09 abril 2025

MARVEL COMICS

  A imaginação e a irreverência serviram de matérias-primas aos arquitetos da sua mística que, sem fecharem janelas para o mundo real, abriram claraboias para outros universos. De negócio familiar a conglomerado multimédia, a Casa das Ideias continua a fabricar mitos que se fundem e confundem com o imaginário popular.

MUSEU DE MARAVILHAS


No decurso da sua já vetusta história, a Marvel tornou-se sinónimo de personagens carismáticas e sagas memoráveis. Com assinalável impacto na indústria dos comics americanos e na cultura do entretenimento como um todo, a evolução da Casa das Ideias refletiu, desde sempre, o compasso do mundo real. Segunda Guerra Mundial, Era Atómica, corrida ao Espaço e a luta pelos direitos civis das minorias foram alguns dos acontecimentos históricos que lhe moldaram os conceitos. Embora conotadas com o escapismo, as suas publicações são, afinal, crónicas políticas e sociais dos EUA.
Na vertente empresarial, a Marvel, como veremos, passou por muitos altos e baixos. Mesmo nos momentos mais críticos demonstrou, porém, possuir uma resiliência que não só lhe garantiu a sobrevivência, como lhe abriu novos e lucrativos horizontes de possibilidades.
Apesar de ser uma das mais antigas editoras de banda desenhada do mundo ainda em atividade, só na década de 1960 a Marvel emergiu como força criativa verdadeiramente distinta e influente. No ressalto da sua revolução do género super-heroico, a indústria de quadradinhos americana adentrou numa segunda Idade de Ouro. E foi precisamente na primeira Idade de Ouro, quando os comics eram ainda uma cultura de nicho produzida por pessoas de reputação questionável, que a Marvel, hoje uma marca global, começou a erigir o seu império. 

Toque de Midas

As modestas origens da Marvel começam com uma homem chamado Martin Goodman. Fascinado por revistas desde criança, Goodman ambicionava vir a ter um dia a sua própria casa publicadora. Esse sonho seria parcialmente cumprido quando, ainda nos seus verdes anos, começou a trabalhar como vendedor da nova-iorquina Independent News.
Em 1932, Goodman e um sócio fundaram a Western Fiction Publishing, uma editora de revistas pulp dirigidas a adolescentes e jovens adultos. Numa época de concorrência feroz e poder aquisitivo rarefeito pela Grande Depressão, Goodman, sempre previdente, criou múltiplas subsidiárias. Se alguma delas falisse, as restantes não seriam afetadas. Tampouco alguém perderia o emprego, uma vez que o staff era comum a todas elas.
Cada uma dessas microempresas procurava capitalizar o interesse do público por um género específico em determinado momento. À súbita alteração de tendências respondiam com a imediata alteração de conteúdos. Se os leitores se desinteressavam dos contos policiais passando a preferir as histórias de faroeste, logo a Western, qual camaleão, editorial, se adaptava à preferência do público. A Goodman pouco interessava o tipo de material publicado, contanto que fosse vendável. Foi essa estratégia comercial que, em última análise, lhe permitiu afirmar-se num mercado volátil e altamente competitivo. 
Em 1938, Goodman publicava 27 revistas, com uma amplitude de registos que abarcava desde o faroeste à ficção científica, passando pelas aventuras na selva. Entre os títulos com maior tiragem sobressaíam Best Western, Ka-Zar (cópia carbono de Tarzan que ainda hoje integra o cânone da Marvel) e Marvel Science Stories. Esta última uma antologia de ficção científica que contava com a colaboração de alguns dos melhores autores do género.

Nascido Moe Goodman, Martin Goodman (1908-1992)
foi um dos reis dos pulps
durante os anos de chumbo da Grande Depressão.


Marvel Science Stories
 foi uma das publicações mais emblemáticas da Western Fiction.

No seguimento de uma conversa casual com um vendedor da Funnies Inc. sobre o promissor futuro da banda desenhada, Goodman, confiante no seu toque de Midas, decidiu aventurar-se na publicação desse tipo de conteúdos. A Funnies Inc. tinha os conceitos e os recursos humanos para produzi-los, mas faltava-lhe a logística necessária à impressão e distribuição. Goodman dispunha dela e dessa sinergia nasceu, em 1939, a Timely Comics. Sediada nos escritórios da Western, na 42nd Street de Nova Iorque, a nova editora tinha Martin Goodman como presidente-executivo e o seu irmão Abraham como gestor comercial.
Impulsionados pelo recente sucesso do Super-Homem, os super-heróis eram a febre do momento entre os leitores de histórias aos quadradinhos. Previsivelmente, a primeira publicação da Timely incluía vários desses espécimes. De uma assentada, em outubro de 1939 Marvel Comics #1 (renomeada Marvel Mystery Comics a partir do segundo número) apresentou ao mundo o Tocha Humana, o Príncipe Submarino e o Anjo (sem qualquer relação com o X-Man homónimo). Os dois primeiros foram êxitos instantâneos e, mesmo sem ombrearem com Super-Homem e Batman, garantiram à Timely uma generosa fatia do mercado. Participação que, já depois de Goodman ter descartado a Funnies Inc., seria reforçada pelo seu primeiro super-herói de cunho patriótico.



Primeiro título lançado sob o selo da Timely, Marvel Comics #1
vendeu 80 mil cópias,
levando Goodman a lançar uma segunda edição que decuplicou esse valor.

Criação de Joe Simon e Jack Kirby em 1941, o Capitão América, além da epítome do patriotismo ianque, tornou-se o campeão de vendas da Timely. O Sentinela da Liberdade simbolizava, ademais, o apelo intervencionista que, face ao avanço imparável do nazifascismo na Europa, se imiscuía nas publicações da editora - facto a que não seriam alheias as origens judaicas dos irmãos Goodman.
Sendo verdade que antes, durante e depois da entrada dos EUA na II Guerra Mundial várias editoras tinham dado ao prelo histórias impregnadas por um forte sentimento antinazi, a Timely esteve entre as primeiras a fazê-lo. Logo em fevereiro de 1940, a capa de Marvel Mystery Comics #4 mostrava Namor numa refrega com a tripulação de um submarino alemão.
Quando, por fim, os EUA se juntaram aos beligerantes, a Timely lançou um magote de heróis patrióticos em narrativas simplistas e exageradas. Apesar de pouco ou nada informarem os leitores sobre a evolução do conflito, incutiam fervor patriótico nos seus jovens leitores e levantavam a moral dos G.I. Joe destacados para a Europa e para o Pacífico.
Encorajada pelo enorme sucesso do Capitão América (cuja revista mensal vendia, em média, um milhão de exemplares), a Timely continuou a expandir as suas operações. Foi então que, pela mão de Martin Goodman, aquele que viria a ser uma das maiores lendas da Arte Sequencial entrou na indústria dos comics. Stanley Lieber, primo adolescente da esposa de Goodman, foi contratado como assistente de redação, mas depressa passou a argumentista. Com aspirações literárias, Stanley olhava com desdém para as histórias aos quadradinhos e, como tantos outros escritores do meio, adotou um nom de plume que o imortalizaria no imaginário coletivo: Stan Lee.
No que a alguns se poderá prefigurar como um flagrante caso de nepotismo, o inexperiente Stan Lee foi promovido a chefe do departamento criativo quando Simon e Kirby abandonaram a Timely, devido a desentendimentos sobre royalties. Forçado a assumir essa importante função, Lee acabaria por ser decisivo para o futuro da editora. 
Como a maioria das suas concorrentes, a Timely prosperou durante a II Guerra Mundial, ao ponto de transferir as suas instalações para o Empire State Building. O conflito teve tanto destaque nas suas publicações que as vendas - em particular de super-heróis - caíram a pique com o regresso da paz. 
Sem pensar duas vezes, Martin Goodman cessou a publicação de títulos de super-heróis e passou a explorar géneros mais populares, como o crime e o terror. Exemplos típicos desta abordagem foram Lawbreakers Always Lose (resposta ao sucesso de Crime Does Not Pay, da Lev Gleason) e Strange Tales (imitação barata de Tales From the Crypt, da EC). O que faltava em qualidade às suas publicações, a Timely compensava com quantidade, maximizando as vantagens da rede de distribuição de Goodman.

Atlas do futuro 

Com um inventário composto por 82 publicações periódicas, em 1950 Martin Goodman fundou uma nova empresa de distribuição para reduzir custos operacionais. A partir do ano seguinte, o logotipo da Atlas News Company - um singelo globo preto e branco -  passou a adornar as capas de todas elas.
À mudança de nome não correspondeu, porém, uma mudança de estratégia. A nova velha editora manteve-se fiel à prática consagrada de acompanhar as tendências mais populares. Em vez de inovar, a Atlas preferiu, como sempre, jogar pelo seguro. 
Quando a Guerra da Coreia restituiu o apelo às narrativas militares, a Atlas lançou-as em catadupa. Os protagonistas já não eram super-heróis patrióticos, mas soldados comuns cujo medo, dor e desespero eram retratados de forma crua. A violência gráfica que permeava as histórias servia também para expor a crueldade no campo de batalha. Muito provavelmente, isto refletia os traumas dos seus autores, na sua maioria veteranos da II Guerra Mundial que tinham visto de perto o seu interminável cortejo de horrores.

A Guerra da Coreia (1950-53) foi um maná para a Atlas. 
Com uma circulação média de 700 mil exemplares, 
War Comics era um dos seus títulos mais populares.

A meio da década de 1950,  a Atlas tentou, sem sucesso, recuperar aquele que tinha sido o ativo mais valioso da Timely. Caixa de ressonância do macarthismo, o Capitão América era agora visceralmente anticomunista, mas a fria reação dos leitores depressa o voltou a colocar em animação suspensa. Revés de somenos por comparação com o que estava para vir. 
A roda da fortuna de Martin Goodman começou a desandar em 1954, quando, no rescaldo de uma Subcomissão do Senado dos EUA que investigou a alegada correlação entre banda desenhada e delinquência juvenil, as vendas da Atlas iniciaram uma curva descendente. Daí à falência da sua empresa de distribuição foi um passo de anão.
Antes de dobrar a esquina da década, a Atlas, que publicara mais banda desenhada do que qualquer outra editora, tornou-se uma empresa marginal no setor. 
Em 1956, logo após ter deixado de distribuir o próprio material, a Atlas passou a operar através da American News Company (ANC), a maior e mais poderosa distribuidora de revistas e jornais nos EUA. Contrariando as esperanças de Martin Goodman, a ANC foi no entanto forçada a cessar atividade pouco tempo depois, devido a práticas comerciais irregulares.
Numa jogada desesperada de quem acabara de ser destrunfado, Martin Goodman sacou um último ás da manga: Independent News. A empresa onde Goodman trabalhara na juventude, mas que era agora propriedade da sua principal concorrente. Previsivelmente, a DC valeu-se dessa situação para impor uma drástica redução do número de publicações que a Atlas poderia fazer chegar às bancas: 16 títulos bimestrais era o limite ditado.
Estas restrições draconianas, somadas à recessão económica de 1957, obrigaram a Atlas a retrair-se ainda mais. Depois de ter dispensado todo o seu pessoal - à exceção de Stan Lee - a editora dependeu, por algum tempo, de reimpressões e material rejeitado.
O rápido declínio da Atlas deixou-a à beira do precipício, mas a situação desesperadora inspirou uma nova estratégia de tomada de riscos que a devolveria ao jogo. As sementes dos fracassos presentes germinariam êxitos futuros.

Triunfo dos outsiders 

Desde a segunda metade da década de 1950 que a DC vinha resgatando da pátina do esquecimento alguns dos seus justiceiros fantasiados da Idade de Ouro. Face ao recrudescimento do interesse do público pelos super-heróis, Martin Goodman, sempre sintonizado com as tendências do mercado, decidiu voltar a apostar neles. Sabia, no entanto, que não bastaria imitar; era preciso inovar.
Para sinalizar essa rutura com o passado, Goodman mudou novamente o nome à sua casa publicadora. Assim, em junho de 1961, o 69º número de Journey Into Mystery - antologia de terror e ficção científica que, tal como as suas "irmãs" Strange Tales e Tales to Astonish, logo seria convertida em placa de Petri editorial - foi a primeira a ostentar na capa um minúsculo quadrado com as letras MC. Tratavam-se das iniciais de Marvel Comics, em homenagem ao primeiro título publicado pela Timely no já distante ano de 1939.
A pensar nos leitores maduros, Stan Lee e o regressado Jack Kirby criaram a primeira família de super-heróis. O Quarteto Fantástico foi apresentado ao mundo em The Fantastic Four #1 (novembro de 1961) e, de uma penada, quebrou várias convenções do género super-heroico. Desde logo a ausência de uniformes coloridos e identidades secretas. Os seus membros detinham o estatuto de celebridades e, por contraponto aos heróis impossivelmente nobres e um tudo nada monótonos da DC, exibiam fraquezas humanas, como o ciúme e a intemperança. A despeito dos seus fabulosos poderes, os Quatro Fantásticos falavam, agiam e sentiam como pessoas comuns.
Quando as vendas aumentaram e os fãs elogiaram a caracterização do Quarteto Fantástico, Lee soube que tinha encontrado uma fórmula para o sucesso. Era agora uma evidência solar que o Baby Boom tinha criado uma nova geração de leitores que se deixava cativar por este estilo revolucionário de escrita.
Para aprofundar ainda mais as tramas, Lee usava e abusava dos balões de pensamento. Via aberta para a intimidade das personagens, esse recurso narrativo tornava-as mais relacionáveis. Os leitores identificavam-se com os seus dramas e dilemas pessoais, e neles procuravam respostas para os seus próprios.



Fantastic Four #1 apresentou um novo tipo de super-heróis
e sinalizou o início da Era das Maravilhas.

Firmada a doutrina de Lee, nos anos imediatos a Marvel introduziu uma sucessão de personagens que recusavam perder-se na floresta de lugares-comuns de um género tão codificado como o dos super-heróis. Isto aplicava-se, particularmente, ao Homem-Aranha e aos X-Men. O primeiro era um adolescente a braços com problemas mundanos e inseguranças típicas de alguém da sua idade; os segundos eram exilados da Humanidade que lutavam em prol de um ideal de tolerância num mundo que os temia e odiava. 
Mas o Escalador de Paredes e os Filhos do Átomo não eram os únicos outsiders. Do Incrível Hulk ao Demolidor, passando pelo Surfista Prateado, todos tinham, de alguma forma, o apelo do estranho incompreendido que se tornou imagem de marca da Marvel. A redescoberta do herói marginal propiciou o reconhecimento tardio por parte da indústria dos comics da enorme importância dessa figura mítica no imaginário americano.
A retórica ambígua dos super-heróis da Marvel refletia, por outro lado, as ansiedades decorrentes da Guerra Fria. O próprio conceito de um herói falho e problemático que, apesar das suas boas intenções, nem sempre conseguia realizar o que pretendia metaforizava as limitações dos EUA enquanto superpotência mundial.
Sem alienar os mais novos, todos estes elementos despertaram o interesse dos leitores mais velhos, incluindo de jovens adultos em idade universitária. Em 1965, a revista Esquire noticiou que a Marvel se havia tornado um fenómeno nos campus americanos, enquanto personagens como o Doutor Estranho eram reverenciadas pela contracultura. A Marvel ganhou, assim, uma aura pop e o próprio Stan Lee tornou-se uma celebridade menor. 
Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko, arquitetos da mística da Casa das Ideias, haviam criado uma nova mitologia, um universo complexo com personagens e temas interligados que fascinavam leitores de diferentes grupos etários. Num aparente contrassenso, a Marvel explorava o ethos escapista através dos dramas e angústias do mundo real.

Das ruínas nasce um império

Enquanto a convulsa década de 1960 rolava vertiginosamente para o seu final, a Casa das Ideias ainda ressumava criatividade e os negócios corriam de vento em popa a Martin Goodman. Mesmo condicionada pelo acordo de distribuição com a Independent News, a Marvel vendia anualmente perto de 50 milhões de cópias e ameaçava cada vez mais a hegemonia da DC.
Para assombro geral, em outubro de 1968 Goodman vendeu a Marvel e a sua empresa-mãe - a Magazine Management - à Perfect Film & Chemical Corporation (posteriormente renomeada Candice Industries Corporation). Apesar da transferência de propriedade, Goodman conservou o cargo de publisher (diretor editorial) e a estrutura da empresa manteve-se praticamente intocada.
A jusante desta aparentemente descabida decisão de Goodman esteve a crise por ele intuída. Com as vendas em declínio, resultava óbvio que o boom de super-heróis tinha chegado ao fim e que, muito em breve, a indústria dos comics voltaria a cair no marasmo.
As profundas transformações culturais em marcha desde o início do decénio tinham, com efeito, afastado progressivamente os jovens americanos das histórias de super-heróis. Engajados com causas como o feminismo e a oposição à Guerra do Vietname, eram agora um grupo altamente politizado, determinado em desafiar as normas sociais para alisar as rugas do mundo. O seu ativismo deixava pouco espaço ao escapismo. 
Em 1969, Martin Goodman rasgou finalmente o acordo com a Independent News e assinou um novo com a Curtis Circulation Company. Sem limites à distribuição impostos pela Distinta Concorrente, a Marvel podia agora lançar tantos títulos quantos a demanda justificasse. Ironicamente, um dos efeitos tangíveis da crise pressentida por Goodman foi o cancelamento de várias das suas séries periódicas.
Se no domínio empresarial os ventos deixavam de ser benfazejos, no campo criativo a Marvel continuava a dar cartas. Em 1971, em resposta ao preocupante aumento de overdoses, o Departamento de Saúde dos EUA contactou Stan Lee, ao tempo editor-chefe da Marvel, para produzir uma banda desenhada que alertasse os jovens para os perigos do consumo de estupefacientes. Lee correspondeu ao pedido escrevendo uma dramática história do Homem-Aranha na qual Harry Osborn, o melhor amigo de Peter Parker, sofria um surto psicótico induzido por um substância lisérgica. 

Depois de Mary Jane o ter deixado, Harry Osborn mergulhou numa espiral autodestrutiva.
Através desta controversa história, a Marvel prestou um importante serviço público.

Apesar da sua intenção pedagógica, a história não passou no crivo da Comics Code Authority (CCA), o conselho de autocensura da indústria dos quadradinhos americanos. Com o beneplácito de Martin Goodman, Stan Lee ignorou o veto da CCA e publicou a história nos números 96, 97 e 98 de The Amazing Spider-Man. Perante a reação positiva dos leitores e os elogios da imprensa, a CCA não teve outro remédio senão rever os seus critérios, sob pena de ter o seu poder de supervisão esvaziado.
Goodman abandonou em definitivo a Marvel em 1972, colocando o seu filho Chip nos eixos da sucessão como publisher. Pouco tempo depois, Stan Lee acumularia essas funções com as de presidente não executivo. Em rigor, o seu curto mandato resumiu-se a uma medianamente bem-sucedida campanha de relações públicas, destinada a aumentar a ressonância social e mediática da Casa das Ideias.
Coincidindo com esta transição de poder, a Marvel ultrapassou a DC em vendas, pondo fim à longa hegemonia da Editora das Lendas. Forçada a reconhecer a superlativa qualidade do material da arquirrival, a DC tentou - quase sempre de forma desajeitada e raramente com sucesso comercial comparável - adaptar a abordagem da Marvel às suas personagens. Os leitores, porém, continuaram a preferir o original à cópia.
À entrada da década de 1980, a Marvel expandiu a sua linha com propriedades licenciadas, tendo sido fundamental no desenvolvimento de histórias aos quadradinhos baseadas em brinquedos. Micronauts e Rom, The Spaceknight foram não só exemplos pioneiros, mas muito mais populares do que os produtos originais. Abrindo caminho, dessa forma, a uma parceria da Marvel com a Hasbro para relançar G.I. Joe e criar os Transformers. 
O novo modelo de negócios da Marvel levou ainda à criação de duas subsidiárias: a Epic Comics e a Star Comics Ao passo que a primeira oferecia histórias não convencionais e garantia direitos autorais, a segunda seduzia o público infantil com as suas personagens ternurentas. 
Por esses dias, os estudos de mercado indicavam que a Marvel era a mais vendida tanto no mercado tradicional como no cada vez mais importante segmento das lojas especializadas. Para reforçar a sua posição dominante, a editora retomou a antiga estratégia de inundar o mercado com títulos. 
A ideia era submergir a concorrência,  mesmo que algumas dessas publicações saíssem de circulação ao fim de pouco tempo. Foi o caso, por exemplo, da linha Novo Universo, lançada em 1986 para celebrar as bodas de prata da Marvel. Nesse mesmo ano, a nova empresa-mãe da Marvel - a Marvel Entertainment Group - foi vendida à New World Entertainment. Que, por sua a vez, a venderia, no final de 1998, à MacAndrews & Forbes Incorporated, detida pelo investidor de Wall Street Ronald Perelman. 

Hoje quase esquecido, o Novo Universo
 foi um dos maiores flops da história da Marvel.

A partir de 1991, a Marvel, por iniciativa de Perelman, passou a estar cotada na Bolsa de Valores de Nova Iorque. A rápida valorização das suas ações permitiu a Perelman emitir obrigações de alto risco que utilizou para adquirir outras empresas de entretenimento. 
O sucesso empresarial da Marvel suscitou, contudo, algumas reações negativas por parte dos fãs e da crítica especializada. Outrora na vanguarda do mercado, os conteúdos da Marvel aproximavam-se perigosamente do mainstream. Muitos leitores ficaram desagradados com os desconcertantes crossovers e com a nova tendência de disseminar personagens populares, como Homem-Aranha e X-Men, por uma panóplia de títulos interligados. Alguns criadores queixavam-se igualmente da atmosfera corporativa instalada na editora que haviam romantizado na juventude.
No entanto, quando, em 1996, a acentuada desvalorização bolsista da Marvel levou a empresa a requer proteção contra a falência iminente, essa débacle deveu-se mais aos investimentos imprudentes de Perelman do que à impopularidade das publicações da derruída Casa das Ideias.
Nos anos terminais da década de1990, Ike Perlmutter e Avi Arad, executivos da Toy Biz, desenharam um ambicioso plano de fusão com a Marvel, que contemplava a produção de filmes de grande orçamento. Após sucessivas reestruturações, a Marvel saiu da falência em 2000. Aliviados, os fãs presenciaram o alvorecer de uma nova e gloriosa era. Das ruínas nasceria um império.
Logo na viragem do século, a primeira longa-metragem dos X-Men arrecadou uns impressionantes 54 milhões de dólares no fim de semana de estreia. Menos impressionantes, ainda assim, do que os 400 milhões de dólares gerados dois anos depois pelo tão aguardado filme do Homem-Aranha. Apesar de ter recebido apenas 5% desse valor, a Marvel obteve um apreciável encaixe financeiro por via do licenciamento da marca Homem-Aranha para uma gama tão variada de produtos desde vestuário a jogos de vídeo. 

Através do seu Universo Cinematográfico, a Marvel industrializou os filmes de super-heróis
e tornou-se uma marca global.

Graças às receitas multimilionárias de filmes e merchandising, a Marvel logrou crescer e expandir o seu catálogo editorial, embora já sem o fulgor pretérito. Comprada pela Disney em finais de 2009, por uns "módicos" 4 mil milhões de dólares, a Marvel tornou-se o ramo editorial de algumas das mais lucrativas franquias da sua nova empresa-mãe, com destaque para Star Wars.
Ao abrigo de um programa de redução de custos implementado nesse ano pela Disney, desde 2023 que a Marvel enquanto empresa foi formalmente dissolvida, fazendo agora parte da Disney Publishing Worldwide.
Mais do que uma simples editora de banda desenhada, a Marvel é hoje um rolo compressor cultural. Os omnipresentes filmes de super-heróis converteram as suas personagens em ícones globais e máquinas de fazer dinheiro. O crescimento de convenções de fãs, dentro e fora dos EUA, é outra prova inequívoca do supino ascendente da Marvel na cultura popular.
Desde os seus primórdios como negócio familiar até ao moderno conglomerado multimédia, o legado da Marvel teve como argamassa a imaginação, a inovação e a irreverência. Apesar de octogenária, a Casa das Ideias vende saúde e promete maravilhar gerações vindouras.


* Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia do Português.
* Textos sobre Timely Comics, Capitão, América, Namor, Tocha Humana, Quarteto Fantástico e Doutor Estranho disponíveis para leitura complementar.






 




 

















1 comentário:

  1. Texto bem informativo e agradável. A melhor parte, para mim, foi descobrir quando a Timely virou Atlas, e quando esta se transformou em Marvel, algo que não figura em nenhuma das biografias sobre a editora ou sobre sua estrela-mor, Stan Lee.

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