25 junho 2024

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A MORTE DE JEAN DEWOLFF»

  Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha lança-se à caça do assassino de uma velha amiga. Um fanático de moralidade distorcida anda à solta nas ruas e promete continuar a lavar os pecados da sociedade com o sangue dos inocentes. Cederá o herói à tentação de fazer justiça pelas próprias mãos, perante mais esta tragédia pessoal?

Título original: The Death of Jean DeWolff
Editora: Marvel Comics
País: Estados Unidos da América
Data de lançamento: Outubro de 1985
Títulos abrangidos: Peter Parker, The Spectacular Spider-Man #107-110
Autores: Peter David (trama), Rich Buckler (ilustrações) e Josef Rubinstein (arte-final)
Protagonistas: Homem-Aranha, Demolidor e Devorador de Pecados
Cenários: Nova Iorque 
Edições em português: A primeira versão traduzida deste arco de histórias foi publicada, entre setembro e outubro de 1990, no tradicional formatinho da Abril brasileira. O primeiro capítulo da saga foi apresentado em Homem-Aranha nº87, sendo os restantes incluídos no número seguinte. Desde 2013, a Panini e a Salvat têm-se alternado no lançamento de encadernados, o mais recente dos quais data de 2021. 

Inédita em Portugal, a saga já foi várias vezes
republicada no Brasil.
Em 2017, a Salvat incluiu-a na sua
Coleção Definitiva do Homem-Aranha. 

Lei da bala 

A violência urbana sempre foi - e continua a ser - um dos maiores flagelos sociais nos EUA. Num país com mais armas do que habitantes, impera muitas vezes a lei da bala. As falhas da Justiça, que devia ser para todos, geram revolta e frustração. Sentimentos que demasiados cidadãos extravasam premindo o gatilho.
No início dos anos 80, o fenómeno adquiriu contornos epidémicos nas ruas das principais cidades americanas. Em Nova Iorque, onde as relações interpessoais sempre se caracterizaram pela agressividade, registou-se nesse período um aumento exponencial da taxa de homicídios. Para piorar o quadro, os crimes eram cometidos quer por indivíduos socialmente excluídos quer por cidadãos comuns sem motivo aparente para chegarem a vias de facto.
Um episódio, em particular, obteve grande ressonância mediática e chocou a opinião pública a nível nacional. Num daqueles acasos com hora marcada, a 22 de dezembro de 1984, Bernhard Goetz alvejou quatro jovens que o importunavam durante uma viagem noturna de metro. Prontamente apelidado de Vigilante do Metro pelos tabloides, Goetz alegou legítima defesa. Argumento insuficiente para prevenir a tempestade racial desencadeada pela cor da pele dos intervenientes: Goetz era branco, as suas vítimas negras.
Entre os milhões de nova-iorquinos que seguiam apaixonadamente o caso estava Peter David. À época assistente de vendas da Marvel após uma malsucedida carreira jornalística, David era um aspirante a escritor à espera de uma oportunidade para mostrar o seu valor.

Racismo ou legítima defesa?
Bernhard Goetz continua a dividir opiniões.

Por aqueles dias, o Homem-Aranha era o maior trunfo da Casa das Ideias, que o presenteou com quatro títulos mensais: Marvel Team-Up, Amazing Spider-Man, Web of Spider-Man e Peter Parker, The Spectacular Spider-Man. Este último, em circulação desde 1976, apresentava habitualmente histórias em que o herói aracnídeo, sozinho ou emparelhado com vigilantes urbanos como Manto e Adaga, combatia o tráfico de drogas ou punha fim a guerras de gangues. Nova Iorque era a meca do crime e os escribas da série, com Al Milgrom à cabeça, retratavam-na sem filtros.
Apesar das boas vendas de Peter Parker, The Spectacular Spider-Man, Jim Oswley, o novo editor do Cabeça de Teia, desejava refrescar o título com histórias mais adultas e temas mais complexos. Para levar a cabo essa pequena revolução, Oswley substituiu o veterano Al Milgrom pelo inexperiente Peter David. Sem floreados, Oswley informou David da sua intenção de matar uma personagem importante: ninguém menos do que a capitã Jean DeWolff.

Peter David, na altura com 29 anos, foi uma aposta pessoal
do novo editor do Homem-Aranha.

Criada, em 1976, por Bill Mantlo e Sal Buscema, Jean DeWolff era uma das coadjuvantes mais antigas das histórias do Escalador de Paredes. Os seus subordinados tinham aprendido a respeitá-la, os leitores a apreciar o seu guarda-roupa antiquado. À parte ser mulher, DeWolff incorporava praticamente todos os estereótipos dos detetives dos filmes e séries policiais daquela época: era dura e ranzinza, mas tremendamente competente. Era, também, uma preciosa aliada do Homem-Aranha, se bem que, com o tempo, a relação deles evoluiria para uma franca amizade. Como reagiria, portanto, o herói ao assassinato de alguém tão próximo?


Corajosa e determinada, a capitã DeWolff
cultivou uma relação especial com o Homem-Aranha.

Face às muitas perdas pessoais que enfrentou no decurso dos anos, o Homem-Aranha subordinou sempre as suas ações à sua consciência heroica. Nem a efusão de sangue de alguns dos seus entes queridos o levou a aplicar a Lei de Talião. Nesse espírito, a ideia consistia em apresentá-lo a um vilão cujos crimes, de tão hediondos, testassem os limites de Peter Parker.
Ao Devorador de Pecados (Sin-Eater) serviu de modelo uma personagem homónima de The Incredible Journey of Doctor Meg Laurel (1979), um dos filmes preferidos de Peter David. Em certas regiões do Reino Unido, mormente na Escócia e no País de Gales, sempre que alguém morre, os seus entes queridos depositam alimentos sobre o caixão do defunto. De acordo com esta tradição pagã de origem difusa, o ritual serve para absorver espiritualmente os pecados terrenos. Geralmente um mendigo, cabe depois ao Devorador de Pecados comer as oferendas que simbolizam as transgressões cometidas em vida pelo morto. Foi nessa sinistra figura do folclore anglo-saxónico que Peter David se inspirou para criar o carrasco de Jean DeWolff. 

Por terem absorvido tantos pecados alheios, acreditava-se que 
os Devoradores de Pecados nunca entrariam no Céu. Eram a pior 
espécie de párias sociais, mas úteis à comunidade.

Aquando do seu lançamento, no outono de 1985, A Morte de Jean DeWolff foi considerada, sob vários aspetos, inovadora. Desde logo por ter quebrado a tradição de conceder à personagem martirizada uma morte honrosa, idealmente no clímax de uma batalha ou enquanto salvava outrem. Jean DeWolff, ao invés, é morta durante o sono, logo a abrir a história. Em vez de um supervilão, o seu assassino é tão-somente um psicopata armado com uma espingarda e um código moral distorcido. Acrescendo, ainda, uma peculiaridade estilística: os créditos da história surgem apenas no final de cada um dos quatro capítulos que a compõem.
Ser ainda hoje considerada uma história incontornável na mitologia do Homem-Aranha não é o único mérito de A Morte de Jean DeWolff. A obra garantiu também assento ao seu autor entre a elite plumitiva dos comics americanos.

Quem nunca pecou...

Ao entregar à Polícia o trio de meliantes que haviam agredido Ernie Popchik, um dos residentes no lar de idosos gerido pela Tia May, o Homem-Aranha é informado do assassínio da capitã Jean DeWolff. A notícia da morte da sua velha amiga e aliada deixa o herói sem chão.
Em conversa com Stan Carter, o detetive encarregue da investigação do caso, o Homem-Aranha fica a par de mais pormenores: DeWolff foi baleada à queima-roupa enquanto dormia e o seu distintivo está desaparecido.

Jean DeWolff foi a primeira vítima do Devorador de Pecados.

No dia seguinte, Matt Murdock, nomeado advogado oficioso, consegue que os agressores de Popchik sejam libertados sem fiança. À saída da sala de audiências, é confrontado por um indignado Peter Parker. Mais tarde nesse mesmo dia, Matt confidencia ao juiz Horace Rosenthal o seu crescente desconforto em assumir a defesa pro bono de indivíduos de moralidade questionável.
Ainda no gabinete do juiz, o radar de Matt deteta a presença de um intruso na sala adjacente. Antes que Matt possa alertar o seu interlocutor, um encapuzado irrompe no gabinete e abre fogo sobre ambos. Graças aos seus reflexos sobre-humanos, Matt consegue esquivar-se das balas, mas o juiz tem menos sorte.
Atraído pelos disparos, o Homem-Aranha acorre ao local, sendo prontamente recebido com uma saraivada de chumbo. Para surpresa do Escalador de Paredes, o mascarado não só resiste aos seus golpes como revida com inesperada pujança.
No exterior do tribunal, alguns transeuntes são feridos pelas balas perdidas. Tirando partido do pânico instalado, o mascarado desenvencilha-se do Homem-Aranha e põe-se em fuga. O herói ainda tenta travá-lo com a sua teia, mas constata que os lançadores foram danificados durante a escaramuça. Capta, no entanto, um vislumbre do distintivo policial que adorna o cinto do mascarado - e reconhece-o como tendo pertencido a Jean DeWolff.

O Devorador de Pecados revela-se um osso duro de roer.

Com o consentimento do detetive Carter, o Homem-Aranha revista o apartamento da capitã DeWolff. Não encontra, porém, quaisquer pistas que o ajudem a perceber o móbil do crime. Apenas fotos e recortes de jornais onde ele aparece. O eco solitário do amor impossível que DeWolff trazia aninhado na alma. Essa descoberta deixa o herói ainda mais consternado.
Em novo encontro com o Homem-Aranha, Stan Carter informa-o que o assassino da capitã DeWolff e do juiz Rosenthal se autodenomina Devorador de Pecados. O detetive explica-lhe o folclore associado ao nome e revela ainda o próprio passado como agente da SHIELD.
Durante o funeral do juiz Rosenthal, Matt Murdock deteta o batimento cardíaco do Devorador de Pecados. É, no entanto, incapaz de identificá-lo no mar de gente que assiste à cerimónia.
Nessa mesma noite, o Devorador de Pecados volta a atacar. Executa a sangue-frio o sacerdote que conduzira as exéquias do juiz Rosenthal. Em consequência de mais essa morte, é montado um circo mediático, aproveitado pelo reverendo Jackson Tulliver para vitimizar a comunidade afroamericana.
Numa frenética corrida contra o tempo, o Homem-Aranha e o Demolidor vasculham o submundo nova-iorquino em busca de informações sobre o paradeiro e identidade do Devorador de Pecados. A cada beco sem saída, sentem que perseguem um fantasma.
Dias depois, o Devorador de Pecados invade a redação do Daily Bugle e, de arma aperrada, exige falar com J. Jonah Jameson. Enquanto o editor-chefe, Joe Robertson, lhe explica que Jameson está ausente em férias, Peter Parker atinge o mascarado na cabeça com uma máquina de escrever, deitando-o por terra.
Ao recuperar os sentidos, o Devorador de Pecados, entretanto desmascarado, apresenta-se como Emil Gregg. Ele não tem, contudo, a mais vaga lembrança de ter perpetrado os homicídios que lhe são imputados. Recorda-se apenas das vozes a ordenarem que os cometesse.
A confissão de Gregg é também testemunhada pelo Demolidor, que não reconhece, porém, o seu batimento cardíaco. Convicto de que estão em presença de um impostor, o Diabo da Guarda convida o Homem-Aranha a acompanhá-lo numa busca ao apartamento do suspeito. Durante a breve conversa entre ambos, o Demolidor reconhece o batimento cardíaco de Peter Parker.

O falso Devorador de Pecados confessa 
os crimes que não cometeu.

Enquanto o Homem-Aranha revista o apartamento de Gregg, o Demolidor repara que a fechadura da porta do apartamento contíguo foi estroncada. Ao investigar, o Homem Sem Medo tropeça numa pequena pilha de correspondência por abrir. Toda ela destinada a Stan Carter. Os heróis encontram também um gravador de voz onde Carter registava as suas atividades como Devorador de Pecados - era essa a origem das vozes que atormentavam Gregg.
Deduzindo que Carter usara Gregg como distração para cumprir o seu verdadeiro objetivo, o Homem-Aranha liga para o Daily Bugle e obtém o número de telefone de J.J. Jameson. A chamada é atendida pela sua secretária pessoal, Betty Brant, mas antes que o herói consiga avisá-la, ouve-se um disparo em fundo e a linha fica muda.
Convencido que Betty estaria morta, o Homem-Aranha atravessa a cidade até à morada de Jameson. Para seu alívio, a jovem estão viva e ilesa. Isso é no entanto insuficiente para conter a vaga de fúria incandescente que cresce dentro do herói.
Para horror de Betty, o Homem-Aranha continua a espancar o Devorador de Pecados, mesmo depois de ele ter ficado inconsciente. Só muito a custo o Demolidor, entretanto chegado ao local, consegue impedir que o seu aliado faça justiça pelas próprias mãos.

O Demolidor sente na pele a fúria do Homem-Aranha,
depois de o ter impedido de vingar a morte da amiga.

Stan Carter é preso e a notícia de que o Devorador de Pecados era um polícia corre como pólvora, incendiado os ânimos. É nesse clima de alta tensão, com uma onda de revolta a encapelar-se no horizonte urbano, que Ernie Popchik dispara contra um grupo de rufias que o assediava numa carruagem de metro. Em seguida, o idoso entrega-se às autoridades.
Nesse emmeio, a Polícia é notificada pela SHIELD que Carter fora submetido a tratamentos com uma droga experimental. A substância capacitou-o com força e resistência sobre-humanas, mas teve a esquizofrenia como efeito colateral.
Quando o plano secreto para transferir o Devorador de Pecados para a Ilha Riker é denunciado pela imprensa, uma turba ululante concentra-se diante da esquadra onde Carter se encontra sob custódia. Para impedir o linchamento, o Demolidor interpõe-se entre a multidão e o edifício, mas é rapidamente sobrepujado.
Num telhado próximo, o Homem-Aranha assiste, impávido, àquela erupção de violência. Mas o grito desesperado do Demolidor impele-o a agir no último instante.
Com Stan Carter a caminho da prisão, o Demolidor revela a sua verdadeira identidade ao Homem-Aranha e oferece-se para defender Ernie Popchik. Apesar das suas visões opostas da justiça, os dois heróis sabem que estarão sempre do mesmo lado da barricada na guerra contra o crime.
  
Apontamentos

*Apesar das muitas pistas a apontarem nesse sentido, nenhum leitor, a julgar pelas cartas recebidas na redação da Marvel, conseguiu deduzir que Stan Carter era o Devorador de Pecados. Peter David atribui esta falta de perspicácia ao facto de, após décadas de associação a Stan Lee, o nome Stan soar amistoso aos fãs;
*O uniforme negro usado pelo Homem-Aranha era um modelo de tecido normal ofertado pela Gata Negra. Peter descartara o traje original depois de ter descoberto que ele era, na verdade, um simbionte alienígena que procurava unir-se de forma permanente ao seu hospedeiro;
*Jean DeWolff admirava profundamente o seu padrasto e foi por causa dele que, para desgosto da mãe, ingressou na Polícia. Carl Weatherby acreditava que Jean poderia ser, um dia, a primeira comissária a chefiar o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Na vida real, isso só aconteceria em 2022, quando Keechant Sewell se tornou a primeira mulher (e a terceira afrodescendente) a assumir o cargo;
*Numa vinheta de Peter Parker, the Spectacular Spider-Man #108, o ator Charles Bronson surge entre a multidão que caminha pelas ruas de Nova Iorque. Trata-se de uma homenagem ao seu papel de Paul Kersey na franquia cinematográfica Death Wish, sobre um ex-tenente da Polícia de Los Angeles que, inconformado com as falhas do sistema legal, passa a atuar como um implacável vigilante;

O cameo de Charles Bronson coincidiu com o lançamento de Death Wish III. 
O filme foi produzido pela Cannon que, pouco tempo antes, adquirira os direitos
cinematográficos do Escalador de Paredes.

*Em resposta à candidatura apresentada por uma potencial assassina a soldo, o Rei do Crime dita uma carta dirigida a C.B. Kalish. Carol Kalish, ao tempo gerente de vendas diretas da Marvel e vice-presidente do departamento de desenvolvimento de novos produtos, era chefe e amiga de Peter David. Foi pela mão dela que David deu os primeiros passos na indústria dos comics. Kalish faleceria cinco anos mais tarde, de doença prolongada. Tinha apenas 36 anos;
*Apesar de ser um novato na altura e de A Morte de Jean DeWolff ter sido apenas o seu segundo trabalho profissional como argumentista da Marvel, Peter David é hoje um autor prolífico e premiado, com mais de meia centena de romances publicados. Entre os rios de prosa com que continua a irrigar a imaginação de milhões de leitores em todo o mundo, o maior destaque vai para as novelas de Star Trek, sendo mesmo considerado o melhor escritor da franquia. Na banda desenhada, deixou a sua impressão digital em títulos como Aquaman, Supergirl, X-Factor, Spider-Man 2099 e The Incredible Hulk. Neste último assinou uma das melhores fases de sempre do Gigante Verde, pela qual foi distinguindo, em 1993, com um Prémio Will Eisner. Com vasta experiência em cinema e televisão, David escreveu também vários episódios de Babylon 5 e enredos de filmes produzidos pela Full Moon Entertainment; 

Uma das muitas aventuras literárias de Star Trek 
saídas da pena de Peter David.

*Peter David trouxe de volta o Devorador de Pecados em Spectacular Spider-Man #134-136 (janeiro-março de 1988). Informalmente conhecida como o Retorno do Devorador de Pecados, a sequência, ambientada cerca de um ano após os eventos de A Morte de Jean DeWolff, explorava simultaneamente a origem do vilão e a sua fracassada tentativa de reabilitação. Mesmo depois de sair da prisão sem vestígios das drogas da SHIELD no seu organismo, Stan Carter continua a ser roído pelo remorso devido ao baralho de iniquidades perpetradas pelo seu alter ego. Sucumbindo por fim à loucura, Stan volta a vestir a fantasia de Devorador de Pecados e, armado com uma espingarda descarregada, incita a polícia a abrir fogo contra ele. Peter David considera que, apesar de violento, este foi um final misericordioso para o personagem;
*O Devorador de Pecados foi responsável indireto pelo surgimento de Venom. Em The Amazing Spider-Man #300 (maio de 1988), Eddie Brock, ex-repórter do Daily Globe, recorda como expôs publicamente Emil Gregg como sendo o Devorador de Pecados. Quando Stan Carter foi desmascarado pelo Homem-Aranha, Brock foi demitido e, preso numa espiral autodestrutiva, acabou abandonado pela esposa. Brock preferiu, ao invés, culpar o Escalador de Paredes pelo seu infortúnio e, em busca de vingança, aceitou ser o novo hospedeiro do simbionte alienígena.

Porque vale a pena ler?

Peter Parker bem podia ser a personificação da desdita. Nunca conheceu os pais, mortos quando ele ainda nem gatinhava. Na adolescência, perdeu o Tio Ben, o homem que o criara como filho. A este rosário de desgraças a idade adulta encarregou-se de acrescentar outra conta: a morte de Gwen Stacy, o primeiro grande amor de Peter.
Desde tenra idade que Peter sofre tragédias na periferia da vida. Perder entes queridos tem sido uma dolorosa rotina. Seria, portanto, de esperar que Peter já estivesse calejado, mas a morte de Jean DeWolff provou o contrário.
Por muito tempo, a capitã DeWolff foi a única aliada do Homem-Aranha no Departamento de Polícia de Nova Iorque que lhe era tradicionalmente hostil. Era também uma amiga que o ajudou em momentos difíceis. Cumplicidades antigas que fizeram do assassinato de DeWolff, não apenas um crime hediondo, mas um assunto pessoal para o Escalador de Paredes.

Tal como a inocência nas histórias de super-heróis,
Jean DeWolff foi marcada para morrer,

Com esta premissa, Peter David compôs uma trama tensa e envolvente, cujo suspense invoca os melhores contos policiais. Ao contrapor as personalidades de Matt Murdock e Peter Parker, David reacende, também, o velho debate entre justiça e vingança. Tantas vezes caricaturada como um espasmo de moralidade mesquinha, esta última é encarada pelo Homem-Aranha como a alternativa à impunidade proporcionada pelas falhas do sistema judicial. Aquele em que o Demolidor, mesmo operando na orla da Lei, deposita uma fé cega. Cabendo-lhe, por isso, ser a consciência moral de um Homem-Aranha tomado pelas emoções mais primárias.
A construção psicológica das personagens, incluindo do Devorador de Pecados, é minuciosa. Mesmo não sendo o mais carismático dos vilões, o seu apelo reside precisamente na sua simplicidade marcial. Se a motivação religiosa do Devorador de Pecados é um tanto unidimensional, essa falta de profundidade é compensada pela violência gráfica com que ele é representado. De uma crueldade (quase) sem precedentes nas histórias de super-heróis, o assassinato de Jean DeWolff faz revirar as entranhas do leitor. 
Apesar da grande quantidade de coadjuvantes, Peter David não abre mão do controlo narrativo, dando peso a cada morte retratada ao longo da trama. A arte de Rich Buckler, por sua vez, potencia a dramaticidade do enredo, fazendo uso de enquadramentos cuidadosamente escolhidos para manter a tensão e o sentimento de urgência.
Do mesmo modo que a verve de David expõe a alma de Peter Parker à contraluz, a narrativa visual de Buckler põe a nu as mazelas de uma Nova Iorque em ponto de ebulição. A violência quotidiana não ceifa apenas vidas, decapita também a esperança.
Não sendo necessariamente atemporal, A Morte de Jean DeWolff é, inquestionavelmente, uma das mais importantes histórias do Homem-Aranha. O conflito interno do herói, refletido pelo Demolidor, é o que  realmente a faz perdurar. 
Produzida numa das melhores décadas dos comics americanos, A Morte de Jean DeWolff quebrou alguns conceitos até então normativos. A sua crueza e complexidade traçou uma bissetriz nas histórias do Cabeça de Teia, desbravando caminho, nos anos imediatos, para outras fábulas sombrias como A Última Caçada de Kraven.



*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Resenha de A Última Caçada de Kraven disponível para leitura complementar.




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1 comentário:

  1. Visto que já encontrara a personagem que intitula a obra em outras agaquês do Teioso, a história que conta sua morte sem honra me abalou. Entenda-se esse abalo situado dentro dos limites de um fã de quadrinhos que sabe diferenciar realidade e ficção, sendo portanto diferente de, por exemplo, um trauma pela perda de um ente querido real. Não obstante isso, é um choque considerável, a gente se apega a certas crias da Nona Arte, o que faz parte da magia que a arte sequencial exerce sobre nós.
    Considerando que há tempos não leio nada recente, dada a cada vez mais acentuada queda de qualidade dos quadrinhos contemporâneos, vez por outra releio as HQs antigas. Creio que em breve revisitarei essa trama, e acredito que sentirei o mesmo ódio pelo assassino da nossa boa capitã. A título de curiosidade, o ranking do impacto na minha pessoa por causa de pessoas mortas nas histórias aracnídeas é o seguinte (entre as que lembro enquanto escrevo):
    5. Tim Harrison, o garoto que colecionava Homem-Aranha;
    4. Tio Ben;
    3. Jean DeWolff;
    2. Gwen Stacy (impacto renovado ao entender que sua forte foi causada pelo pescoço quebrado na tentativa desastrada de salvamento ao ser lançada da ponte - aquele SNAP! ressoou muito tempo nos ouvidos da minha imaginação);
    1. Leah, a menina em condição de rua, naquela que para mim é a história mais triste do Amigão da Vizinhança.
    Como sempre, excelente texto do Ricardo Cardoso, com a maestria de sempre.
    Longa vida à Fortaleza!

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