04 junho 2016

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A QUEDA DE MURDOCK"



   O que move um homem que perdeu tudo? O que o faz levantar-se do fundo do poço? Caído em desgraça devido à traição de um antigo amor, o Demolidor embarca numa épica jornada de redenção. Uma admirável fábula de ruína e renascimento impregnada da genialidade de Frank Miller e que sinaliza um momento definidor na trajetória do herói cego.

Título original: Born Again
Licenciadora: Marvel Comics
Autores: Frank Miller* (trama) e David Mazzucchelli (arte)
Data de lançamento: Fevereiro a junho de 1986
Títulos abrangidos: Daredevil nº227 a 231
Personagens principais: Matt Murdock/Daredevil (Demolidor) e Wilson Fisk/Kingpin (Rei do Crime)
Coadjuvantes: Karen Page, Foggy Nelson, Ben Urich, Captain America (Capitão América) e Nuke (Bazuca)
Cenário: Cozinha do Inferno e outros pontos da cidade de Nova Iorque

* Perfil disponível em http://bdmarveldc.blogspot.pt/2012/11/eternos-frank-miller-1957.html


Capa da edição encadernada da saga original.

Edições em Português

Pouco mais de um ano transcorrido sobre o lançamento da saga nos EUA, Born Again (traduzido no Brasil como A Queda de Murdock) chegou às páginas de Superaventuras Marvel (SAM), almanaque mensal editado pela Abril. Dividida em sete capítulos, a história foi apresentada pela primeira vez aos leitores lusófonos entre agosto de 1987 e fevereiro de 1988, nos números 62 a 68 de SAM.
Ainda sob os auspícios da Abril, em 1999 chegaria às bancas a minissérie A Queda de Murdock, composta por quatro fascículos publicados quinzenalmente entre agosto e setembro desse ano.
Já este século, a saga teve direito a duas republicações por outras tantas editoras, em ambos os casos sob o formato de volumes únicos. A primeira, com a chancela da Panini Comics, remonta a julho de 2010. Inserida na  Coleção Oficial das Graphic Novels Marvel da Salvat, três anos depois A Queda de Murdock  foi uma vez mais revisitada na língua de Camões (ainda que na sua variante tropical).





O início da saga em SAM nº 62 (acima)
 e a sua última revisitação pela Salvat.

Antecedentes: Há precisamente 30 anos, a série mensal do Demolidor tentava ainda recuperar da perda de Frank Miller, que a abandonara em 1982. Denny O'Neil, o senhor que se seguiu, mesmo contando com a arrojada arte de um talentoso novato chamado David Mazzucchelli, revelava-se incapaz de manter a dinâmica narrativa incutida pelo seu antecessor.
Daredevil foi, de facto, o primeiro título regular da Marvel Comics assumido por Mazzucchelli após desenhar histórias avulsas em Indiana Jones, Star Wars e Master of Kung Fu. Impressionado com o trabalho do jovem ilustrador de ascendência italiana, Bud Budinsky, o então editor da série, convidou-o a desenhar o Homem Sem Medo. Coincidindo, no entanto, a estreia de Mazzucchelli na série com o período de férias de Denny O'Neil. Assim, a primeira história do Diabo da Guarda a que emprestou o seu traço era da autoria de Harlan Ellison, consagrado escritor de ficção científica e confesso apaixonado por super-heróis. Algo que desde logo foi considerado como um bom prenúncio.
Com efeito, a cada edição de Daredevil, evidenciava-se o crescimento artístico de Mazzucchelli que aos poucos foi seduzindo os leitores com o seu design  impressionista e arrojadamente simplista.

À data do lançamento de Born Again,
David Mazzucchelli era um talentoso novato.

Frank Miller, por seu turno, vinha traçando uma trajetória meteórica na indústria dos quadradinhos que, por esses dias, se pautava por profundas transformações. Tendo recebido carta branca da DC Comics, lançou Ronin (uma minissérie experimental que lhe valeu rasgados elogios) antes de ser colocado num pedestal devido à ovacionada saga Batman: The Dark Knight (Batman, o Cavaleiro das Trevas, Abril, 1987). No entanto, embora ausente do título do Homem Sem Medo, Miller não se afastara por completo do herói. Nesse período, produziu, numa bem-sucedida parceria criativa com Bill Sienkiewicz, a igualmente aclamada graphic novel Daredevil:Love and War (Demolidor: Amor e Guerra, Abril, 1988)).
O Demolidor, propriamente dito, chapinhava em águas pantanosas. Malgrado a competência narrativa  do veterano Denny O'Neil, os seus enredos não empolgavam os leitores, porventura mal habituados pela genialidade com que Miller infundira a série. O venerável escriba dera, entretanto, mais um sinal da sua intenção de reassumir uma personagem que tão bem conhecia.Presentando os seus saudosos fãs com uma pequena história ilustrada pelo lendário John Buscema e publicada em Daredevil nº219.
Quando O'Neil abandonou a série no final de 1985, Miller assumiu interinamente as histórias do Homem Sem Medo, exigindo que David Mazzucchelli, por cuja arte se dizia fascinado, continuasse a desenhá-las. O seu retorno efetivo só se verificaria, porém, alguns meses depois, começando de imediato a preparar o terreno para Born Again.

Frank Miller marcou uma era
nas histórias do Homem Sem Medo.

Em Daredevil nº227, edição onde foi dado a conhecer o primeiro dos sete capítulos que compunham a saga, a dupla Miller/Mazzucchelli, trabalhando numa harmoniosa simbiose criativa, tratou logo de estabelecer quem seriam os protagonistas. Além de Matt Murdock, estariam em evidência as seguintes personagens:

- Ben Urich, astuto e temerário repórter do Clarim Diário e um dos poucos conhecedores da verdadeira identidade do Demolidor;
Foggy Nelson, sócio e melhor amigo de Matt que, na esteira de importantes reveses, procurava relançar a sua carreira jurídica;
- Glorianna O'Breen, fotógrafa e atual namorada de Matt;
- Wilson Fisk, o Rei do Crime e arqui-inimigo do Homem Sem Medo;
- Karen Page, ex-secretária da firma de advogados Nelson & Murdock e antiga amante de Matt, desaparecida há vários anos após largar o emprego para rumar a Hollywood em busca de fama e fortuna como atriz. É ela, de resto, a personagem-chave da trama ao expor o maior segredo do Demolidor. Colocando dessa forma em movimento uma sinistra engrenagem que mudará para sempre a vida do herói.

Escrava do vício, Karen Page está disposta
 a tudo pela próxima dose de heroína.

Desde o início, Miller e Mazzucchelli tinham uma ideia muito clara do que pretendiam com Born Again. Era para ser uma fábula de ruína e redenção. Nesse sentido, eles testariam os limites do herói, levando-o à miséria, à loucura e, por fim, à beira da morte. Para, então, trazê-lo de volta purificado, praticamente renascido. Daí o título original da saga (Born Again = Renascido). Já o título adotado no Brasil - A Queda de Murdock - enfatiza somente a primeira etapa dessa longa e árdua provação.
Além da oportunidade de explorar novas possibilidades para os coadjuvantes já conhecidos, Born Again permitiu a Miller e Mazzucchelli elaborar uma gama de conceitos que os interessavam naquela época.
Assim se explica, por exemplo, o acréscimo tardio à obra de Basuca (Nuke, no original), personagem que não figurava do esboço original. Desde a sua primeira passagem por Daredevil - e, sobretudo, após Batman, The Dark Knight - Miller vinha demonstrando um nítido interesse pela dimensão mítica do herói e pelo seu lugar no mundo moderno.
Basuca, o perturbado supersoldado dos anos 1980, serve portanto o duplo propósito de levar o leitor a questionar-se sobre esses temas, servindo ao mesmo tempo de mote para a entrada em cena do Capitão América. A polarização que se estabelece entre ambos chega a ser tão intensa e impactante como o confronto entre Batman e o Super-Homem em The Dark Knight.
Born Again tem ainda o condão de desvendar parcialmente um dos principais mistérios propostos por Miller aquando da sua primeira passagem pelas histórias do Homem Sem Medo: o verdadeiro destino da mãe de Matt Murdock. Rezam as crónicas que, meses antes, Denny O'Neil chegara a discutir com David Mazzucchelli o desenvolvimento de uma saga para abordar o assunto. Projeto que, devido à saída extemporânea do escritor, seria posto na gaveta antes mesmo de poder ser definida a respetiva tónica. Deixando assim via aberta para a inusitada revelação feita por Miller sobre uma das mais enigmáticas personagens do passado do Demolidor.
Resta apenas acrescentar que o fim de Born Again não encerrou a parceria entre Miller e Mazzucchelli. Dupla de sucesso que se reuniria logo em 1987 para, agora ao serviço da DC, produzir o magistral arco de histórias Batman: Year One (Batman: Ano Um, Abril, 1987).

Basuca, o reflexo distorcido do Capitão América.

Enredo: Karen Page, antiga secretária da Nelson & Murdock e ex-namorada de Matt, partira anos atrás para Hollywood no encalço do sonho de construir uma carreira ligada ao cinema. Após algumas experiências positivas como atriz, tornou-se uma heroinómana, vendo-se obrigada a participar em filmes pornográficos rodados no México para sustentar o vício. Tolhida pela ressaca, ela aceita vender um segredo que guardava há largos anos a troco de uma dose de droga: o de que Matt Murdock é o Demolidor. Informação que não tardaria a ser repassada ao Rei do Crime.
Nos meses seguintes, o poderoso chefe do submundo do crime nova-iorquino usa a sua influência junto de diversas entidades para arruinar a vida ao seu ódio de estimação. Para começar, Matt tem as suas contas bancárias congeladas pelo Fisco. Segue-se uma ordem de despejo do seu apartamento interposta pelo banco com o qual ficara em incumprimento. A estocada final é desferida sob a forma de um falso depoimento prestado em tribunal por um agente policial corrupto que, a mando de Fisk, acusa Matt Murdock de ter subornado uma testemunha para cometer perjúrio.
Como se tudo isso não fosse suficiente para desmoralizar qualquer um, Glorianna O'Breen, a atual namorada de Matt, anuncia a sua intenção de pôr um ponto final à relação de ambos. Reatando de seguida o seu romance com Foggy Nelson, sócio e melhor amigo de Murdock.
Acossado, o Homem Sem Medo pressente que está a ser alvo de uma cabala para o destruir e resolve descobrir quem está por detrás dela. As suas investigações iniciais levam-no até um sujeito chamado Nick Manolis. A troco de tratamento médico para o seu filho gravemente doente, Manolis tem ajudado a tramar Matt Murdock. No entanto, malgrado os seus esforços, o Homem Sem Medo não consegue descobrir quem está por detrás do complô, tampouco consegue provar a sua inocência.
Graças ao brilhante trabalho jurídico de Foggy Nelson, Matt escapa a uma pena de prisão efetiva, mas tem cassada a sua licença de advogado. Frustrado o seu plano original, o Rei do Crime ordena um ataque à bomba ao apartamento de Matt. Ordena também que o traje do Demolidor seja deixado entre os destroços fumegantes, para que o herói tome consciência de que a sua identidade deixou de ser secreta para o seu maior inimigo. E que é ele o responsável pelo seu tormento.

Uma mensagem do Rei do Crime deixada
entre as ruínas fumegantes do lar de Matt Murdock.
Tentando tirar o maior proveito possível dessa vantagem tática, o Rei do Crime ordena a morte de toda e qualquer pessoa que conheça a verdadeira identidade do Demolidor. Karen Page consegue, porém, iludir os seus carrascos e planeia retornar a Nova Iorque na esperança de conseguir chegar até Matt.
Agora um sem-abrigo, Matt desenvolve uma personalidade paranoide e assume comportamentos extremamente agressivos. A sua paranoia é, todavia, real visto que ele é constantemente vigiado por esbirros do Rei do Crime, que lhe fornecem relatórios detalhados do estado de saúde de Matt.
Impelido por um fortíssimo desejo de vingança, Matt Murdock confronta Wilson Fisk no seu próprio escritório. Física e mentalmente diminuído, o herói acaba, porém, brutalmente espancado às mãos do seu arqui-inimigo. De seguida, visando prevenir uma eventual investigação policial à morte de Murdock, o seu corpo manietado é regado com uísque antes de ser enfiado no interior de um táxi roubado, que é, depois, empurrado para o East River. A água gelada faz no entanto com que Matt recupere os sentidos e consiga libertar-se da armadilha fatal, nadando depois até à superfície.
Ferido com gravidade, Matt cambaleia pelas ruas da Cozinha do Inferno até conseguir chegar ao bafiento ginásio onde o seu pai outrora treinara como pugilista. Local onde é encontrado pela sua mãe, cujo paradeiro era incerto desde o seu nascimento. Mas que tinha, afinal, abraçado uma carreira religiosa como freira numa igreja das redondezas. É ela quem cuida dos ferimentos do filho, velando e orando por ele enquanto o seu corpo se cura.

Schermafbeelding-2015-07-17-om-13.46.24
Matt Murdock derrotado às mãos do seu arqui-inimigo.
Entrementes, Ben Urich, repórter do Clarim Diário e confidente de Matt, inicia uma investigação por contra própria aos recentes acontecimentos na vida do amigo. Investigação essa  que o conduz ao hospital onde o filho de Nick Manolis luta pela vida. Quando o menino exala o seu último suspiro, o pai confidencia a Ben o seu envolvimento numa cabala para arruinar Matt Murdock. Dando-lhe igualmente conta  das suas suspeitas de que por detrás dela estará ninguém menos do que o Rei do Crime. A conversa é, contudo, abruptamente interrompida por Lois,  uma espadaúda enfermeira a soldo de Fisk.  Depois de partir os dedos de uma mão a Urich, ela espanca Manolis quase até à morte.
Dias depois, Manolis telefona a Urich a partir da sua cama de hospital com o objetivo de retomar a sua confissão. Antes que o possa fazer é novamente atacado pela enfermeira Lois que, desta vez, não tenciona deixar o serviço a meio. Manolis é assim lentamente esganado por ela enquanto do outro lado da linha Urich escuta, impotente, a sua agonia. Contudo, em vez de ficar intimidado, o repórter ganha novo alento para prosseguir com a sua investigação, alertando o seu jornal e as autoridades para o sucedido.
Karen Page chega entretanto a Nova Iorque após uma viagem de pesadelo.Que só foi possível graças à  boleia de um pervertido chamado Paul Scorcese que, a troco de favores sexuais, lhe fornece heroína. Sem demora, ela entra em contacto com Foggy Nelson a fim de se inteirar da condição de Matt Murdock. Ao detetar os sinais de agressão no corpo da jovem, Foggy insiste em levá-la para sua casa.
Cada vez mais obstinado em liquidar o Demolidor, o Rei do Crime recorre aos seus contactos nas altas esferas do Exército americano para assegurar os serviços de Bazuca, um supersoldado gerado pelo mesmo programa militar que criara o Capitão América. Para atrair o Homem Sem Medo para fora do seu esconderijo, Fisk envia um maníaco homicida - cuja fuga do hospício engendrara entretanto - para assassinar Foggy Nelson usando um uniforme idêntico ao do herói.
Depois de ter salvo Ben Urich de nova tentativa de homicídio perpetrada pela enfermeira Lois, Matt toma conhecimento da conspiração em curso para tirar a vida ao seu amigo e decide tomar providências para impedir que isso aconteça. Lois, por seu turno, fica sob custódia policial.
Longe dali, Karen Page surpreende Paul Scorcese a rondar o prédio onde Foggy Nelson reside. Receando que ele tencione matar o seu amigo, a jovem vai ao encontro de Scorcese na rua. Sendo ambos prontamente alvejados por atiradores furtivos a quem o Rei do Crime ordenara que abatessem qualquer pessoa que saísse do edifício. Instantes depois, é a vez do falso Demolidor chegar ao local, ansioso por executar a sua macabra missão. Deparando-se, porém, com Matt Murdock que facilmente neutraliza o impostor e salva Karen que fora apenas atingida de raspão pelo disparo do sniper.
Consumida pela culpa, a rapariga confessa-lhe ter sido ela a revelar o seu segredo. Mas Matt tranquiliza-a dizendo-lhe que já superara a perda dos seus bens materiais. Os dois refugiam-se em seguida num apartamento devoluto onde Matt ajuda Karen a suportar os efeitos da ressaca.

Karen Page expia os seus pecados
 nos braços de Matt Murdock.

Enquanto isso, a enfermeira Lois dispõe-se a testemunhar contra Wilson Fisk a troco de uma pena mais leve. Antes que possa fazê-lo, é assassinada a sangue-frio por um falso jornalista do Clarim Diário a quem concordara conceder uma entrevista. Falhado o seu plano para descobrir o paradeiro do Demolidor, o Rei do Crime ordena a Basuca um ataque generalizado à Cozinha do Inferno.
Basuca mata dezenas de civis inocentes e destrói o restaurante onde Matt Murdock vem trabalhando anonimamente. Ressurgindo em público pela primeira vez desde a destruição do seu lar, o Demolidor não tem outra alternativa se não provocar a queda do helicóptero em que o vilão se faz transportar. Embora ferido com gravidade, Basuca sobrevive e fica sob a custódia dos Vingadores que haviam entretanto acorrido ao local.
Perturbado pelo facto de Basuca ter uma bandeira dos EUA tatuada na face, o Capitão América resolve investigar o seu passado. Perante as respostas evasivas que obtém por parte das chefias militares, o Sentinela da Liberdade infiltra-se na base do Exército para onde Basuca fora entretanto transferido e vasculha arquivos confidenciais. A descoberta de que Basuca é um produto do mesmo programa militar que, durante a II Guerra Mundial, o transformou num formidável supersoldado, deixa o herói mortificado.

Diabo da Guarda renascido.
Basuca consegue entretanto evadir-se, sendo prontamente detido pelo Capitão América. Contudo, o Rei do Crime ordenara que Basuca fosse morto, acabando assim alvejado pelos militares. Chegado entretanto ao local, o Demolidor arranca o moribundo vilão das mãos do Sentinela da Liberdade e apressa-se a levá-lo à redação do Clarim Diário, na esperança de que ele possa testemunhar contra Fisk. Não é, porém, lesto o suficiente e Basuca morre antes de poder incriminar o seu ex-empregador.
Numa tentativa para resgatar Basuca, o Capitão América tropeça acidentalmente nos franco-atiradores  enviados para matá-lo. Um deles denuncia Wilson Fisk como tendo sido o mandante do ataque à Cozinha do Inferno que se saldou na perda de dezenas de vidas humanas. Rebenta o escândalo na comunicação social e chovem processos judiciais sobre Fisk. Este, apesar de conseguir ser ilibado de todas as acusações tem a sua imagem pública de respeitável homem de negócios destruída. Facto que motiva a deserção dos seus lugares-tenentes.
Mais obcecado do que nunca, o Rei do Crime logo começa a congeminar os seus planos de vingança contra Matt Murdock. Este, por sua vez, reencontra a felicidade na Cozinha do Inferno e ao lado de Karen Page, agora livre do vício. Mesmo sabendo no seu íntimo que, apesar de ter saído vencedor de mais esta batalha contra o seu némesis, a guerra entre ambos está longe de terminar...
     
Matt Murdock e Karen Page
 reencontram a esperança um no outro.

Simbolismo: Pejada de elementos religiosos relacionados com a mitologia cristã, a saga assume-se na sua essência como uma parábola bíblica. O próprio título original invoca uma frase que, segundo o Evangelho de João, terá sido proferida por Jesus Cristo para expressar a necessidade de preceder o início de uma nova vida com o fim da antiga.
Note-se, à guisa de curiosidade, que apesar de a história se desenrolar em plena quadra natalícia, a temática nela aflorada remete quase exclusivamente para a Páscoa (celebração da morte e ressurreição de Cristo). Senão vejamos: as páginas de abertura dos quatro primeiros capítulos mostram sempre Matt Murdock prostrado. Com a particularidade de, no segundo e terceiro capítulos, ele surgir enroscado em posição fetal. Ainda no terceiro capítulo, o herói - agora convertido num pária - arrasta-se ensanguentado pelas ruas da Cozinha do Inferno, numa óbvia alegoria da Via Sacra calcorreada pelo Messias até ao local da sua crucificação. Não faltando sequer as três quedas que terão marcado esse tortuoso percurso levado a cabo pelo Filho de Deus enquanto carregava uma pesada cruz de madeira.
Já a imagem que encerra esse capítulo (e que serve de ilustração principal deste artigo) invoca claramente a icónica Pietá de Michelangelo. Nela, um agonizante Matt Murdock jaz inerte no regaço da Irmã Maggie, que assim faz as vezes da Virgem Maria. Há ainda a ressaltar o pormenor de na referida imagem ser visível uma pomba branca pousada acima de ambos. Ave que, como é sabido, é tradicionalmente usada na iconografia cristã para simbolizar o Espírito Santo. Finalmente, a página de abertura do quinto capítulo da saga mostra Matt de pé, numa representação metafórica da ascensão de Cristo.
No que concerne ao simbolismo religioso subjacente à obra, importa ainda observar que todos os títulos dados aos capítulos que a compõem advêm de conceitos do Cristianismo (Apocalipse, Purgatório, etc.). Tudo elementos que refletem as raízes profundamente católicas de Frank Miller.

Apocalipse, Purgatório e Pária:
conceitos bíblicos titulam 3 primeiros capítulos da saga.

Sequela: Embora produzido por um conjunto de autores totalmente diverso do da saga original, o arco de histórias Last Rites, publicado nos números 297 a 300 de Daredevil, corresponde a um desdobramento de Born Again. Com a respetiva trama centrada na forma como o Homem Sem Medo destrói metodicamente a reputação pública de Wilson Fisk, ao mesmo tempo que o desapossa do seu vasto património espalhado pelo globo. Retribuindo assim as agruras que o Rei do Crime lhe infligira. Paralelismo que fica bem explícito quando, no desfecho da saga, o vilão, num momento de devaneio, balbucia "born again".
A história mostra também como Matt Murdock consegue recuperar a sua licença para exercer advocacia, a qual fora cassada em consequência da campanha difamatória orquestrada por Fisk na saga original.

Capa do capítulo final de Last Rites
(em Português traduzida como A Queda do Rei do Crime).

Notas finais:

Anos atrás, o realizador Mark Steven Johnson deu conta do seu interesse em dirigir uma sequela de Daredevil (longa-metragem de 2003 protagonizada por Ben Affleck), baseada em Born Again. Projeto que seria oficialmente descartado pela Fox em agosto de 2012, escassos meses antes de os direitos do filme reverterem para os Estúdios Marvel;
* Sob a égide da IDW Publishing, em 2012 foi dada à estampa David Mazzucchelli's Daredevil: Born Again - Artist's Editon. Trata-se de uma coletânea de 200 páginas impressas nas dimensões da  arte original de Mazzucchelli. Entre outros extras que fizeram as delícias dos fãs, o volume incluía notas editoriais e correções feitas ao trabalho da dupla de autores.

David Mazzucchelli autografa um exemplar
 da Artist´s Edition na Midtown Comics de NY em 2012.

Vale a pena ler?

Em 2001, o explosivo capítulo inaugural de Born Again foi votado pelos leitores como a 11ª melhor história da Marvel de todos os tempos.
É, no entanto, difícil explicar porque é tão fantástica a saga. É algo que o leitor terá de descobrir por si próprio. Pode até nem ser o tipo de  história que, pela sua intensidade psicológica e nível de violência, agradará a todos. Mas será certamente um bom entretenimento.
Na minha modesta opinião, Born Again poderá mesmo ser a melhor história alguma vez produzida pela Marvel. Mostrando-nos como um homem íntegro que perdeu tudo consegue reerguer-se mais forte do que nunca. Porque, mais do que o Demolidor, é Matt Murdock quem sobrevive a tão grande provação. É, pois, ele o verdadeiro herói da saga. Dispensando poderes espalhafatosos e pondo em evidência os seus maiores predicados: coragem e perseverança.
Uma palavra ainda para o magnífico trabalho desenvolvido por Frank Miller que  a par de Batman, The Dark Knight, tem em Born Again as suas obras-primas. Muitos foram os escritores que, ao longo das décadas, assumiram - com maior ou menor brilhantismo - as histórias do Homem Sem Medo. Mas nenhum deles sequer chegou perto da genialidade de Miller. Cuja visão marcou uma era no género super-heroístico, pavimentando caminho para a adultização que o caracteriza nos dias de hoje.




24 maio 2016

ETERNOS: BILL EVERETT (1917-1973)




   Com uma carreira profissional que se confunde com a história da Marvel Comics, foi um visionário e um iconoclasta da Idade do Ouro dos Quadradinhos que teve no Príncipe Submarino o seu alfa e o seu ómega. Menos óbvio foi o seu papel na conceção de um certo Homem Sem Medo.

Biografia e carreira: Com berço numa família influente e endinheirada, William "Bill" Everett veio ao mundo no já longínquo dia 18 de maio de 1917, em Cambridge (no estado norte-americano do Massachusetts). Mitómano, fabricou ao longo dos anos uma série de ficções acerca da sua juventude. Entre as patranhas que gostava de impingir a quem com ele privava, contava que havia concluído o liceu no Arizona. Narrativa que colidia com uma outra em que jurava a pés juntos ter-se alistado na Marinha Mercante dos EUA com apenas 15 anos de idade.
   Em boa verdade, Bill nascera no Hospital de Cambridge, tendo crescido nos arrabaldes de Watertown,  um pequeno e pacato município encravado na área metropolitana de Boston. Fê-lo na companhia dos pais (Robert e Elaine Everett) e de uma irmã dois anos mais velha chamada Elizabeth.
  Com raízes em Nova Inglaterra (território geográfico localizado no nordeste dos EUA, junto à fronteira com o Canadá) e uma genealogia velha de três séculos, o clã Everett tivera até aí em Edward Everett e em William Blake os seus membros mais ilustres. Após desempenhar os prestigiosos cargos de reitor da Universidade de Harvard e de Governador do Massachusetts, o primeiro fora nomeado Secretário de Estado do Governo dos EUA em 1852. Ao passo que o segundo, nascido em terras de Sua Majestade, foi um dos maiores expoentes da poesia romântica europeia nos séculos XVIII e XIX.
  Proprietário de um bem-sucedido negócio de transporte rodoviário de mercadorias, em meados dos anos 20 do século passado, Robert Everett resolveu mudar-se com a família para um palacete de verão no litoral do Maine. Seria nesse ambiente burguês que, encorajado pelos seus progenitores, o pequeno Bill daria os primeiros passos na ilustração, refinando paulatinamente o seu inato talento artístico.
   Leitor voraz, o catraio preferia no entanto os clássicos da literatura aos romances de cordel ou às histórias aos quadradinhos que faziam as delícias de muitas crianças da sua idade. Seriam ainda assim os trabalhos de diversos ilustradores e cartunistas (com o famigerado Floyd MacMillan Davis à cabeça) a influenciarem o estilo de Bill Everett. 
   Em 1929, então com 12 anos de idade e a frequentar o sexto ano de escolaridade, Bill contraiu tuberculose. Moléstia que motivou a sua saída abrupta da escola para, na companhia da mãe e da irmã, viajar para o Arizona, onde passou quatro meses em convalescença.
   Contudo, pouco tempo decorrido sobre o seu regresso a casa, Bill teve uma recaída que o obrigou a nova estada forçada na Costa Oeste. Período em que o jovem teve o seu primeiro contacto com bebidas alcoólicas, naquilo que seria uma espécie de rito iniciático para uma adolescência ensombrada pelo alcoolismo.
  Quando, após quatro turbulentos anos, Bill regressou por fim ao seu Massachusetts natal, levou a desarmonia à nova mansão familiar que o seu pai, incólume aos devastadores efeitos da Grande Depressão na economia estadunidense, adquirira entretanto num subúrbio de Boston. Exasperados com a insolência e o diletantismo do filho, os Everetts tomaram a difícil decisão de retirá-lo do liceu onde vadiava para, em 1934, inscrevê-lo - quase à força - na Vesper George School of Arts, uma conceituada academia de artes sediada no coração de Boston.
 Incapaz de se manter concentrado nos estudos, Bill abandonaria a instituição cerca de ano e meio depois, para profundo desgosto dos seus progenitores, mormente do seu pai. Que, vítima de uma apendicite aguda, faleceria pouco tempo depois sem ver concretizado o seu sonho de ver o filho tornar-se um cartunista de sucesso.

Bill Everett fotografado em 1939 no estúdio da Centaur Publications,
a sua porta de entrada para o lucrativo negócio dos comics.
   Mesmo dispondo de recursos financeiros que lhe continuavam a assegurar uma vida desafogada, a mãe de Bill entendeu por bem mudar-se com a prole para um apartamento localizado no centro de Cambridge.
  Obrigado pelas circunstâncias a assumir as suas responsabilidades enquanto novo patriarca do clã Everett, Bill depressa abandonaria a sua vida boémia, encetando uma carreira como ilustrador profissional que, sem que ele o imaginasse,  lhe garantiria lugar de destaque na memorabilia da Casa das Ideias.
   A troco de um cheque semanal de 12 dólares, em meados de 1936 Bill Everett começou a trabalhar como ilustrador no departamento publicitário do The Herald-Traveler, um dos tabloides mais antigos de Boston. Não teve, porém, sequer tempo de aquecer o lugar. Ao cabo de escassos meses, estava de malas aviadas para a periferia depois de aceitar uma proposta de emprego apresentada por uma empresa de engenharia civil, onde, durante um curto período, desempenhou as funções de desenhador projetista.
  Seguir-se-ia uma aventura (logo transformada em desventura) profissional na Costa Oeste que, entre outras paragens, o levou a Los Angeles. Uma vez mais, as coisas não correram de feição a Bill que não tardaria a regressar à Costa Leste. Assentando então arraiais em Nova Iorque, cidade onde esperava encontrar novas oportunidades para mostrar o seu valor.
  Na Grande Maçã, começou por trabalhar novamente como ilustrador no departamento publicitário de um jornal (o New York Herald-Tribune). Incapaz de manter um emprego por muito tempo, nos meses seguintes Bill Everett desempenharia as funções de editor artístico da revista Radio News antes de rumar a Chicago para assumir o cargo de subdiretor artístico de uma publicação não especificada. Certo é que acabaria demitido por, segundo o próprio, ser "demasiado presunçoso".
   De volta a Nova Iorque, Bill começou a procurar novo emprego no campo da ilustração. A sorte, porém, parecia andar arredada da sua vida. À medida que o tempo passava e as portas se lhe fechavam na cara, o desalento começou a apoderar-se dele. Em desespero de causa, entrou em contacto com Walter Holze, um antigo colega de escola que, por esses dias, trabalhava na efervescente indústria dos comics.
   Vários anos depois, Bill recordaria assim aquele que seria um ponto de viragem na sua vida: "Walter perguntou-me se eu podia desenhar histórias aos quadradinhos. É claro que eu respondi que sim. Estava falido e sem emprego. Aceitaria qualquer coisa. Não estava, portanto, interessado no negócio dos comics; fui empurrado pelas circunstâncias para dentro dele."
    Como ilustrador freelance ao serviço da Centaur Publications, Bill Everett começou por receber 2 dólares por cada página produzida. No entanto, por conta do seu virtuosismo, rapidamente passaria a ganhar sete vezes mais pelo mesmo trabalho. Uma respeitável maquia à luz dos padrões da época. Convém ter presente que estávamos no final dos anos 1930, numa altura em que os EUA eram ainda assolados pela Grande Depressão. Simetricamente, vivia-se o ápice da chamada Idade do Ouro dos Quadradinhos.
   Numa época em que brotavam super-heróis como cogumelos e as suas histórias vendiam como pãezinhos quentes, Bill Everett esteve diretamente envolvido na conceção de Amazing-Man, personagem da Centaur Publications desenvolvida a meias com Lloyd Jacquet, seu diretor artístico. Quando este fundou a sua própria editora, a Funnies, Inc., Bill aceitou de bom grado o convite para participar no projeto.

Amazing-Man foi o primeiro super-herói
concebido por Bill Everett.

   Numa sua biografia publicada postumamente, Bill Everett relatava: "Deixei a Centaur Publications com o Lloyd Jacquet e outro colega do qual não me recordo do nome. Fui aliciado pela ideia de Lloyd de criar uma pequena empresa que providenciasse mão-de-obra e matéria-prima às editoras já implantadas no mercado. Além de mim, ele também convidou o Carl Burgos (futuro criador do Tocha Humana original). Embora fôssemos o núcleo duro do projeto, continuávamos a trabalhar como freelancers. Não sei bem explicar o motivo. Mas era esse o acordo que tínhamos feito. E que ninguém contestou."
   Seria precisamente durante a sua passagem pela Funnies, Inc. que Bill Everett criaria a personagem que o imortalizaria na História da 9ª Arte. No âmbito de uma iniciativa editorial que visava a produção de uma banda desenhada a ser distribuída gratuitamente em algumas salas de cinema, Bill teve a ideia para um herói anfíbio que crismou de Namor, o Príncipe Submarino (vide texto anterior).                                                            Quando o projeto foi por água abaixo, Bill resolveu mostrar a sua criação a Martin Goodman, um influente editor de quadradinhos detentor de uma importante quota de mercado. Agradado com o trabalho de Bill, Goodman propôs-lhe que aumentasse o número de páginas da história original (de 8 passaria para 12), com vista à sua publicação no volume inaugural de Marvel Comics, a primeira série regular lançada pela Timely Comics (antepassada da Marvel).
   Muito por conta do seu perfil de anti-herói (conceito pouco explorado à época), Namor revelou-se um sucesso instantâneo, depressa se tornando, em paralelo com o Tocha Humana e o Capitão América, uma das figuras de proa da recém-fundada editora.
  Face à crescente popularidade das historietas do Príncipe Submarino, Bill (que as escrevia e desenhava) logo introduziria nelas um lote de coadjuvantes, entre os quais avultavam Namora e Betty Dean. Enquanto a primeira era prima do soberano das profundezas oceânicas com poderes similares aos seus, a segunda era uma agente policial que era simultaneamente interesse romântico e parceira do herói no combate ao crime.

Um dos primeiros super-heróis da História,
o Príncipe Submarino foi a obra-prima de Bill Everett
   Quando a carreira profissional de Bill Everett parecia ir de vento em popa, foi subitamente interrompida em 1942, ano em que ele foi cooptado pelo Exército norte-americano em consequência da entrada dos EUA na II Guerra Mundial. Dois anos mais tarde, após regressar do teatro operações europeu, Bill casaria com Gwen Randall, também ela a cumprir serviço militar.
    Em vésperas de embarcar para nova comissão numa frente de guerra - desta feita nas Filipinas-, Bill foi pai de uma menina. Que, até ao início de 1946 (altura em que Bill regressou a casa no pós-guerra), seria criada apenas pela mãe.      
   De volta aos EUA, Bill aproveitou a  herança de um tio-avô entretanto falecido,para tirar umas férias prolongadas e fazer várias viagens dentro e fora dos EUA antes de assentar na cidade natal da mulher, no Nebraska.
   Foi por essa altura que ele reatou a sua ligação com Martin Goodman e a Timely Comics. Enviando os seus trabalhos por correio, Bill retomou as histórias do Príncipe Submarino no ponto onde as deixara quatro anos antes. Acrescentando-lhes a sua colaboração com outras séries regulares da editora, como The Human Torch, Marvel Mistery Comics e Namora. Durante esta fase prolífica da sua carreira, Bill adotou diversos pseudónimos, entre os quais Bill Roman e Willie Bee.

Namora, outra das criações de Bill Everett,
fez furor na Idade do Ouro dos Quadradinhos.

   Tudo mudaria, porém, com a chegada da nova década. No início dos anos 1950, a Timely Comics deu lugar à Atlas Comics. A mudança de nome foi contudo insuficiente para contrariar o declínio que afetava o género super-heroístico. E Namor, apesar de aclamado pouco tempo antes, não fugiu à regra. Com a sua popularidade em queda livre junto dos leitores, o Príncipe Submarino tivera o seu título cancelado em 1949, precisamente uma década depois da sua estreia oficial.
   Após um interregno de 4 anos, em 1953, o herói atlante, juntamente com o Capitão América, o Tocha Humana e Namora, foram reabilitados pela Atlas. Nesse contexto, Bill Everett foi uma vez mais chamado a assumir a arte (mas já não a escrita) das histórias da personagem que idealizara, na vã esperança de lhe restaurar a glória do passado.
 Paralelamente ao trabalho artístico desenvolvido em Sub-Mariner Comics durante esse período,  Bill Everett desenharia também outros títulos de charneira da companhia, como Venus, Marvel Boy e Menace. Este último era uma antologia de contos de terror, muitos dos quais eram da autoria do então editor-chefe da Atlas: um jovem promissor chamado Stan Lee que muito admirava o traço de Bill. Tanto que, em 1964, lhe confiou a tarefa de desenhar os primeiros esboços da sua mais recente criação: Daredevil (Demolidor). Ou, pelo menos, uns dos primeiros esboços da personagem, considerando que Jack Kirby  afirmou em diversas ocasiões ter sido ele o primeiro a desenhar o Homem Sem Medo.
   Procurando deslindar um mistério com mais de meio século, Mark Evanier, historiador da Nona Arte, entrevistou certa vez Kirby e Everett. A sua investigação resultaria, contudo, inconclusiva.
  De acordo com Evanier, Kirby fora de facto o primeiro a trabalhar no visual do Homem Sem Medo. Era também dele o traço que surgia na primeira página da história que dava a conhecer a origem do herói. Dados confirmados por Bill Everett na citada entrevista. No entanto, a partir deste ponto, as coisas ficam algo nebulosas. Nenhum dos envolvidos parecia recordar com precisão como tudo se processou. Embora tenham ambos concordado que o mais provável é que, por causa de algum atraso por parte de Kirby na finalização do seu trabalho, Stan Lee tenha resolvido procurar alguém que o fizesse. Tudo indicando que terá sido Bill Everett a voluntariar-se para o efeito. Recebendo dessa forma os créditos pela coautoria do Demolidor.

A origem do Demolidor contou com o traço de Bill Everett.
Mas terá sido ele o primeiro a desenhar o herói cego?

  Versão desmentida, no entanto, pelo ex-editor-chefe da Marvel, Joe Quesada. Segundo ele, terá sido Bill Everett quem se atrasou na entrega das ilustrações da primeira história do Homem Sem Medo, cabendo a Steve Ditko* terminar o trabalho, tendo como base os esboços feitos algum tempo antes por Jack Kirby.
  Esta tese ganha alguma força quando analisamos as palavras do próprio Bill Everett numa entrevista concedida em 1969 ao ex-editor da Marvel, Roy Thomas. Questionado sobre a polémica em torno do seu papel na conceção do Demolidor, Bill respondeu: "Devo ter telefonado ao Stan Lee ou mantido algum tipo de contacto com ele. Não sei o que me terá levado a fazê-lo. Sei apenas que tentámos articular as nossas ideias por telefone. Como as coisas não atavam nem desatavam à distância, julgo que terei sugerido deslocar-me a Nova Iorque para uma reunião com ele. Devo ter pedido uma folga no emprego (como diretor artístico na Eton Paper Corporation, no Massachusetts) e arrepiado caminho. Eu tinha desenhado a história que Stan me pedira, mas não podia continuar a fazê-lo por causa do meu emprego. É importante que se perceba que eu trabalhava diariamente 14 ou 15 horas na fábrica e que, madrugada adentro, tentava desenhar histórias aos quadradinhos. Era areia de mais para a minha camioneta. Era por isso que me recusava a trabalhar com prazos, pois sabia que dificilmente os cumpriria. Foi esse o motivo pelo qual, depois de ter desenhado a primeira história do Demolidor, disse a Stan que não poderia contar mais comigo."
   Não obstante, em meados de 1966, Bill Everett recomeçaria a trabalhar para a Marvel. Primeiro arte-finalizando os esboços de Jack Kirby nas histórias do Hulk publicadas em Tales to Astonish, e mais tarde emprestando o seu traço às aventuras do Doutor Estranho em Strange Tales. Graças a The Great Comics Book Heroes (obra antológica da autoria de Jules Feiffer, dada à estampa em 1965), a nova safra de leitores de quadradinhos pôde conhecer também o trabalho desenvolvido por Bill nas décadas anteriores.

*Perfil disponível em http://bdmarveldc.blogspot.pt/2012/03/eternos-steve-ditko.html

A última capa de Sub-Mariner desenhada por Bill Everett.
 
  A viver uma das mais prósperas fases da sua carreira, consta que, em finais de 1971, Bill Everett terá sido a primeira escolha de Stan Lee para assumir a arte de Tomb of Dracula, antologia de histórias de terror cujo número inaugural chegaria às bancas no ano seguinte.
  Certo é que por essa altura já Bill havia retomado a sua ligação ao Príncipe Submarino, cujas histórias produzia ora sozinho ora assessorado por terceiros. Seria, no entanto, traído pela sua saúde que, ao degradar-se de forma galopante, o impediria de dar continuidade ao magnífico trabalho que vinha desenvolvendo nas páginas de Sub-Mariner.
  Num derradeiro esforço, o criador de Namor tentaria ainda, no início de 1973, finalizar um crossover do monarca atlante com o Homem-Aranha a ser publicado num número de Marvel Team-Up. Acabaria, contudo, por se finar antes de o conseguir fazer. Tinha então 55 anos e sobreviveram-lhe a mulher e a filha.
  Num capricho do Destino, Bill Everett teve pois no Príncipe Submarino o seu alfa e o seu ómega, despedindo-se do mundo a trabalhar na personagem que o alcandorou ao Olimpo dos iconoclastas do século XX.

Bill Everett numa convenção de quadradinhos
 em abril de 1970, 3 anos antes da sua morte.

   
   

   
 
     

12 maio 2016

HERÓIS EM AÇÃO: NAMOR, O PRÍNCIPE SUBMARINO






   Soberano das profundezas oceânicas, a despeito da sua herança mestiça, nem sempre se relacionou de forma harmoniosa com os habitantes da superfície. Ocupa, ainda assim, lugar de destaque no arquivo museológico da 9ª arte por via do seu duplo estatuto de primeiro mutante e de um dos mais antigos super-heróis dos quadradinhos.

Nome original: Namor, The Sub-Mariner
Licenciadoras: Timely Comics (1939-49), Atlas Comics (1954-55) e Marvel Comics (desde 1962)
Criador: Bill Everett
Primeira aparição: Motion Picture Funnies Weekly nº1 (abril de 1939)
Identidade civil: Namor McKenzie
Local de nascimento: Atlântida
Espécie: Mutante híbrido de humano e atlante
Parentes conhecidos: Fen e Leonard McKenzie (pais biológicos falecidos), Tom e Gladys Smallwood (pais adotivos), Lawrence McKenzie (meio-irmão), Dorma (ex-esposa falecida), Marrina (esposa), Kamar (filho falecido), Namora e Namorita (primas). A este núcleo familiar acresce ainda uma longa linhagem, humana e atlante, de antepassados e descendentes do Príncipe Submarino.
Afiliação: Ex-membro do Esquadrão Vitorioso, dos Invasores, Vingadores, X-Men, Defensores, Illuminati, da Cabala e da Força Fénix
Base de operações: Nova Atlântida
Armas, poderes e habilidades: Por conta da sua singular herança genética, Namor é um espécime único tanto entre humanos como entre atlantes. Embora a maior parte dos seus poderes e habilidades derivem dessa mestiçagem, a sua capacidade de voar não pode ser explicada por essa condição. Motivo pelo qual ele é comummente designado como o primeiro mutante do Universo Marvel. Este é, porém, um título discutível, conforme fica demonstrado no tópico seguinte.
   Aquando da sua estreia nos quadradinhos no já longínquo ano de 1939, Namor foi descrito por Bill Everett (seu criador) como um ser anfíbio capaz de voar e detentor de uma força descomunal equivalente à de várias centenas de homens da superfície. Ou seja, uma gama de poderes muito mais restrita do que aquela de que dispõe atualmente. E que encolheu ainda mais  em 1954 quando, no âmbito de uma tentativa de reabilitação da personagem levada a cabo pela Atlas Comics (ver Histórico de publicação), o Príncipe Submarino foi espoliado das suas icónicas asas nos tornozelos e, por conseguinte, do seu poder de voo. Ambos lhe seriam, contudo, restituídos pouco tempo depois.
  No início dos anos 60 do século passado, Stan Lee e Jack Kirby revitalizaram Namor, concedendo-lhe no processo novos poderes e habilidades. Uma dessas novas habilidades consistia na sua recém-adquirida (e logo omitida) capacidade de mimetizar as características de algumas espécies marinhas. Inovação que não foi bem acolhida pelos leitores (porventura pela sua similitude com os poderes de Aquaman, seu émulo da DC), tendo sido exibida somente em duas histórias publicadas em Fantastic Four.

Um portento anfíbio.

   Não obstante, em qualquer uma das suas encarnações, Namor foi sempre descrito como possuidor de superforça (estima-se que poderá ultrapassar as 75 toneladas, o que faz dele uma das personagens mais pujantes do Universo Marvel), bem como de velocidade, resistência e agilidade sobre-humanas. Oscilando o nível dos seus poderes em função do seu contacto com a água. Quanto mais tempo o herói permanecer arredado do seu elemento natural, mais enfraquecido ficará.
 Outra das suas mais extraordinárias capacidades é a de comunicar telepaticamente com qualquer criatura marinha senciente (incluindo os seus súbditos atlantes e, especula-se, até mesmo com os humanos). Somando-se a isto uma panóplia de habilidades subsidiárias onde se incluem o seu biossonar, os seus sentidos amplificados, as suas propriedades regenerativas e a sua longevidade (a esperança média de vida de um atlante comum ronda os 120 anos).
  Em complemento a tudo isto, Namor porta muitas vezes o Tridente de Neptuno. Trata-se de um artefacto milenar forjado num metal místico que, entre outras coisas, permite ao seu usuário manipular a água em qualquer um dos seus estados e disparar poderosas rajadas energéticas.
   Em consequência da sua exigente formação como monarca da Atlântida, o Príncipe Submarino alia aos seus poderes a proficiência no combate corpo a corpo, a habilidade diplomática e uma superior cultura tática. Tal profusão de recursos faz de Namor um oponente de respeito, mesmo quando tem pela frente adversários de grande poder.

Namor versus Coisa: combate de pesos-pesados.

Mutante? Sim. O primeiro de todos? Discutível.

  Conforme ressalvei acima, apesar de Namor ser habitualmente referenciado como o primeiro mutante do Universo Marvel, esse estatuto é dúbio. Senão vejamos: no quesito editorial, em 1939 o Príncipe Submarino foi, efetivamente, a primeira personagem a ser descrita com características genéticas idênticas às dos Homo superior. Contudo, cronologicamente, a sua aparição foi precedida de um leque de outros mutantes. Alguns dos quais velhos de séculos, como é o caso de Apocalipse (que reclama para si o título de O Primeiro).
  O vilão nascido no Antigo Egito não é, porém, caso único na medida em que Wolverine terá, provavelmente, vindo ao mundo em finais do século XIX. Havendo ainda a registar nesta categoria de anciãos portadores do gene X Selene, mutante imortal que se afirma mais antiga do que o próprio Tempo (o que, a ser verdade, faria dela a primeira Homo superior da História).
   Outro aspeto a levar em consideração nesta análise está relacionado com a natureza híbrida de Namor. Convém lembrar que nas suas veias corre tanto sangue humano como atlante. Peculiaridade que o torna ímpar mesmo no seio da comunidade mutante.
   Nada indica, ademais, que o Príncipe Submarino traga atrelada a si uma história plurissecular desconhecida que, pelo menos do ponto de vista cronológico, o coloque no mesmo patamar de qualquer um dos exemplos supramencionados.

Ao trono da Atlântida, Namor soma
o (questionável) título de primeiro mutante.
    
Fraquezas: Ironicamente, decorrem também da fisiologia híbrida de Namor as suas principais fraquezas. Sobressaindo desde logo os efeitos nocivos, tanto a nível físico como psicológico, induzidos pelo desequilíbrio de oxigénio no seu organismo. Quando permanece demasiado tempo dentro de água ou fora dela, o Príncipe Submarino evidencia frequentemente sintomas de bipolaridade. Distúrbio mental que explica em larga medida as súbitas oscilações de humor e a irascibilidade que são a sua imagem de marca. Mas que podem ser prevenidas se o Filho Vingador encontrar o ponto de equilíbrio entre o tempo de permanência em ambas as atmosferas.
  É possível que a esta sua fraqueza esteja associada uma outra, ainda que tal nunca tinha sido devidamente comprovado: quando atingido em determinados pontos da cabeça, Namor sucumbe facilmente. Mesmo que a pancada tenha sido desferida por um humano munido de uma simples barra de ferro ou de qualquer outro objeto contundente. Facto desconcertante considerando que o monarca atlante já resistiu a violentos golpes aplicados na mesma parte do corpo pelo próprio Hulk.
   Por outro lado, a ambivalência moral de Namor  faz com que sejam tantos os que o veem como herói como os que o consideram um escroque (que o diga o Sr. Fantástico que no passado viu a esposa ter um tórrido affair com o Príncipe Submarino ), representando essa outra das suas fraquezas. Com efeito, devido ao seu caráter ambíguo, Namor nem sempre se assume como um aliado confiável aos olhos dos outros heróis.

O amor adúltero de Namor e Susan Richards.

Histórico de publicação: Namor, o Príncipe Submarino surgiu pela primeira vez em abril de 1939 no protótipo de Motion Picture Funnies Weekly, uma banda desenhada produzida pela Funnies Inc. e que estava previsto ser distribuída como brinde em alguns cinemas estadunidenses. Quando a iniciativa abortou devido à falta de financiamento, Bill Everett usou a personagem em Marvel Comics nº1, título entretanto lançado pela Timely Comics (predecessora da Marvel) e renomeado como Marvel Mistery Comics logo a partir do seu segundo número.
   Nas suas primeiras aparições, Namor agia como um inimigo dos EUA. Descrito assim por Les Daniels, um dos mais reputados historiadores da 9ª arte: "O Príncipe Submarino era uma aberração ao serviço do caos. Embora o seu modus operandi fosse o de um vilão, os leitores entreviam alguma justiça nas suas causas. Facto que os levava a perdoar a destruição em massa que ele causava de cada vez que entrava em cena."


Bill Everett (1917-1973) teve em Namor o seu maior êxito criativo.
Consta que, em todo o mundo, haverá apenas
 8 exemplares de Motion Picture Funnies Weekly nº1 (1939)

Namor debutou em Marvel Comics nº1 (1939) .

   A partir de julho de 1941 (e durante oito anos consecutivos), Namor dispôs do seu próprio título. Sub-Mariner Comics começou por ter uma periodicidade quadrimestral mas, em virtude da sua enorme popularidade junto do público, passaria a trimestral e, mais tarde, a bimestral.
   À semelhança da generalidade das personagens da Timely Comics, Namor foi votado ao ostracismo em consequência do declínio do género super-heroico após a II Guerra Mundial. Em 1946 assistiu-se ainda a uma tentativa de inverter essa situação,  através do lançamento de All-Winners Squad. Série mensal estrelada por um grupo de combatentes do crime que incluía, além do Príncipe Submarino, o Capitão América, o Tocha Humana original e um punhado de heróis da Idade do Ouro que assim tentavam emergir das brumas da memória.
   Mas o destino dessas personagens consideradas obsoletas estava traçado e, por um longo período de tempo, ficariam aprisionadas num limbo. Exceção feita ao breve parêntesis (1954-55) em que foram resgatadas pela Atlas Comics. Apesar das boas intenções da editora (que chegou a ressuscitar o título Sub-Mariner Comics), a adesão do público foi fraca e os heróis voltaram a ser colocados na prateleira. De onde seriam quase todos retirados nos primeiros anos da década de 1960, quando Stan Lee e Jack Kirby reinventaram o conceito de super-heróis.


Número inaugural do título solo do Príncipe Submarino (1941).


Heróis de outrora que o mundo teimava em esquecer

   No caso específico do Príncipe Submarino, a sua reentrada em cena ocorreu em 1962, nas páginas de Fantastic Four nº4 (datado de maio desse ano). Depois de ser encontrado pelo novo Tocha Humana a errar pelas ruas de Nova Iorque como um mendigo amnésico, Namor consegue recuperar a memória com a ajuda do benjamim do Quarteto Fantástico e rapidamente regressa à sua Atlântida natal. Encontrando-a devastada por testes nucleares subaquáticos, resolve fazer jus ao cognome de Filho Vingador  e declara guerra à humanidade. Impelido quer pelo seu desejo de vingança quer pela sua crise de identidade, Namor corresponde, nesta sua encarnação moderna, ao modelo de anti-herói.
   Apesar da sua sobranceria relativamente aos habitantes da superfície, durante esta fase o Príncipe Submarino era, em última análise, um pária. Estatuto contrariado, no dealbar da década de 1970, pela sua adesão aos Defensores (cujo elenco primitivo incluía ainda o Dr. Estranho, o Surfista Prateado e o Hulk); apenas o primeiro de vários coletivos heroicos de que o monarca atlante faria parte nos anos seguintes.
    Privado de um título próprio, o percurso editorial de Namor na década de 1980 foi marcado pela intermitência. Desse período há, no entanto, a destacar The Saga of the Sub-Mariner, minissérie em doze capítulos publicada entre 1988 e 1989 e  que serviu. essencialmente, para cortar algumas das pontas soltas na cronologia do herói.

Logo na estreia da sua versão moderna,
 Namor cobiçou mulher alheia

   Inicialmente escrita e ilustrada por John Byrne, em 1990 chegou às bancas norte-americanas a nova e aclamada série regular do Príncipe Submarino, intitulada Namor, The Sub-Mariner. Coincidindo o  seu declínio com a saída do autor canadiano e o subsequente corrupio de escritores e artistas. Malgrado essas vicissitudes, o título subsistiu durante cinco anos, ao longo dos quais foram lançados 62 volumes. Nessa fase, Namor vestiu a pele de um magnata engajado com a defesa do ambiente, particularmente dos ecossistemas marinhos ameaçados pela ação imprudente dos habitantes da superfície.

O regresso do Filho Vingador
pelas competentes mãos de John Byrne.

   Ainda que com alguns percalços de permeio (como o precoce cancelamento da sua nova série mensal em 2011), aos poucos o Príncipe Submarino tem vindo a recuperar o seu estatuto de figura cimeira do Universo Marvel. Para isso contribuiu, em primeiro lugar, a sua participação nos Illuminati, conclave de super-heróis que opera nos bastidores para influenciar alguns dos mais importante eventos mundiais. Por outro lado, na saga Avengers versus X-Men (2012), Namor teve papel de destaque ao ser um dos cinco hospedeiros da Força Fénix corrompidos pelo incomensurável poder da entidade cósmica. Foi, de resto, nessa condição que o soberano da Atlântida lançou um devastador ataque a Wakanda, lar do Pantera Negra.Facto que ditaria o acirrar do conflito em curso.
   Mesmo tendo estado do lado dos vencidos nesse confronto épico entre duas das mais poderosas equipas de super-heróis do mundo, Namor conservou o seu lugar entre os Illuminati que, no biénio 2013-2015, foram cabeças de cartaz na terceira série de The New Avengers.
   Em fevereiro deste ano, nas páginas de Squadron Supreme vol. 4 nº1,  Namor foi brutalmente assassinado por Hyperion, quando tentava vingar a destruição da Atlântida às mãos deste. Atendendo, contudo, à reversibilidade da morte nos quadradinhos, é deveras plausível um retorno do herói a breve trecho.

   
Namor posa com os restantes Illuminati. 

Origem: Meses antes da eclosão da II Guerra Mundial, um navio de exploração oceanográfica chamado "Oracle" navegava ao largo da Antártida. Para abrir caminho entre a enorme massa de gelo,os tripulantes fizeram detonar várias cargas explosivas no fundo do mar. Liderada pelo enigmático Paul Destino, a expedição procurava secretamente vestígios de uma antiga civilização.
  Acidentalmente, as cargas explosivas detonadas pela tripulação do "Oracle" causaram enormes prejuízos na Atlântida, uma cidadela subaquática que servia de lar a outra civilização lendária.
  Julgando tratar-se de um ataque ao seu povo, Thakorr, o imperador atlante, ordenou à sua filha, a princesa Fen, que fosse com um batalhão armado à superfície para descobrir a identidade dos seus pretensos agressores. Afoita, Fen resolveu contudo ir por conta própria. Ingerindo uma poção que lhe permitia respirar fora de água, subiu a bordo do "Oracle", deixando toda a tripulação inebriada com a sua estonteante beleza.
   Determinada em aprofundar a sua investigação, a princesa atlante decidiu permanecer a bordo da embarcação. A sua presença serviu para impedir novas detonações que fizessem perigar o seu povo. Entretanto, aprendeu também a língua e os costumes dos habitantes da superfície. Contando para isso com a ajuda de Leonard McKenzie, o comandante do "Oracle", por quem logo se enamoraria.
   Já depois de o casal ter trocado alianças a bordo do navio, McKenzie descobriu Lemúria, outra cidade submersa. Ele e Paul Destino mergulharam então nas profundezas para explorá-la. Porém, ao deparar-se com uma relíquia maligna chamada Capacete do Poder, Destino enlouqueceu e provocou a destruição da Atlântida. Centenas dos seus habitantes pereceram em consequência dessa calamidade.
   Horrorizado com o que testemunhara, McKenzie apressou-se a regressar ao "Oracle". Seria, todavia, gravemente ferido pelos soldados atlantes enviados pelo Imperador Thakorr, para resgatar Fen, que acreditava ter sido feita refém. A princesa, por sua vez, julgou que o marido não havia sobrevivido ao ataque perpetrado pelos seus compatriotas.
   Regressada à Atlântida - cuja reconstrução começara entretanto - Fen descobriu estar grávida. Meses depois nasceria Namor (nome que significa "Filho Vingador" no dialeto atlante), cuja pele rosada destoava da tez azulada dos demais atlantes. Muitos dos quais não viam com bons olhos a possibilidade de virem a ser governados por um mestiço.

Filho de dois mundos, Namor
 nunca se encaixou em nenhum deles.

  À medida que crescia, Namor foi vivendo rocambolescas aventuras submarinas (inclusive jogadas políticas com vista à tomada do poder), praticamente sem contacto com o mundo da superfície. Cujos habitantes ele desprezava profundamente, tanto devido à poluição marítima por eles causada como por conta das lendas atlantes que lhe iam sendo transmitidas e que, invariavelmente, diabolizavam os humanos.


Do fundo do mar para a ribalta.
 
   Nos primórdios da II Guerra Mundial, a Atlântida seria um dano colateral das encarniçadas batalhas navais entre os Aliados e as forças do Eixo. Enviado pelo seu avô em busca de vingança para o seu povo, Namor começou por atacar o coração de Nova Iorque. Sendo então confrontado pelo Tocha Humana original*. A rivalidade entre ambos tornar-se-ia, de resto, lendária. Só uma ameaça comum os obrigaria a porem de lado as suas diferenças. O que aconteceria quando, juntamente com o Capitão América, os dois formaram os Invasores** com o propósito de travar o avanço do Terceiro Reich.
  Despontava assim a longa e controversa carreira pública do Príncipe Submarino, marcada por  inúmeros triunfos e tormentos. Se é verdade que ele nem sempre esteve do lado certo da barricada, não é menos verdade que sempre se mostrou firme na luta pelas causas que abraçou, nomeadamente a defesa do povo atlante e da comunidade mutante.

* Criação de Carl Burgos, tal como Namor, a estreia do primeiro Tocha Humana remonta a 1939. Tratava-se de um androide com poderes incandescentes projetado por um cientista chamado Phineas Horton. Não confundir, portanto, com o Tocha Humana do Quarteto Fantástico, cujo nome serviu para homenagear o seu antepassado da Idade do Ouro.
** A origem e a lista de membros dos Invasores pode ser consultada em http://bdmarveldc.blogspot.pt/2015/02/herois-em-acao-invasores.html


Revisitação do duelo clássico entre
 Namor e o primeiro Tocha Humana.
     
Curiosidades: 

* O reino submerso que servia de lar a Namor foi pela primeira vez referenciado como sendo a lendária Atlântida aquando da revitalização operada por Stan Lee e Jack Kirby em 1962;
* Imperius Rex, o estridente grito de guerra que o Príncipe Submarino entoa nas suas batalhas, é uma expressão latina que significa "Rei do Império";
* Em meados dos anos 1970, Namor foi um dos heróis incluídos na coleção de selos lançada pela Marvel;
* Por contraponto aos outros antigos membros do Quinteto Fénix (os cinco hospedeiros da Força Fénix na saga Avengers versus X-Men), o Príncipe Submarino não teve os seus poderes afetados após a sua desvinculação da entidade cósmica.

A estampilha dedicada a Namor
 na coleção lançada pela Marvel nos anos 1970.

Noutros media: A despeito do seu impressionante lastro histórico nos quadradinhos, até à data, o Príncipe Submarino não conseguiu ainda exportar a sua influência para o panorama audiovisual.
  Ainda em meados dos anos 50 do século passado, foi equacionada a produção de uma série de ação real baseada no herói, mas o projeto acabaria por nunca se materializar. Cerca de duas décadas volvidas, outro projeto dessa natureza acabaria abortado por conta das suas semelhanças com The Man From Atlantis (série televisiva vagamente inspirada em Namor que, em terras lusas, foi titulada de O Homem da Atlântida e, no Brasil, de O Homem do Fundo do Mar).
  Mais recentemente, em 1997, os Estúdios Marvel encetaram contactos com o realizador Phillip Kaufman e com o argumentista Sam Hamm com vista à produção de uma longa-metragem estrelada pelo Príncipe Submarino. No entanto, em virtude de sucessivos adiamentos e constrangimentos, a sua estreia cinematográfica continua sem data marcada.

As várias versões animadas do Príncipe Submarino.

   Se no currículo mediático do Príncipe Submarino há um embaraçoso espaço em branco no que a produções de ação real diz respeito, o quadro é pouco mais animador em matéria de animação. À parte um segmento próprio de que dispôs em 1966 na série animada The Marvel Super-Heroes, contam-se pelos dedos de uma mão as participações (pouco relevantes) de Namor em séries alheias. E já lá vão dez anos desde que isso aconteceu pela última vez. Foi em 2006, num par de  episódios de Fantastic Four: World's Greatest Heroes. 
    É, pois, caso para dizer que, fora da BD, Namor se sente como peixe fora de água. E nem os seus poderes anfíbios lhe parecem valer de grande coisa.

Um herói septuagenário preparado
 para enfrentar os desafios dos nossos dias.

30 abril 2016

RETROSPETIVA: «O CORVO»



   Poucos acreditariam que uma produção de baixo orçamento e ensombrada pela morte do seu protagonista se tornaria um filme de culto. Menos ainda imaginariam que, volvidas mais de duas décadas, continuaria a ser considerada uma das melhores adaptações de uma BD ao cinema, sobre ela pairando até hoje uma densa aura de mistério.

Título original: The Crow
País: EUA
Ano: 1994
Género: Ação/Fantasia/Terror
Duração: 102 minutos
Produção: Dimension Films
Realização: Alex Proyas
Argumento: David J. Schow e John Shirley (com base na BD homónima da autoria de James O'Barr)
Distribuição: Miramax Films
Orçamento: 23 milhões de dólares
Receitas: 50,7 milhões de dólares
Elenco: Brandon Lee (Eric Draven/O Corvo), Michael Wincott (Top Dollar), Ernie Hudson (Sargento Albrecht), Rochelle Davis (Sarah), Bai Ling (Myca), Michael Massee (Funboy) David Patrick Kelly (T-Bird)

Vingança trazida nas asas de um anjo negro.

Enredo: Numa tétrica Noite das Bruxas em Detroit, o sargento-detetive Albrecht investiga a cena de um crime macabro. Horas antes, um jovem casal fora atacado no próprio apartamento por um bando de meliantes. Shelly Webster, a mulher, fora selvaticamente espancada antes de ser violada. Eric Draven, o seu noivo, sucumbira aos graves ferimentos que lhe haviam sido infligidos pelos atacantes quando tentava defendê-la. Os dois amantes, agora apartados pela tragédia, tencionavam casar-se no dia seguinte.
  Quando se prepara para acompanhar Shelly ao hospital, Albrecht é abordado por Sarah, uma menina que diz ser amiga do casal e que este tomava conta dela. De coração pesado, o detetive informa-a de que Shelly tem a vida presa por um fio.
   Um ano depois, na véspera de mais um Halloween, um corvo poisa no túmulo de Eric Draven e toca ao de leve com o bico na sua lápide. Regressado do Além, o defunto ergue-se da sua tumba e abandona o cemitério sob o olhar penetrante da ave.
   Longe dali, um bando de rufias chefiado por T-Bird ateia incêndios em vários pontos da cidade. De visita ao seu antigo lar, Eric fica melancólico ao deparar-se com o vazio do lugar. Fustigado por flashbacks, o jovem relembra o violento crime de que ele e a sua noiva foram vítimas na véspera do casamento de ambos. Vêm-lhe também à memória os nomes e os rostos dos seus algozes: T-Bird, Tin Tin, Funboy e Skank.
   Depois de descobrir que a sua amada está morta e que qualquer ferida sua cicatriza quase de imediato, Eric, guiado pelo corvo, parte em busca de vingança. Para dissimular a sua identidade, aplica uma sinistra maquilhagem no rosto.
   Tin Tin é o primeiro a ser caçado pelo Corvo que, depois de matá-lo, lhe fica com o casaco. Em seguida, o herói dirige-se à loja de penhores onde o patife havia vendido o anel de noivado de Shelly. Após reaver a joia, o Corvo faz explodir o estabelecimento, deixando contudo o seu proprietário vivo, para que possa avisar os restantes membros da quadrilha de que os seus dias estão contados.
  De seguida, o Corvo encontra Funboy num pardieiro imundo, enrolado com Darla, a mãe toxicómana da pequena Sarah. Depois de liquidar o rufia, o herói conversa com a mulher, fazendo-a compreender que, mais do que nunca, a filha precisa dela.

Mensagem escrita a fogo para os pecadores.
 
  Na próxima paragem do seu roteiro de vingança, o Corvo visita Albrecht, a quem revela a sua verdadeira identidade e a quem dá a conhecer a sua missão. O detetive conta-lhe o que sabe sobre a morte de Shelly, relatando com pesar as 30 horas de sofrimento excruciante a que a rapariga foi sujeita antes de finar-se. Ao tocar no seu interlocutor, o Corvo recebe dele a agonia que a sua amada experimentou durante o tempo que antecedeu a sua partida para o outro mundo. A transbordar de ódio, o herói retoma a sua caçada sangrenta.
  Graças à intervenção do Corvo, Sarah e a mãe, há muito desavindas, reaproximam-se uma da outra. No antigo apartamento de Eric e Shelly, a garota conversa com o herói, confessando-lhe a enorme saudade que sente de ambos. Comovido, o Corvo explica-lhe que, mesmo os dois não podendo continuar a ser amigos, ele será sempre o seu anjo da guarda.
  Mais tarde, no momento em que T-Bird e Skank param numa loja de conveniência para comprar alguns mantimentos, o primeiro é levado pelo Corvo. Atarantado pela súbita aparição daquela sinistra figura, Skank testemunha, transido de medo, a morte do comparsa às mãos do desconhecido. Correndo de seguida a avisar Top Dollar, um senhor do crime que controla todos os bandos de rua de Detroit. No entanto, ele e Myca (sua concubina e meia-irmã) já estão ao corrente das ações do Corvo devido aos diversos relatos que vêm chegando por parte de testemunhas oculares.

Top Dollar e Myca: irmanados no pecado.

  Na altura em que Top Dollar se encontra reunido com alguns dos seus associados para discutirem a planificação das suas atividades ilícitas, o Corvo irrompe na sala à procura de Skank. Do intenso tiroteio que se segue resulta a morte de quase todos os presentes. Enquanto Skank é executado a sangue-frio pelo herói, Myca, Top Dollar e Grange (seu lugar-tenente) conseguem escapar.
  Dando por terminada a sua cruzada no mundo dos vivos, Eric prepara-se para regressar ao túmulo. Sarah aparece no cemitério para se despedir dele, recebendo das mãos do herói o anel de noivado que em tempos fora de Shelly.
  Contudo, à saída do cemitério, Sarah é capturada por Grange, que a leva à força para a igreja onde Top Dollar e Myca os esperam. Através do corvo que o acompanha, Eric toma consciência do perigo que corre a sua pequena amiga e parte em auxílio dela.
   Chegados à igreja onde os malfeitores se acoitam, Eric e o corvo são por eles emboscados, acabando a ave abatida em pleno voo por um tiro certeiro de Grange. Facto de que resulta o enfraquecimento do herói. Myca, entretanto, procura reclamar para si o poder místico da ave moribunda. Alertado pelo intenso ruído no interior do templo, Albrecht adentra nele no preciso instante em que o Corvo é alvejado pelos marginais.

Olho por olho, dente por dente.
   Mesmo a esvair-se em sangue, o Corvo consegue matar Skank. Mas não consegue impedir que Top Dollar arraste Sarah para o campanário da igreja, ambos seguidos de perto por Myca. Que tem entretanto os seus olhos arrancados pelo corvo antes de despencar do alto da torre. Escapando por um triz a um disparo fatal, também Albrecht é ferido no fogo cruzado.
   Frente a frente com Top Dollar no campanário, o Corvo ouve-o confessar os seus crimes e admitir a sua responsabilidade pelo assassínio de Eric e Shelly. Na refrega que se segue, o Corvo repassa ao seu adversário as trinta horas de agonia experimentadas por Shelly antes de morrer. Incapaz de suportá-la, Top Dollar lança-se numa queda desamparada para a morte.
   À medida que a noite se aproxima do fim, Sarah e Albrecht recebem assistência hospitalar enquanto Eric e Shelly se reencontram no túmulo de ambos. Finalmente reunidos, os dois malogrados amantes poderão assim passar a eternidade juntos. Momento emocionante emoldurado pelas sentidas palavras de Sarah: "Se as pessoas que amamos nos são tiradas, a única maneira de as mantermos vivas é nunca parar de amá-las. Casas ardem, pessoas morrem, mas o amor verdadeiro é eterno."

Trailer:




Segredos e mistérios da produção:

   Registou-se uma invulgar série de incidentes ao longo da rodagem de O Corvo, projeto que, desde o primeiro dia, pareceu enguiçado. Em qualquer caso, e ainda que de uma forma enviesada, esses aspetos insólitos concorreram para o sucesso do filme, envolvendo-o numa aura de mistério e misticismo que perdura até aos dias de hoje.
  Aqui ficam algumas dessas notas curiosas, na expectativa de que as mesmas sirvam para verter alguma luz sobre os segredos desta produção indelevelmente marcada pela tragédia:

* Autor, em 1989, da BD homónima que esteve na base do filme, James O'Barr revelaria, anos depois, nos comentários da respetiva edição em DVD, que a ideia original dos produtores seria lançar um musical estrelado por Michael Jackson. Julgando tratar-se de uma brincadeira, o escritor desatou a rir às gargalhadas antes de perceber que os seus interlocutores falavam a sério. A reação de O'Barr é tanto mais compreensível atendendo ao facto que a história original fora escrita na sequência da morte da sua noiva causada por um condutor embriagado. Dado que reforça ainda mais a morbidez da narrativa;
*Apesar das escolhas de Alex Proyas para a direção e de Brandon Lee para o papel principal terem trazido idoneidade ao projeto, James O'Barr nunca escondeu a sua preferência por Johnny Depp para interpretar o Corvo. River Phoenix e Christian Slater também foram sondados para assumir a personagem mas declinaram;


Eric Draven
Criador e criação: James O'Barr (cima) e a BD The Crow (1989).

* De entre as várias alterações introduzidas pelos argumentistas à trama original, releva, desde logo, a omissão da toxicodependência de Eric e a sua mudança de ofício (de mecânico na BD passou a músico no cinema). Outra diferença significativa entre as duas histórias reside no facto de, no filme, o corvo ser uma ave real, em vez de uma simples projeção da psique do herói. Acrescendo a isto o facto de, por oposição à narrativa original, o animal ser retratado no filme como a fonte de poder do Corvo;
* A versão inicial do enredo não incluía a fatídica cena em que Funboy dispara sobre Eric quando este surpreende os malfeitores no seu apartamento. Tratou-se, com efeito, de uma alteração imposta à última hora pelo realizador sob a forma de um flashback. A cena em causa requeria a utilização de um revólver Magnum .44 carregado com munição real, embora sem pólvora. Isto porque a referida arma seria disparada em direção à câmara a uma curta distância. Aparentemente, alguém se esqueceu entretanto de substituir as balas por fulminantes e o pior aconteceu. Brandon Lee, que à data contava 28 anos de idade, foi mortalmente ferido pelo seu colega Michael Massee, servindo as filmagens como elemento de prova na investigação que se seguiu àquilo que ainda hoje muitos se questionam se terá sido um acidente ou um homicídio;

O Corvo marcou a estreia
 do australiano Alex Proyas atrás das câmaras.

*Antes da ocorrência dessa fatalidade, registou-se uma sucessão de incidentes que muitos encaram como maus presságios para o que estava por vir. Logo no primeiro de dia de filmagens, um carpinteiro sofreu queimaduras graves após a sua grua tocar em cabos elétricos. Nos dias seguintes, um camião de apoio pegou fogo sem razão aparente, um escultor frustrado espatifou o seu carro contra a oficina onde produzia adereços em gesso e um membro do staff perfurou acidentalmente uma mão com uma chave de parafusos. Episódios insólitos a que poderá não ter sido alheio o consumo desenfreado de cocaína no set. Mas que, até hoje, muitos veem como sinais de que o filme estaria amaldiçoado;
*Traumatizado pelo facto de ter sido ele a disparar a pistola que tirou a vida a Brandon Lee, Michael Massee sentiu necessidade de tirar um ano sabático para se recompor. Apesar disso, em 2005 (doze anos decorridos sobre o incidente) admitiu, em entrevista, ter ainda pesadelos com o sucedido;
*Segundo a biografia de Bruce Lee, o lendário ator e mestre de artes marciais previra a morte do filho depois de despertar do seu coma, muitos anos antes de Brandon sequer pensar em seguir uma carreira ligada ao cinema. Este, por seu turno, desenvolvera um bizarro fascínio pela morte pouco tempo antes do arranque das filmagens. Que o levou, entre outras coisas, a visitar túmulos de celebridades;

Tal como o pai 20 anos antes,
 a morte de Brandon Lee tornou-o uma lenda.
*Em virtude dos constrangimentos orçamentais, foram impostos muitos cortes à produção. Alguns elementos do staff afirmaram mesmo que a ideia era produzir um filme de 30 milhões de dólares usando apenas 18 milhões. Com esse objetivo em vista, a rodagem do filme teve lugar numa pequena cidade da Carolina do Norte, escapando dessa forma às reivindicações salariais e de outra ordem que previsivelmente seriam feitas pela mão-de-obra sindicalizada de Hollywood. Igualmente devido à falta de verba para filmar uma perseguição de carros em ação real, a produção recorreu a miniaturas;
*Embora sem qualquer relação com as supramencionadas restrições orçamentais, importa referir que nenhuma das aves usadas nas filmagens era um corvo, mas sim gralhas-pretas. Apesar de aparentadas, as duas espécies corvídeas diferem em algumas características: além do seu menor porte comparativamente com os corvos, as gralhas-pretas são animais diurnos. Circunstância que obrigou o respetivo tratador a treiná-las para se adaptarem às filmagens noturnas;
*Na sequência da morte de Brandon Lee, a Paramount Pictures, responsável pelo financiamento do projeto, criou a Entertainment Media Investment Corporation, empresa de fachada que serviu exclusivamente para adquirir os direitos do filme e completá-lo com recurso a efeitos digitais e a duplos para rodar as cenas do malogrado ator;
* É voz corrente em Hollywood que o incidente que vitimou o filho de Bruce Lee terá servido de móbil à revisão do protocolo de segurança aplicável ao emprego de armas em filmagens. Mais que não seja, o infortúnio do ator terá servido para prevenir a repetição de situações idênticas.

Morreu o homem, ficou o mito.

Sequelas: 

  Sob o título The Crow: City of Angels, em 1996 chegou às salas de cinema internacionais uma sequela dirigida por Tim Pope e com Vicente Pérez como cabeça de cartaz. Arrasada pela crítica e pelo público, as suas receitas de  bilheteira ficaram muito aquém do desejado. Facto que motivou a resolução tomada pelos produtores de futuros capítulos da franquia serem lançados diretamente no circuito de vídeo.
  Série de ação real produzida por um canal televisivo canadiano, The Crow: Stairway to Heaven foi para o ar em 1998, com o ator Mark Dacascos a fazer as vezes de Brandon Lee. Dois anos depois, estrearia The Crow: Salvation. O elenco desta terceira longa-metragem (e a primeira a não ter direito a passagem pelo grande ecrã) era encabeçado por Eric Mabius, nele pontificando também Kirsten Dunst. Vagamente inspirada na novela The Lazarus Heart (escrita por Poppy Z Brite em 1998), a película recebeu avaliações díspares.
   Agora com Edward Furlong como protagonista, em 2005 foi produzido um quarto filme de saga. Ao contrário do seu antecessor, The Crow: Whicked Prayer mereceu antestreia cinematográfica antes de ser lançado no mercado de vídeo. Mas, como as demais sequências do filme original, não convenceu os espectadores, sendo mesmo considerado o pior capítulo da série.
  Provisoriamente intitulado The Crow: 2037, um pretenso reboot dirigido por Rob Zombie chegou a ser planeado nos finais da década de 1990, mas o projeto nunca chegaria a ver a luz do dia.

Cartaz promocional de uma
 das sequelas fracassadas de O Corvo.

Veredito: 72%

  Amor e vingança são ingredientes essenciais para uma fórmula de sucesso. Proposição aplicável a qualquer produto cultural, seja ele literário, musical ou cinematográfico. Sendo O Corvo uma magnífica síntese destes três géneros, à qual estes dois pungentes sentimentos humanos servem de força motriz.
  Mais romântico do que morrer por amor, só mesmo voltar da morte para vingar a morte da pessoa amada. É, pois, essa a pedra de toque da trama de um filme que, contra todas as expectativas, se tornou um fenómeno de culto.
  Evocando a extravagância neogótica das duas longas-metragens do Batman dirigidas por Tim Burton, a estética de O Corvo submerge o espectador numa atmosfera deliciosamente opressiva onde, para prevalecer, o herói tem de ser mais desapiedado do que os maus da fita.
  Por conta dessa ambiência e da banda sonora que a emoldura, tem-se a espaços a sensação de se estar a assistir a um teledisco de uma qualquer banda de death metal. Também o registo violento que infunde o enredo serve para disfarçar alguns dos pontos fracos da película, especificamente a caracterização superficial que é feita das personagens. Ficando, por isso, a dúvida se, caso o enfoque tivesse recaído sobre as suas idiossincrasias, o êxito desta produção teria sido igual.
   Êxito para qual, de forma macabra, muito contribuiu o mistério em redor da morte de Brandon Lee. Apesar da cena em que o filho de Bruce Lee perdeu a vida não ter sido incluída na versão final da película, é inevitável detetar o melancólico subtexto intrínseco à sua representação. Sobretudo no que às suas prédicas sobre morte e vingança diz respeito.
  Ironia assinalável é, pois, o facto de o derradeiro trabalho do ator ter sido não só aquele que inscreveu o seu nome nos anais da História de 7ª arte, mas também o melhor da sua medíocre filmografia. Circunstância que leva muita gente a perspetivar O Corvo não como a soberba homenagem ao cinema noir que é, mas tão-só como o filme em que Brandon Lee foi desta para melhor. Abordagem que, de tão redutora, se torna ultrajante a uma película que desafiou convenções e que ainda hoje serve de referência a outras produções do género, tanto no quesito visual como narrativo.
  Mesmo a esta distância, O Corvo continua a ser um filme à frente do seu tempo, fazendo dele um precursor do hiper-realismo que atualmente caracteriza a generalidade das adaptações de bandas desenhadas ao grande ecrã.
   
Certos papéis são passaportes para a Eternidade...