzado. Para cuja evolução visual Fox contribuiu ao apetrechá-lo com o seu icónico cinto de utilidades e uma versão rudimentar do Batcóptero. Doutor Morte (Doctor Death), o que de mais próximo de um supervilão o Batman enfrentou antes de um certo Palhaço do Crime lhe cruzar o caminho, teve também a assinatura de Gardner Fox.
Logo a abrir 1940, o número inaugural de Flash Comics incluía dois novos produtos da prodigiosa imaginação de Gardner Fox: Flash e Gavião Negro (vide texto anterior). Enquanto o primeiro era descrito como "um novo Mercúrio", numa alusão ao mensageiro dos deuses romanos, o segundo invocava os Homens-Falcão das aventuras de Flash Gordon no planeta Mongo. Gardner Fox indicava, contudo, outra fonte de inspiração: "Max Gaines (editor-chefe da All-American Publications, outra das antepassadas da DC), pedira-me que criasse duas personagens para preencher um novo título mensal que planeava lançar em breve. Certa tarde, enquanto me encontrava sentado à janela do meu escritório, reparei num pássaro que recolhia galhos para construir o seu ninho. O pássaro pousava, pegava no galho com o bico e voltava a alçar voo. E foi assim que dei comigo a pensar em como seria fantástico se o pássaro fosse um justiceiro alado e o galho um criminoso."
Sucessos instantâneos, Flash e Gavião Negro seriam pouco depois membros fundadores da Sociedade da Justiça da América . Aquele que é o mais antigo grupo de super-heróis (e outra das criações de Gardner Fox), debutou em dezembro de 1940, nas páginas de All-Star Comics nº3 e reunia, pela primeira vez, as figuras de proa da All-American Publications e da National Allied Publications. Do seu elenco fazia também parte o Senhor Destino ( Doctor Fate), o mestre das artes arcanas idealizado por - quem mais? - Gardner Fox.

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Metade do elenco original da Sociedade da Justiça da América
 era composto por criações de Gardner Fox.
Escrevendo a um ritmo alucinante, durante a Segunda Guerra Mundial Gardner Fox foi chamado a render vários dos seus colegas de profissão mobilizados para o conflito. Foi também durante esse período histórico que teve os seus serviços contratados por outras editoras que não a DC. Chegando mesmo a colaborar com a antepassada da Marvel - a Timely Comics -  antes de ocupar brevemente o posto de redator principal da Eclipse Comics.
As crescentes solicitações em nada afetaram, porém, a criatividade de Gardner Fox que continuava a aumentar o seu rol de personagens. Uma das mais bem-sucedidas fora da DC foi Skyman, um aventureiro fantasiado que pilotava um avião superveloz, criado para a Columbia Comics em 1940.

A mais bem-sucedida criação de Gardner Fox fora da DC.
À medida que, nos anos iniciais da década de 1950, o fulgor da Idade de Ouro se desvanecia e os super-heróis entravam em decadência, outros géneros narrativos se afirmavam no panorama cultural norte-americano. Com uma resiliência que parecia soltar-se-lhe dos genes, Gardner Fox abraçou-os a todos, conferindo, desse modo, à sua obra uma extraordinária amplitude de registos. De histórias do Velho Oeste a contos de terror, passando por aventuras de espionagem, de tudo um pouco saiu da sua incansável pena. A mesma que, durante essa fase, usou para escrever - não raro, sob pseudónimos masculinos e femininos -  contos, novelas e ensaios em número suficiente para preencher uma biblioteca de média dimensão.

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Duas das novelas de ficção científica editadas por Gardner Fox.
Quando a década de 1950 ia a meio, Gardner Fox fez a sua segunda passagem pela DC, notabilizando-se como um dos arquitetos da nova era a que se convencionou chamar Idade de Prata da banda desenhada.
Em resposta ao Comics Code Authority e a outros mecanismos censórios aplicados às histórias aos quadradinhos em consequência dos espasmos de moralidade mesquinha do Congresso dos EUA e das torpes acusações plasmadas no livro Sedução de Inocentes (1954), a Editora das Lendas, agora capitaneada pelo lendário Julius Schwartz, tomou a decisão de reformar o seu panteão heroico. Perfilando-se, desde logo, Gardner Fox, figura grada da Idade de Ouro, como a escolha natural para coliderar tão exigente empreitada. Que teve o seu ponto de partida em Showcase nº4, edição histórica de outubro de 1956, na qual a dupla criativa Robert Kanigher (o único escritor a superar Fox no que ao número de histórias produzidas para a DC diz respeito) e John Broome introduziram uma versão do Flash radicalmente diferente da original.
Agora um traquejado escritor de ficção científica, em 1958 Gardner Fox começou por aplicar o seu toque de Midas a Adam Strange. Criado no ano anterior por Julius Schwartz, o aventureiro espacial que era uma mescla de Flash Gordon e Buck Rogers, passaria, num ápice, de personagem descartável a nova coqueluche da DC graças à pirotecnia verbal de Fox.
Em março de 1960, Gardner Fox atualizou um conceito que ele próprio desenvolvera na Idade de Ouro em parceria com o desenhista Sheldon Mayer: a Sociedade da Justiça da América, agora renomeada Liga da Justiça da América. Em linha com a ideia original, a nova organização, cuja estreia oficial teve lugar em Brave and the Bold nº28, agrupava os principais heróis da DC. No entanto, por contraponto à sua antecessora, depressa ganharia título próprio.

Cover
A Liga da Justiça ganhou série própria em novembro de 1960.
Retomando a sua profícua sinergia com Joe Kubert, no ano seguinte Gardner Fox reformularia outra das suas criações da Idade de Ouro: o Gavião Negro. Sustentado na qualidade narrativa, o sucesso da nova versão suplantaria, uma vez mais, o conceito primordial. A prová-lo, o facto de, a exemplo da recém-criada Liga da Justiça, também a Maravilha Alada de Thanagar não ter demorado a ser contemplada com uma série periódica em nome próprio.
Embora sem influência direta na reformulação do Flash, em setembro de 1961, Gardner Fox assinou uma história do Velocista Escarlate que mudaria para sempre o Universo DC. A partir de uma ideia de Julius Schwartz e com arte a cargo de Carmine Infantino, Flash of Two Worlds (Flash de Dois Mundos) mostrava o surpreendente encontro, com lugar numa dimensão paralela, entre o Flash da Idade de Prata e a sua contraparte da Idade de Ouro.
Além de revelar o destino que haviam levado as personagens da Idade de Ouro - hospedadas na chamada Terra 2 - a história em causa lançou as bases do que seria o complexo Multiverso DC. O mais curioso acerca desta narrativa era que Barry Allen (o novo Flash) conhecia Jay Garrick (o Flash original) porque, no seu mundo, ele era um herói de banda desenhada criado por um tal... Gardner Fox. Com o tempo surgiria a rebuscada explicação de que os eventos da Terra 2 haviam, de algum modo, invadido os sonhos do escriba e que este os transpusera para o papel.

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A multicitada história dos Velocistas Escarlates de duas eras
 que foi a pedra angular do Multiverso DC.
Incentivado por Julius Schwartz, radiante com as vendas das novas personagens, Gardner Fox prosseguiu a sua onda de reinterpretações de antigos conceitos, sem contudo deixar de inovar. Já depois de ter apresentado um Átomo com novas roupagens e habilidades, em 1962 Fox introduziu o Doutor Luz como novo antagonista da Liga da Justiça.
Num ano que ficaria igualmente marcado pela criação de Zatanna (filha do mago Zatara, da Idade de Ouro), em 1964 Gardner Fox regressou às histórias do Batman. No entanto, ao invés de uma releitura do taciturno defensor de Gotham City, Fox preferiu enriquecer-lhe o imaginário resgatando do limbo dois dos seus arqui-inimigos - Charada e Espantalho - e transformando a filha do Comissário Gordon, Barbara, na nova Batgirl.
Esta segunda fase seminal de Gardner Fox seria, contudo, bruscamente interrompida em 1968. Em resultado da recusa por parte da DC em conceder seguro de saúde e outros benefícios aos seus colaboradores mais antigos, Fox bateu com a porta para não mais voltar. Desfalcando, assim, a DC numa altura em que esta disputava com a Marvel a liderança do mercado de quadradinhos.
Nos anos imediatos à sua saída da Editora das Lendas, Gardner Fox dedicou-se quase exclusivamente à literatura. Abrindo apenas um curto parêntesis, no início dos anos 70, para escrever umas dezenas de histórias publicadas em Tomb of Dracula, coletânea de contos de terror publicada pela Marvel. Essa seria, de resto a sua penúltima, passagem pelos quadradinhos antecedendo a sua fugaz colaboração, em 1985, com a Eclipse Comics, cujo produto final se resumiu à produção de uma antologia de ficção científica intitulada Alien Encounters.

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A antologia de ficção científica que marcou
 a derradeira passagem de Gardner Fox pelos quadradinhos.
Vítima de pneumonia, Gardner Fox despedir-se-ia do mundo na véspera de Natal de 1986 (coincidentemente, o ano da implosão do Multiverso DC que ajudara a criar). Contava então 75 anos de idade e sobreviveram-lhe esposa, dois filhos e quatro netos. Mas também um candente legado a que nenhuma homenagem ou honraria póstumas fará a devida justiça.
Entre outros méritos reconhecidos, Gardner Fox mostrou ser possível harmonizar quantidade e qualidade. A prová-lo, o apreciável número de prémios e louvores averbados ao longo da sua carreira. Ao conquistar, em anos intercalados, quatro Alley Awards (o primeiro, em 1962, para melhor escritor), Fox atravessou a década de 60 coberto por um reluzente manto de glória.
Ainda em vida Gardner Fox alcançaria a imortalidade ao ser uma das 50 personalidades referenciadas em Fifty Who Made DC Great, edição comemorativa lançada em 1985 para assinalar o meio século de existência da Editora das Lendas. Membro de diversos grémios literários, como o Science Fiction Writers o America, Fox seria também por eles distinguido repetidas vezes. Postumamente, o seu nome foi inserido, em 2007, no Jack Kirby Hall of Fame e, no ano seguinte, no Eisner Award Hall of Fame (equivalentes bedéfilos do Passeio da Fama cinematográfico).
Menos solenes, porém igualmente repletas de significado foram as homenagens que no decurso dos anos lhe foram sendo rendidas por oficiais do mesmo ofício. Como John Broome, ex-colega de Fox na DC e outro dos saudosos arquitetos da Idade de Prata, que ao criar o mais rebelde dos lanternas verdes o batizou de Guy Gardner.
Malgrado esta deferência dos seus pares, que continuam a celebrar a monumental obra de Gardner Fox, importa, nestes tempos sem espaço para memórias, divulgá-la junto das gerações mais recentes de leitores, por forma a evitar que acabe dissolvida como as neves de antanho. Este é o meu singelo contributo para a sua preservação.

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O insolente Guy Gardner e o homem
 que lhe deu nome retratado por Gil Kane.



Agradecimento muito especial ao meu bom e mui talentoso amigo Emerson Andrade que, com a bonomia com que sempre acede aos meus pedidos, restaurou digitalmente a imagem que serve de ilustração principal a este artigo.










4 comentários:

  1. E eu não conhecia esse artista prolífico??? Pois bem, agora conheço-o.
    Obrigado, Ricardo Cardoso!

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    1. Sou eu quem te está grato pelo apreço que um consagrado mestre da 9ª Arte como tu continua a dedicar aos meus modestos escritos. Afigurou-se-me importante a evocação da magistral obra de Gardner Fox, para que se perceba que, sem ela, certos monstros sagrados da banda desenhada com super-heróis não passariam, porventura, de notas de rodapé na história de um género que continua a cativar multidões. Abraço de Portugal.

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