01 abril 2023

RETROSPETIVA: «X-MEN 2»


  Com a histeria antimutante ao rubro, um militar extremista põe em marcha o seu plano genocida para purificar a Humanidade. Perfila-se o espectro de uma guerra racial e, em nome da sobrevivência, os Filhos do Átomo formam uma frente unida contra o mundo que os teme e odeia. Será a paz uma miragem?

Título original: X2: X-Men United 
Ano: 2003
País: Estados Unidos da América
Duração:  134 minutos
Género: Drama / Ação / Super-heróis
Produção: The 20th Century Fox, Marvel Enterprises, The Donner's Company e Bad Hat Harry Productions
Realização: Bryan Singer
Argumento: Zak Penn, David Hayter e Bryan Singer
Distribuição: 20th Century Fox
Elenco: Patrick Stewart (Professor Charles Xavier); Hugh Jackman (Logan/Wolverine); Halle Berry (Ororo Munroe/Tempestade); Ian MacKellen (Eric Lehnsherr/Magneto); Famke Janssen (Jean Grey); James Marsden (Scott Summers/Ciclope); Brian Cox (Coronel William Stryker); Alan Cumming (Kurt Wagner/Noturno); Anna Paquin (Marie/Vampira); Rebecca Romijn (Raven Darkholme/Mística);Shawn Ashmore (Bobby Drake/Homem de Gelo); Aaron Stanford (John Allerdyce/Pyro); Bruce Davison (Senador Robert Kelly); Kelly Hu (Yuriko Oyama/ Lady Letal)
Orçamento: 125 milhões de dólares
Receitas globais: 407,7 milhões de dólares

Anatomia de uma sequela superior

O sucesso financeiro e as críticas positivas de X-Men convenceram a 20th Century Fox a avançar de imediato com uma sequência, quase duplicando-lhe o orçamento. Seguindo o velho mantra desportivo de que em equipa ganhadora não se mexe, tanto o realizador como o elenco tiveram os seus contratos prolongados (e, em alguns casos, melhorados).
Logo a partir de novembro de 2000, coincidindo com o lançamento de X-Men em VHS e DVD, Bryan Singer começou a pesquisar várias sagas emblemáticas dos Filhos do Átomo com vista a uma adaptação. Singer desejava apresentar a perspetiva humana relativamente ao fenómeno mutante, o tipo de raiva e temor que alimenta agendas extremistas. Nenhum dos inimigos clássicos dos X-Men, correspondia, contudo, ao perfil do antagonista que o realizador tinha em mente.
Ao mesmo tempo que David Hayter e Zak Penn eram contratados para escrever argumentos separados, o produtor Avi Arad anunciou novembro de 2002 como data prevista para a chegada do novo filme aos cinemas. Singer, por seu turno, estava inclinado a adaptar a saga da Fénix Negra. Sentindo que o universo da franquia não estava ainda suficientemente estabelecido para elevá-la ao patamar cósmico, Penn dissuadiu Singer dessa intenção. Sugerindo, em alternativa, God Loves, Man Kills (Deus Ama, o Homem Mata), também ela assinada por Chris Claremont. Ao constatar que o reverendo Stryker era exatamente o tipo de vilão que procurava, Singer avalizou a escolha.
O rascunho inicial do enredo combinava elementos retirados dos argumentos de Hayter e Penn. Anjo, Fera e Sapo surgiam na história, mas foram excluídos devido ao excessivo número de personagens mutantes. Assim como os Sentinelas e a Sala do Perigo, embora neste caso por razões orçamentais.

Arte conceptual não utilizada da Sala do Perigo.

Depois de Halle Berry ter arrecadado o Óscar de Melhor Atriz pelo seu desempenho em Monster's Ball (2001), Dan Harris e Michael Dougherty foram contratados para reescrever o argumento, a fim de conceder mais tempo de ecrã a Tempestade. 
Embora menos tumultuosa do que a do primeiro filme, a rodagem de X-Men 2 ficou novamente marcada pelo comportamento errático de Bryan Singer. Um dos episódios mais graves aconteceu quando Tom DeSanto, produtor-executivo e cocriador da franquia, encontrou o realizador e vários dos seus assistentes sob forte influência de narcóticos. Receando pela segurança dos atores, DeSanto ordenou a imediata suspensão das filmagens, o que espoletou uma violenta altercação com Singer. Segundo alguns relatos, os dois homens chegaram quase a vias de facto.
Ignorando os avisos de DeSanto, Singer resolveu prosseguir com os trabalhos, filmando uma cena em que Wolverine executava uma perigosa acrobacia numa das asas do Pássaro Negro. Como a cena em questão estava programada para o dia seguinte, o duplo de Hugh Jackman estava ausente do set, e foi o próprio ator a interpretá-la, acabando por sofrer ferimentos leves.
Liderado por Halle Berry, o restante elenco, ainda fantasiado, confrontou Bryan Singer. No calor da azeda discussão que se seguiu, o realizador ameaçou dispensar Berry ou qualquer um que abordasse em público a sua dependência de substâncias. Os ânimos só serenaram quando DeSanto voltou a intervir, apelando ao profissionalismo de todos.

A recém-oscarizada Halle Berry liderou a revolta contra Bryan Singer.

Com início a 17 de junho de 2002, em Vancouver, as filmagens terminaram cinco meses depois, obrigando ao adiamento da estreia para o ano seguinte. Foram usados mais de 67 cenários em 38 localizações diferentes, algumas das quais se revelaram problemáticas. Durante as gravações em Kananaskis, na província canadiana de Alberta, por exemplo, a produção foi surpreendida pela escassez de neve naquela época do ano. A solução passou então pelo uso de neve falsa.
As filmagens já iam a meio quando Bryan Singer informou Famke Janssen que Jean Grey sacrificaria a própria vida no final da história, mas que seria ressuscitada no terceiro capítulo da saga. Ideia bem acolhida pela atriz neerlandesa, que chegara a filmar uma cena alternativa em que Jean ficava temporariamente cega em resultado do seu confronto com Ciclope no Lago Alkali.
À antestreia londrina duas semanas antes, seguiu-se, a 2 de maio de 2003, a estreia simultânea de X-Men 2 em 3741 salas de cinema nos EUA e Canadá. Antes mesmo de começar a faturar, o filme garantiu assim entrada direta para o Livro Guiness dos Recordes com o maior lançamento de sempre. A esta proeza juntou-se uma outra: X-Men 2 foi um dos primeiros cinco filmes a ultrapassar os 200 milhões de dólares em receitas de bilheteira.
Bem recebido pela crítica, X-Men 2 foi indicado para múltiplos prémios, tendo conquistado o Saturn Award para melhor filme de ficção científica, além de uma menção honrosa atribuída pela Political Film Society, nas categorias de Direitos Humanos e Paz. 


Enredo

A Casa Branca é espetacularmente invadida por um mutante teleportador de aparência demoníaca. Acantonado na Sala Oval, o Presidente dos EUA é salvo no último instante por um agente do Serviço Secreto. Antes de desaparecer em pleno ar, o misterioso atacante deixa uma faca cravada com uma mensagem: "Liberdade mutante agora!".
Num ápice, o incidente desperta a histeria antimutante e o impulso farisaico dos extremistas. Enquanto a imprensa exercita a gramático do medo, um pouco por todo o país irrompem protestos a exigir medidas drásticas para conter a ameaça à segurança nacional. No Congresso, um coro de vozes exaltadas defende a Lei de Registo dos Mutantes. O espectro de uma guerra racial insinua-se no horizonte carregado de nuvens negras.

O ataque de Noturno à Casa Branca acicatou o sentimento antimutante.

Alheio a tudo isto, Wolverine explora uma instalação militar abandonada próxima de uma barragem, no Lago Alkali. Procura pistas que o ajudem a decifrar o intrincado mistério que obscurece o seu passado, mas encontra apenas um labirinto de corredores povoados por fantasmas.
Durante uma visita de estudo a um museu organizada pelo Instituto Xavier, a Ciclope não passa despercebida a falta de concentração de Jean Grey. Esta justifica-a com os sonhos perturbadores que a vêm atormentando, e com a crescente dificuldade em controlar os seus poderes telepáticos.
Numa esplanada ali perto, Pyro reage violentamente às provocações de um grupo de arruaceiros. Quando a situação está prestes a escalar, todos os circunstantes humanos ficam subitamente petrificados como estátuas. Depois de repreender os seus pupilos e apagar o incidente da memória das testemunhas, o Professor X dá a visita por terminada.
Na Casa Branca, o coronel William Stryker, um ex-cientista militar com uma agenda secreta, convence o Presidente de que o Instituto Xavier alberga um centro de treino para terroristas mutantes. Apesar das objeções levantadas pelo senador Kelly (na verdade, Mística disfarçada), o Presidente autoriza uma rusga à escola.
Mais tarde, Stryker visita Magneto na  prisão de plástico que ele próprio projetou. Sob o efeito de uma substância injetável, o Mestre do Magnetismo fornece informação detalhada sobre o funcionamento de Cérebro, o supercomputador instalado no Instituto Xavier.

O coronel Stryker lidera a contraofensiva humana.

De regresso à mansão Xavier, Wolverine, frustrado pelo fracasso da sua sua viagem ao Canadá, pede ao Professor X que lhe leia a mente. O mentor dos X-Men tem, no entanto, assuntos mais prementes a tratar. Com a ajuda de Cérebro, consegue rastrear o mutante que quase assassinou o Presidente. Tempestade e Jean Grey seguem para Boston a bordo do Pássaro Negro, com a missão de interrogar Noturno.
Suspeitando do envolvimento de Magneto no ataque à Casa Branca, o Professor X, acompanhado por Ciclope, visita o seu velho amigo na prisão. Ao ler os pensamentos de Eric, Xavier descobre que Stryker lhe conseguiu extorquir informações sensíveis para propósitos nefastos. De súbito, a cela é inundada de gás soporífero enquanto, no exterior, Ciclope é derrubado por Lady Letal, a guarda-costas mutante de Stryker.
Em Boston, Tempestade e Jean Grey encontram Noturno numa igreja abandonada. Vencida a desconfiança inicial do mutante assustado, ele confessa chamar-se Kurt Wagner e ter sido coagido por Stryker a atacar o Presidente.
Pela calada da noite, um grupo de operações especiais comandado pelo coronel Stryker toma de assalto o Instituto Xavier. Graças à pronta reação de Wolverine e Homem de Gelo, a maior parte dos alunos consegue escapar pelos túneis subterrâneos, mas um punhado deles acaba capturado.
Numa erupção de selvageria, Wolverine massacra sem piedade dezenas de soldados. Em meio ao banho de sangue, depara-se com um rosto estranhamente familiar. Igualmente perplexo, Stryker admite ser aquele o último lugar onde esperava encontrar Logan. Wolverine pressente que Stryker é a chave para abrir o seu baú de memórias reprimidas, mas o diálogo entre ambos é bruscamente interrompido pelo Homem de Gelo.

Wolverine cede ao seu instinto assassino.

Enquanto Stryker e os seus homens invadem a sala onde repousa Cérebro, Wolverine, Homem de Gelo, Pyro e Vampira encetam uma fuga alucinada no bólide desportivo de Ciclope. Em Boston, o grupo faz uma pequena paragem em casa dos pais de Bobby Drake enquanto procuram estabelecer contacto com Tempestade e Jean Grey. Perante o assombro dos pais e a repugnância do irmão, Bobby revela ser um mutante e a verdadeira função do Instituto Xavier para Jovens Sobredotados.
Longe dali, Mística faz-se passar por Lady Letal para obter acesso ao sistema informático de Stryker. Além de informação detalhada sobre a prisão de Magneto, a mutante das mil caras encontra também esquemas para a construção de uma réplica de Cérebro. Intuindo a ameaça, Mística engendra um plano para libertar o Mestre do Magnetismo.
Ao preparem-se para voltar à estrada, Wolverine e seus companheiros de viagem são surpreendidos pela polícia no jardim fronteiro da casa da família Drake. Durante a breve escaramuça que se segue, Tempestade e Jean Grey chegam ao local no Pássaro Negro e resgatam rapidamente os seus aliados. 
Nos céus, o Pássaro Negro é intercetado e alvejado por dois caças da Força Aérea Americana. Em voo picado em direção ao solo, a aeronave tem a sua queda fatal amparada por um campo magnético gerado por Magneto.
Embora a contragosto, os X-Men unem-se a Magneto e Mística para resgatar o Professor X e travar o plano genocida de Stryker. Em nome da sobrevivência da sua espécie, os Filhos do Átomo formam, pela primeira vez, uma frente unida contra o mundo que, mais do que nunca, os teme e odeia.
Após ler a mente de Noturno, Jean Grey descobre que a base secreta de Stryker fica situada sob a barragem no Lago Alkali. Magneto revela também que Stryker foi o cientista que infundiu o esqueleto de Wolverine com adamantium.

Mística e Magneto unem-se aos pupilos do Professor X.

No seu covil subterrâneo, Stryker usa o próprio filho - Jason, um mutante capaz de projetar poderosas ilusões - para controlar a mente do Professor X. Seguindo as instruções de Stryker, Xavier programa a réplica de Cérebro para localizar e exterminar todos os mutantes da Terra.
Disfarçada de Wolverine, Mística infiltra-se na base e franqueia a entrada aos X-Men e Magneto. Ao mesmo tempo que Mística tenta libertar o Professor X, Jean Grey enfrenta um ainda hipnotizado Ciclope. A refrega do casal liberta Ciclope dos efeitos da droga, mas também causa danos estruturais na barragem, cujas paredes começam a rachar.
Depois de derrotar Lady Letal num arrepiante duelo de garras metálicas, Wolverine encontra Stryker no laboratório onde foi submetido a experiências científicas desumanas. Stryker implora pela vida prometendo contar tudo o que sabe acerca do passado de Logan, mas este limita-se a deixá-lo para morrer.
Tempestade e Noturno resgatam os alunos enquanto Mística e Magneto encontram o Professor X na sala do novo Cérebro. Assumindo a forma de uma menina, Mística, instruída por Magneto, usa o filho de Stryker para convencer Xavier a encontrar e matar todos os humanos.

O Professor X é usado como instrumento de destruição de duas espécies.

Magneto e Mística abandonam rapidamente o local no helicóptero de Stryker, levando a bordo um inesperado passageiro: Pyro trocou os X-Men pela Irmandade de Mutantes.
Com a barragem a ameaçar ruir a qualquer instante, Noturno teleporta-se com Tempestade para a sala do novo Cérebro. Ato contínuo, a Rainha dos Ventos gera uma nevasca que desconcentra Jason, libertando dessa forma Xavier do seu controlo mental.
Os X-Men embarcam no Pássaro Negro, mas os motores do avião, danificados pelo ataque dos caças, não funcionam. Entretanto, a barragem colapsou e a enorme massa de água engole tudo à sua passagem. Perante o desastre iminente, Jean sai do Pássaro Negro e cria um campo de força telecinético para suster o avanço da água, ao mesmo tempo que reativa os motores da aeronave. Contudo, o esforço é insuportável e, para horror dos seus amigos, Jean é engolida pelas águas e desaparece sem deixar vestígio.

O sacrifício final de Jean Grey salva a vida dos X-Men.

No dia seguinte, quando se prepara para fazer uma comunicação ao país, o Presidente dos EUA tem o seu discurso interrompido pela inesperada visita dos X-Men. Depois de lhe entregar as provas que incriminam Stryker, o Professor X deixa um sério aviso: ou humanos e mutantes trabalham juntos na construção da paz, ou haverá uma guerra de que nenhuma das espécies sairá vencedora.
No Instituto Xavier reina ainda um clima de profunda consternação pela morte de Jean Grey. Apesar do esforço para regressar à normalidade, o heroico sacrifício de Jean perdurará na memória de todos. 
A milhares de quilómetros de distância, a figura difusa de um pássaro forma-se na superfície espelhada do Lago Alkali... 

Trailer

Curiosidades

*Principal fonte e esteio do enredo, a aclamada graphic novel God Loves, Man Kills foi lançada em 1982, mas só adquiriu estatuto canónico após a sua adaptação ao cinema. Na história original, saída da pena de Chris Claremont, William Stryker é um televangelista cristão (assumidamente inspirado no pastor e ativista ultraconservador Jerry Falwell) que considera os mutantes criaturas satânicas. Acolitado pelos Purificadores, uma milícia armada composta pelos seus seguidores mais fanáticos, Stryker lidera uma feroz cruzada antimutante a nível nacional. Tal como no filme, o monge do ódio constrói uma réplica de Cérebro e sequestra o Professor X, com o intuito de usar os seus poderes psíquicos para exterminar todos os mutantes. Confrontados com essa ameaça existencial, os X-Men estabelecem uma aliança temporária com Magneto, ao lado do qual travam uma desesperada luta pela sobrevivência da espécie Homo Superior. Desagradado com as muitas alterações introduzidas pelos argumentistas, Chris Claremont considera o filme uma má adaptação da sua obra;

A saga foi apresentada aos leitores lusófonos em 1988,
 no número inaugural da coleção Graphic Novel lançada pela Abril.

*Na base da transformação de William Stryker num cientista militar terá estado, muito provavelmente, a preocupação dos produtores de evitar controvérsias religiosas suscetíveis de originar boicotes ao filme. A versão cinematográfica de Stryker combina, de resto, elementos de dois outros inimigos jurados dos mutantes: Professor Andre Thorton (o sádico mentor do programa Arma X) e Henry Peter Gyrich (um austero agente federal). Uma vez que ambos usam óculos na banda desenhada, foi esse o acessório escolhido por Bryan Singer para referenciá-los esteticamente na caracterização de Stryker;
*Homossexual e ativista LGBT, Ian McKellen trabalhou afincadamente com os argumentistas para que a cena em que Bobby Drake revela à família a sua condição de mutante invocasse a tantas vezes traumática "saída do armário". Coincidência ou consequência, em 2015 a Marvel reviu a orientação sexual do Homem de Gelo. Após décadas de relações amorosas com mulheres, a personagem é agora assumidamente gay;
*Tyler Mane foi convidado a repetir o papel de Dentes-de-Sabre, agora atuando como guarda-costas do Coronel Stryker. Na banda desenhada, essa função é ocupada por uma mulher chamada Anne Reynolds. Depois de discutirem a hipótese de usar Reynolds dotando-a de poderes equivalentes aos de Lady Letal, os argumentistas decidiram-se pela própria. Em resposta às críticas pela falta de ação no filme anterior, Lady Letal recebeu cenas de luta mais longas do que o inicialmente programado; 

Lady Letal tem, tal como Wolverine, garras de adamantium e um fator de cura.

*Foram escritos 27 rascunhos da trama. Num deles, mais próximo da história original, Magneto salvava o Professor X e ajudava na fuga dos seus pupilos após a destruição da réplica do Cérebro. A cena foi no entanto alterada a pedido de Bryan Singer, que preferiu realçar a natureza implacável do Mestre do Magnetismo, quando este, ao invés, recalibra a máquina para exterminar todos os humanos. Foi também essa a forma encontrada pelo realizador de conceder maior protagonismo a Tempestade e Noturno no clímax do filme;
*A cadeira de rodas personalizada usada pelo Professor X em X-Men (2000) foi comprada por um advogado associado do representante legal de Patrick Stewart. Com a produção em marcha avançada, o estúdio percebeu que já não dispunha desse importantíssimo adereço, e não teve outro remédio se não alugá-lo ao referido causídico, a troco de uma quantia substancial nunca revelada;
*Construído num antigo armazém da Sears, em tempos idos a maior cadeia de distribuição do mundo, o covil subterrâneo do Coronel Stryker ocupava apenas metade da área disponível. Ainda assim, durante as filmagens o elenco e o staff usavam bicicletas para percorrer a grande distância entre os cenários e os lavabos;
*As pessoas "congeladas" pelo Professor X no museu e na Casa Branca foram interpretadas por mimos profissionais. A produção entendeu que eles seriam uma escolha mais adequada para as cenas em questão do que simples figurantes;
*A fuga de Magneto de uma cela de plástico transparente é uma homenagem a O Silêncio dos Inocentes (1991), um dos filmes preferidos de Bryan Singer. Brian Cox, por sua vez, interpretara Hannibal Lecter em Caçada ao Amanhecer (1986), tendo sido esse o motivo da sua escolha para o papel de William Stryker;

Singer fez de Magneto  o Hannibal Lecter da franquia mutante.

*Alan Cumming detestou a experiência de ser dirigido por Bryan Singer, atribuindo ao abuso de substâncias por parte do realizador o ambiente tóxico instalado no set.  O assédio moral de que o ator foi constantemente alvo no decurso das filmagens agravou a sua compulsão alimentar, resultando num aumento de peso que lhe prejudicou a saúde. Revoltado com a inércia do estúdio face aos desmandos de Singer, Cumming recusou repetir o papel de Noturno em X-Men 3: O Confronto Final (2006). Ironicamente, Cumming fora uma escolha pessoal de Singer, devido à sua fluência em alemão;
*Quando Tempestade e Jean Grey adentram a igreja à procura de Noturno, esta última veste um blusão com um pássaro flamejante estampado nas costas. Trata-se de uma óbvia referência à Fénix, a entidade cósmica que nas histórias clássicas dos X-Men escolheu Jean como sua hospedeira, e cujos poderes se foram subtilmente insinuando ao longo do filme;
*De visita ao set, a irmã de Hugh Jackman concordou em pregar uma partida a Bryan Singer. Usando o figurino completo de Wolverine, interpretou uma das cenas do irmão sem que o realizador desse pela diferença. De acordo com um assistente de Singer, este ter-se-á limitado a comentar distraidamente que Jackman estava a agir de forma algo estranha naquele dia;
*A cena final na Mansão Xavier foi gravada no Shepperton Studios, em Londres, simplesmente porque Hugh Jackman estava a filmar Van Helsing (2004) na capital britânica, tendo-lhe sido concedida uma autorização especial para se ausentar apenas por um dia. Uma vez que a caracterização do caçador de vampiros exigia que Jackman usasse o cabelo comprido, o ator teve de usar uma peruca para interpretar Wolverine. É por esse motivo que o cabelo de Logan parece mais alto do que o normal nessa cena.


Veredito: 78%

Na aurora do novo milénio, X-Men cumpriu com louvor a sua espinhosa missão de reabilitar os super-heróis no cinema. A fórmula de sucesso da película passou por apresentar personagens interessantes e propor discussões que permanecem atuais à luz da proliferação de microcausas identitárias. Tal como na banda desenhada, os mutantes foram metáforas perfeitas para os problemas e dilemas das minorias sociais que se sentem oprimidas.
Novamente sob a batuta de Bryan Singer, X-Men 2 assumiu-se como uma produção mais ambiciosa, alcançando um feito raro entre as sequelas: ser superior ao original. Singer é, de resto, um daqueles cineastas que recusa seguir os preceitos de um típico blockbuster estival. Dispondo de um orçamento bem mais generoso do que no primeiro filme, resistiu à tentação de investir nos efeitos especiais, servindo uma trama requentada.
Salta, de facto, à vista a preocupação de Singer em corrigir os principais defeitos apontados a X-Men, desde logo a falta de grandiosidade. Mas não só. Também as cenas de ação evoluíram para um nível satisfatório, capaz de atrair o espectador casual ávido de uma simples diversão. A cena de abertura, protagonizada por Noturno, é, sem margem para dúvidas, uma das melhores de toda a franquia.
Contudo, X-Men 2 vai muito além de um mero exercício escapista. Ao percorrer novamente uma linha de cumeada por uma amplitude de temas - do preconceito à discriminação, passando pelo radicalismo - , Singer aprofunda o debate aberto no primeiro filme sobre a aceitação das diferenças em sociedades, ironicamente, cada vez mais heterogéneas.

O grande número de personagens foi um dos maiores desafios da produção.

A maior virtude de X-Men 2 será, porventura, tratar com o devido respeito o material-fonte. O filme consegue, com assinalável competência, cerzir elementos distintos de mais de 40 anos de aventuras publicadas dos Filhos do Átomo. Independentemente do momento cronológico a que pertencem nos comics, personagens e situações são transplantados com sucesso para uma trama coesa permeada pela influência de algumas das obras capitais dos X-Men.
Outro dos méritos de Singer reside na gestão eficiente de um conjunto tão lato e diversificado de personagens. Todas elas desempenham, em algum momento da trama, uma função relevante. Mesmo Ciclope, cujo reduzido tempo de ecrã acaba por ser compensado pela dramática cena no Lago Alkali.
Graças a uma alternância equilibrada entre diálogos inteligentes e cenas de luta empolgantes, a ação do filme transcorre fluida. A trama deixa deliberadamente pontas soltas para uma continuação, seduzindo o espectador com uma agradável expectativa.
O resultado final é brilhante, na medida em que a filosofia crítica e as representações simbólicas de ativismos identitários em nada prejudicam o apelo comercial da película. Uma aula prática para os argumentistas atuais de filmes de super-heróis.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre X-Men, Wolverine, Magneto, Mística, Chris Claremont e A Saga da Fénix Negra disponíveis para leitura complementar.



 





 

14 fevereiro 2023

CLÁSSICO DA 9ª ARTE: «MORTE EM FAMÍLIA»


  35 anos atrás, uma inédita (e polémica) iniciativa interativa da DC selou o trágico destino do Menino-Prodígio. Impotente para salvar o seu fiel escudeiro da malquerença dos fãs, o Cavaleiro das Trevas, de coração contrito, é assombrado até hoje pelo espectro do seu maior fracasso.

Título original: A Death in the Family
Editora: DC
País: Estados Unidos da América
Data de publicação: agosto a novembro de 1988
Títulos abrangidos: Batman #426-429
Argumento: Jim Starlin
Arte: Jim Aparo e Mike Mignola (capas)
Protagonistas: Batman, Robin e Joker
Cenários: Gotham City, Líbano, Etiópia, Nova Iorque
Edições em português: Em novembro de 1989, precisamente um ano após o lançamento da saga original, a Abril brasileira editou a sua primeira versão em português tropical. Sob o título a Morte de Robin, os quatro capítulos da história foram compilados em DC Especial nº1. A Abril foi, de resto, a única editora que não privilegiou a tradução literal do título em inglês. Todas as reedições posteriores, sob a chancela alternada da Panini e da Eaglemoss, foram tituladas Morte em Família
A despeito da sua grada importância na continuidade do Cavaleiro das Trevas, Morte em Família, à semelhança de tantas outras obras capitais da Editora das Lendas, segue inédita em terras lusitanas.


A primeira edição em português da saga foi lançada pela Abril em 1989,
ano em que se celebrou o cinquentenário do Batman.


Chamada para a morte

Pajem adolescente do Cavaleiro das Trevas na sua obstinada cruzada contra o crime, Robin foi apresentado aos leitores em abril de 1940, no 38º número de Detective Comics. Vestia então a fantasia de cores garridas Dick Grayson, um pequeno órfão adotado por Bruce Wayne. Criação conjunta de Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson, o Menino-Prodígio foi introduzido para aumentar o apelo das histórias do Batman junto do público infantil.
A fórmula resultou e, até ao início dos anos 1980, Robin foi a metade jovial do Duo Dinâmico. Por aqueles dias liderava também os Novos Titãs, saindo aos poucos da sombra do seu mentor. Perante esta evolução, fez-se necessário arranjar-lhe um substituto.
Jason Todd fez a sua primeira aparição em Batman #357 (março de 1983), nas vésperas de Dick Grayson renunciar às suas funções de adjunto do Homem-Morcego, para a assumir a identidade de Asa Noturna. Com a bênção do antecessor, Jason herdou então o manto de Robin.
Na sua versão original, a história de Jason Todd era tirada a papel químico da de Dick Grayson. Como este, Jason era filho de acrobatas circenses, tendo sido perfilhado por Bruce Wayne após o assassinato dos seus pais.
No entendimento da DC, manter o status quo era o mais importante. O Duo Dinâmico tinha de continuar a existir. Mesmo que o novo Robin fosse apenas uma cópia barata do original. Com efeito, o diferencial entre as duas personagens resumia-se à cor do cabelo (Jason era louro natural). 
Sem surpresa, aos olhos de muitos fãs Jason era um usurpador, ainda por cima sem metade do carisma do legítimo titular do cargo. Por mais que Jason se esforçasse, Dick Grayson sairia sempre vencedor daquele jogo de espelhos geracional.

Jason Todd era originalmente louro.

Tudo mudou após a Crise nas Infinitas Terras. Como tantas outras personagens da DC, Jason Todd teve a sua origem recontada na nova continuidade. Em Batman #408 (junho de 1987), foi reintroduzido como um menino de rua que cometia pequenos furtos para sobreviver e que, vez por outra, gostava de fumar um cigarro. Bruce Wayne tentou reabilitá-lo depois de Batman ter surpreendido o rapaz enquanto roubava os pneus do Batmóvel estacionado num beco esconso.
O novo Jason Todd provou-se, contudo, ainda mais impopular do que o original. A sua têmpera rebelde e impulsiva irritava solenemente os leitores, mas não só. Também Jim Starlin, o novo escritor das histórias do Batman, não escondia a sua aversão pela personagem, evitando usá-la sempre que possível.
Cientes de que Jason Todd era um problema que precisava ser resolvido, as equipas criativas do Batman começaram a discutir nova reformulação. Starlin, ao invés, defendia abertamente a morte de Jason Todd. Numa surdina cada vez mais ruidosa, outras vozes se lhe juntaram.
Aproveitando a preparação de uma edição especial destinada a sensibilizar os leitores para a prevenção do VIH/SIDA, Starlin, já com as mortes do Capitão Marvel e de Adam Warlock no currículo, sugeriu que Jason Todd sucumbisse ao vírus. Embora rejeitada, a proposta teve o condão de quebrar definitivamente o tabu em redor de uma possível eliminação do mal-amado Menino-Prodígio.

Jim Starlin tinha em Jason Todd um dos seus ódios de estimação.

Durante uma reunião com a Presidente da DC, Dennis O'Neill, à época editor do Batman, propôs que o destino de Jason Todd fosse decidido pelos leitores através de uma votação telefónica. Ideia inspirada naquele que tinha sido um exemplo pioneiro de televisão interativa. Em 1982, durante um episódio do Saturday Night Live, Eddie Murphy convidara os espectadores a decidirem se ele devia ferver uma lagosta viva ou poupar o pobre crustáceo. Para isso, teriam apenas de ligar para um dos dois números de valor acrescentado disponibilizados para o efeito. O meio milhão de chamadas recebidas excedeu todas as expectativas e, no final, a lagosta foi poupada. 
Intrigada, a Presidente da DC deu luz verde a O'Neill. Que, por sua vez, incumbiu Jim Starlin, recém-contratado à Marvel, de criar uma história com dois finais diferentes: um em que Robin sobrevivia, outro em que morria. Quanto ao potencial algoz do Menino-Prodígio, o Joker prefigurou-se como a escolha natural para todos. Mais a mais porque também fora o Palhaço do Crime a assassinar Jason Todd em The Dark Knight Returns (O Regresso do Cavaleiro das Trevas).
Importa ter presente que, até então,  a única iniciativa interativa da DC se tinha resumido a permitir que os leitores escolhessem o líder da Legião dos Super-Heróis. Por comparação com o que estaria em jogo na votação telefónica, era uma minudência.

Eddie Murphy anuncia a votação final no programa que inspirou Dennis O'Neill.

Ainda sem uma clara noção do alcance da saga, os leitores esgotaram os seus dois primeiros capítulos, publicados em Batman #426 e Batman #427. Este último terminava com o Homem-Morcego a carregar o corpo ensanguentado do Menino-Prodígio para fora do armazém que o Joker mandara pelos ares. Ao lado, um anúncio de página inteira rezava assim: "Robin irá morrer porque o Joker quer vingança, mas podes evitá-lo com um telefonema". 
A 15 de setembro de 1988, os dois números de telefone, com um custo associado de 50 cêntimos, foram ativados durante 35 horas. Enquanto a votação decorria, Dennis O'Neill, com os nervos à flor da pele, ia, de hora a hora, verificando a evolução dos resultados. Apesar de ter votado pela sobrevivência de Robin, O'Neill temia que muitos leitores votassem em sentido oposto apenas para ver se a DC respeitaria o veredito fatal.
No total, foram recebidos 10641 votos, 5343 dos quais favoráveis à morte do Menino-Prodígio - apenas mais 72 do que os contabilizados em prol da sua sobrevivência. De tão tangencial, esta diferença alimentou suspeitas de que os resultados poderiam ter sido falseados. Embora tal nunca tenha sido comprovado, circularam rumores de que um advogado californiano teria programado o seu computador para discar o número fatídico a cada poucos minutos.

A vida do Menino-Prodígio foi jogada numa votação telefónica.


Teorias conspiratórias à parte, a morte de Jason Todd dividiu os fãs. Foram tantos os que a celebraram como os que a lamentaram. Meses depois do lançamento do capítulo final da saga, as secções de correspondência das revistas do Batman continuavam em ebulição. Dennis O'Neill recebeu dezenas de telefonemas de fãs furiosos, mas também de avós lacrimosas, sem saberem o que dizer aos netos que idolatravam o Menino-Prodígio.
A exemplo do que, anos depois, sucederia com a morte do Super-Homem, o trágico fim de Robin teve grande ressonância mediática. A Reuters e o USA Today foram dois dos órgãos de comunicação social que lhe deram ampla cobertura. A generalidade dos relatos omitiam, porém, que Jason Todd não era o Menino-Prodígio original.
Apesar da polémica aguerrida que a envolveu (ou, mais provavelmente, por causa dela), A Death in the Family foi o maior best-seller de 1988. Numa verdadeira corrida contra o tempo, a DC conseguiu lançar o respetivo volume encadernado a tempo do Natal desse ano, impulsionando ainda mais as vendas. 
No ano seguinte, o Cavaleiro das Trevas comemoraria o seu cinquentenário sem a presença do seu fiel escudeiro. Uma ausência de peso lamentada por muitos fãs do Duo Dinâmico.

O maior (e mais controverso) best-seller de 1988.


Laços de sangue

O Duo Dinâmico vive um momento conturbado. A relação entre Batman e o seu imberbe parceiro vem azedando por causa das ações cada mais mais imprudentes de Robin. O ponto de rutura ocorre quando, durante uma operação de vigilância a uma perigosa quadrilha, o impetuoso Menino-Prodígio avança sozinho. Agastado com a indisciplina do seu pupilo, o Homem-Morcego decide tomar medidas drásticas: Jason Todd é dispensado das suas funções de Robin.
Em conversa com Alfred, Bruce Wayne atribui a crescente instabilidade emocional de Jason ao facto de ele não ter ainda superado a morte dos pais. Apesar de se recusar a discutir o assunto, Jason visita o bairro onde cresceu, numa zona degradada de Gotham. De passagem pela sua antiga morada, uma vizinha entrega-lhe uma caixa com alguns pertences do pai.
Entre fotografias e documentos, Jason encontra a sua certidão de nascimento. Ao examiná-la constata que o nome da mãe, embora esborratado, tem um S - e não um C, como em Catherine Todd - como letra inicial. Ultrapassado o choque, Jason conclui que Catherine era afinal sua madrasta, e não a mulher que o trouxera ao mundo. Um segredo familiar que o pai levara para o túmulo.
Após voltar a vasculhar a papelada, Jason encontra a agenda de contactos do pai. Nela figuram três mulheres cujos nomes começam por S. Decide então investigar a identidade e paradeiro de cada uma delas com a ajuda do Batcomputador.

A imprudência de Robin levava-o a correr riscos desnecessários. 

Enquanto isso, o Joker consegue escapar, uma vez mais, do Asilo Arkham, deixando para trás uma pilha de cadáveres. Batman fica mortificado ao descobrir que o seu némesis obteve um míssil nuclear e que planeia vendê-la a terroristas do Médio Oriente.
Na Batcaverna, Jason recorre a técnicas forenses para localizar as candidatas a sua mãe biológica. Todas elas se encontram, no entanto, fora dos EUA. Duas vivem atualmente no Líbano, a terceira na Etiópia. Animado pelo desejo de reatar os últimos laços de sangue que lhe restam, Jason foge da Mansão Wayne para embarcar numa demanda que o levará ao outro lado do mundo.
Recém-chegado ao Líbano, Jason reencontra Bruce Wayne, em missão secreta para impedir que um grupo terrorista local use a bomba nuclear do Joker para destruir Tel Aviv. Assim reunido por um acaso do destino, o Duo Dinâmico consegue gorar esse diabólico plano.
Sharmin Rosen, uma agente da Mossad destacada no Líbano, é a primeira candidata interrogada por Jason. Contudo, ela nega ter alguma vez estado em Gotham City.
Perante o desalento de Jason, Bruce concorda em ajudá-lo a entrar em contacto com a segunda candidata. Por coincidência, uma velha conhecida do Batman: a mercenária Lady Shiva. Mas também ela, sob o efeito do soro da verdade, confirma não ser a mulher que procuram. A resposta para o enigma materno poderá estar a um continente de distância.
Na Etiópia, Jason encontra finalmente a sua mãe: Sheila Haywood, uma médica a prestar serviço humanitário naquele país do Corno de África. Apesar do reencontro emotivo, Sheila esconde segredos sórdidos e está a ser secretamente chantageada pelo Joker. O Palhaço do Crime descobrira que ela deixara Gotham depois de ter realizado abortos clandestinos que resultaram na morte de uma jovem. Em troca do seu silêncio, o vilão exigiu que Sheila lhe entregasse todos os suprimentos médicos armazenados pela sua ONG. A ideia era vender parte do material no mercado negro e substituir o restante pelo seu mortífero gás hilariante.
Sheila vinha também desviando verbas da agência e, ao descobrir que Jason é Robin, não hesita em entregar o próprio filho ao Joker, para ter os seus crimes acobertados. A traição materna foi ainda mais dolorosa do que a orgia de violência que se seguiu. 

O emotivo reencontro de Jason Todd com a mãe.

Entre risadas maníacas, o Palhaço do Crime espanca brutalmente o Menino-Prodígio com um pé-de-cabra, deixando-o inanimado numa poça de sangue. Em seguida, tranca-o juntamente com a mãe no interior de um armazém e aciona uma bomba-relógio. A vida do Menino-Prodígio acaba de entrar em contagem decrescente. 
Ao recobrar a consciência, Jason luta desesperadamente para soltar a mãe. Percebendo que não conseguirá fazê-lo a tempo, lança-se sobre a bomba, amortecendo com o corpo o impacto da explosão.
Horas mais tarde, Batman depara-se com os corpos estropiados de Jason e Sheila entre os escombros fumegantes do armazém. Jogando uma cartada fatal, Joker acrescentou o assassinato do Menino-Prodígio ao seu baralho de atrocidades.

A brutal vingança do Palhaço do Crime.

Traumatizado pela morte do seu protegido, Bruce Wayne leva os restos mortais de Jason para Gotham. Além de Alfred, ao funeral comparecem apenas o Comissário Gordon e a sua filha Barbara. O Cavaleiro das Trevas culpa-se pelo cruel destino do seu pajem e volta a ser o guardião solitário de Gotham, cuja noite amortalha o seu sofrimento.
Entretanto, Joker é nomeado embaixador do Irão nas Nações Unidas pelo próprio aiatolá Khomeini. Dias depois, chega a Nova Iorque para participar na Assembleia Geral da ONU. À entrada do edifício, Bruce Wayne é interpelado pelo Super-Homem. Enviado pelo Departamento de Estado americano, o Homem de Aço consegue, a custo, demover o seu velho amigo de atentar contra a vida de um alto dignitário estrangeiro, prevenindo um grave incidente diplomático.
Graças aos seus contactos de alto nível, Bruce obtém no entanto o estatuto de observador não-oficial que lhe garante acesso à Assembleia Geral. Durante o seu discurso perante os delegados, Joker acusa o mundo de tratar o regime iraniano como uma ameaça quase tão grande como ele próprio. De súbito, o vilão tenta libertar o seu gás tóxico, mas é impedido pelo Super-Homem, que a tudo assistia disfarçado de segurança.
Com Batman no seu encalço, Joker tem um helicóptero à sua espera. Enquanto ambos lutam a bordo do aparelho, um dos sequazes do Palhaço do Crime dispara uma rajada de metralhadora, atingindo mortalmente o piloto. O helicóptero despenca, desgovernado, em direção ao rio Hudson, mas Batman é salvo pelo Homem de Aço. Apesar dos esforços deste, o corpo do Joker não é encontrado.
Pesaroso, Batman lamenta que todos os confrontos com o seu arqui-inimigo terminem sem uma solução definitiva. Nunca antes se sentira, porém, tão tentado a ultrapassar a linha vermelha que o separa do Palhaço do Crime.

Dobre a finados pelo Menino-Prodígio.


Apontamentos

*Foi Dick Grayson quem, na origem pré-Crise de Jason Todd publicada em Detective Comics #526 (1983), se prontificou a adotá-lo depois de os pais do rapaz terem sido assassinados pelo Crocodilo. Apesar de Bruce Wayne ter chamado a si essa responsabilidade, é interessante imaginar quão diferente teria sido a vida de Jason se tivesse sido perfilhado pelo Robin original;
*Jason Todd tinha apenas 13 anos quando herdou o manto de Robin. O que significa que terá acolitado o Batman  por quase três anos, uma vez que foi assassinado nas vésperas de completar o seu 16º aniversário;
*Em sinal de respeito pelo seu antecessor, quando Jason Todd ocupou a  vaga de parceiro do Batman, considerou usar um nome diferente de Robin. Ás Voador (Flying Ace), Gaio Azul (Blue Jay), Cardeal (Cardinal) e Rapaz Dinamite (Kid Dynamite) foram algumas das alternativas sugeridas;
*O detetive Harvey Bullock reparou que o novo Robin era mais baixo e mais imaturo do que o original. Quando partilhou as suas suspeitas com o Comissário Gordon, este confirmou que as diferenças também não lhe tinham passado despercebidas. Nenhum deles se atreveu no entanto a interpelar Batman sobre o assunto;
*De todos os Robins, Jason Todd continua a ser o favorito do Joker. Não só porque foi o único que ele conseguiu matar, mas também porque a sua atitude sarcástica divertia genuinamente o Palhaço do Crime;
*Na Batcaverna existe um pequeno memorial dedicado a Jason Todd, cujo antigo uniforme se encontra permanentemente exposto numa cabina de vidro. Para o Batman, representa um doloroso lembrete do seu maior fracasso; para os outros Robins, um aviso para os perigos da função;

O memorial de Jason Todd na Batcaverna.

*A interação entre Batman e Joker nesta história sugere fortemente a possibilidade de o vilão conhecer a verdadeira identidade do herói. Referindo-se ao assassinato de Robin, o Palhaço do Crime diz que "até um louco pode somar dois mais dois". Ainda no mesmo diálogo, Batman refere-se ao seu parceiro como Jason, sendo do conhecimento público que era esse também o nome do pupilo de Bruce Wayne;
*Num arrepiante mau presságio, os três últimos dígitos do número de telefone que recebia os votos favoráveis à morte de Robin eram 666. Na Bíblia Sagrada, esse número representa a Besta que encarna o Mal e trará consigo o fim dos tempos;
*A apenas 15 minutos do encerramento da votação telefónica, a sobrevivência do Menino-Prodígio parecia assegurada por uma vantagem de 38 chamadas. Surpreendentemente, esse resultado seria repentinamente invertido, adensando assim as suspeitas de que o processo poderá ter sido de algum modo adulterado;
*Devido às suas representações estereotipadas dos muçulmanos, A Death in the Family foi acusada de cristalizar a islamofobia. Algumas das críticas mais contundentes partiram do ensaísta americano Jack Shaheen que, num estudo de 1991 intitulado Jack Shaheen versus the Comic Book Arab, se insurgiu contra a confusão entre terroristas, muçulmanos e fanáticos religiosos. O autor aponta também uma série de equívocos relacionados com a cultura do Médio Oriente. Desde logo a veste tradicional árabe usada pelo Joker enquanto embaixador do Irão, apesar de este não ser um país árabe. Shaheen considera que estas e outras gafes denunciam uma confrangedora ignorância por parte dos autores da saga;

Joker usa a roupa errada.

*O apreciável sucesso comercial de A Death in the Family não impediu que Jim Starlin fosse descartado pouco tempo após o lançamento do seu capítulo final. O departamento de licenciamento da DC ficou furioso com a morte de Robin por causa da enorme quantidade de merchandising com a imagem do Menino-Prodígio que ficaria encalhada. Regressado à Marvel, Starlin escreveu a saga cósmica Infinity Gauntlet (Desafio Infinito) que, ironicamente, ressuscitou outra personagem que ele havia matado: Adam Warlock;
*Até 2005, ano da sua ressurreição na saga Under the Hood (Sob o Capuz), Jason Todd integrou o restrito lote de personagens dos comics cujas mortes não foram revertidas. Nessa sua nova iteração, Jason, tomando emprestado o nome original do Joker, criou a persona Capuz Vermelho e passou a agir como um vigilante sanguinário. Continua. no entanto, a ser mais famoso por ter sido o único Menino-Prodígio morto em ação;
*Apesar de controversa, A Death in the Family figura entre as melhores histórias do Batman selecionadas por diferentes plataformas de entretenimento. No Top 10 da Newsarama, por exemplo, surge classificada em 5º lugar;
*Já anteriormente referenciada no filme Batman versus Superman: The Dawn of Justice e na segunda temporada de Titans, em 2020 a morte de Jason Todd deu origem à animação Batman: Death in the Family. Num exercício de interatividade inspirado na votação telefónica dos anos 80, ao espectador foi oferecida a possibilidade de escolher diferentes desfechos para a trama, acompanhando em seguida as ramificações de cada um desses cenários hipotéticos.;
*Por muitos anos, a versão alternativa de Batman #428 na qual Jason Todd sobrevivia permaneceu guardada nos arquivos da DC, em Burbank, Califórnia. Em março de 2020, o boletim online DC Daily divulgou finalmente essas páginas inéditas desenhadas por Jim Aparo.

O que aconteceria se Jason Todd não tivesse morrido?



Vale a pena ler?

Jason Todd estava condenado desde o início. De pálida imitação de Dick Grayson a delinquente juvenil, o segundo Robin nunca caiu nas boas graças dos leitores - que, legitimamente, questionavam o discernimento do Batman ao escolhê-lo para seu parceiro. A julgar pela maneira como lhe foram deformando a personalidade, os argumentistas também não morreriam de amores por ele.
A atitude insolente de Jason, o seu constante desvio do rigoroso código moral do Batman e as inevitáveis comparações com Dick Grayson foram criando cada vez mais anticorpos relativamente à personagem. Quando a DC, qual Pôncio Pilatos, colocou o destino do mal-amado Menino-Prodígio nas mãos dos fãs, foi como distribuir convites para um linchamento popular.
Historicamente, é fácil perceber a opção de dar aos leitores o poder de influenciarem ativamente o curso de uma narrativa tão importante. À época, a opinião pública americana ainda digeria uma sucessão de escândalos - coroada pelo caso Irão-Contras - que tinham exposto as fraquezas e contradições da política externa dos EUA.
Ao longo de toda a década de 1980, a cultura pop americana foi, pois, contaminada por um cinismo paranoico potenciado pela Guerra Fria. Obras como Watchmen e O Regresso do Cavaleiro das Trevas são exemplos pontuais dessa tendência, que perduraria até à viragem do século. Por sua vez, Morte em Família reflete inadvertidamente a desastrada abordagem feita pela Administração Reagan às complexas problemáticas do Médio Oriente. Aquelas que, nesta história, Jim Starlin reduz a uma caricatura baseada em equívocos e estereótipos. 
À ausência de nuances geopolíticas soma-se a crueldade do espetáculo montado a propósito do lançamento da saga. Anunciada como um grande evento, a morte de um mancebo de 15 anos foi orquestrada com um nível de visceralidade inaudito e sob os efeitos de um atroz eclipse moral.
A imagem do Joker a espancar alegremente Robin com um pé-de-cabra ficou para sempre esculpida no subconsciente coletivo. Mesmo passados 35 anos, as repercussões da saga são sentidas de cada vez que alguma das grandes editoras anuncia, com meses de antecedência, o fim de uma personagem importante. Morte em Família não teve apenas impacto nas histórias do Batman, mas em toda a indústria dos comics.
É, pois, de lamentar que os elementos mais controversos de Morte em Família tenham dominado a discussão acerca do seu enredo. Porque, em essência, trata-se de uma comovente tragédia familiar que realça os erros cruciais no relacionamento entre um pai e o seu filho adotivo. Chega a ser angustiante testemunhar o reforço da ligação emocional entre ambos, sabendo que a mesma não perdurará. Um suspiro de profundidade para uma trama que parece desenrolar-se ao acaso.
Com efeito, a desnecessária reviravolta que faz do Joker embaixador do Irão só contribui para o desgaste do arco, que poderia encerrar-se sem esse elemento absurdo - mesmo para os padrões do Palhaço do Crime. Ainda que aceitável, o desejo de vingança de Bruce Wayne nunca seria maior do que a dor resultante daquela que, depois da morte dos pais, foi a sua maior perda.  A morte de Jason Todd criou mais uma fissura no espírito fragilizado do Batman, evidenciando contornos sombrios que sempre estiveram presentes no herói
Vista com distanciamento, Morte em Família é um épico falhado. Tinha tudo para ser uma grande história, mas falta-lhe o nível adequado de dramatismo e suspense. Mesmo que o desenlace resulte da escolha do público, o argumento de Jim Starlin denota a inexistência de estudo prévio das consequências dos acontecimentos. Tanto a curto prazo, nas histórias subsequentes à morte do Menino-Prodígio, como a longo prazo, num futuro em que o surgimento de um terceiro Robin era expectável. Como um todo, o arco enferma de incoerência, como se minutos após a divulgação do resultado da votação telefónica que decidiu o destino de Jason Todd, a história completa se tivesse materializado nas bancas.
Sobra a sempre competente arte de Jim Aparo que, como é seu apanágio, se esmerou na representação das personagens e a transmitir clareza e dinamismo à narrativa visual. Igualmente dignas de nota são as capas desenhadas por Mike Mignola para as edições originais, cuja composição, rica em sombras, inspira uma crescente sensação de pavor e incerteza lúgubre.

Jason Todd: bad boy ou bode expiatório?


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da língua portuguesa.
*Artigos sobre Robin, Joker, Jim Aparo e Dennis O'Neill disponíveis para leitura complementar.














23 dezembro 2022

ETERNOS: CARMINE INFANTINO (1925-2013)


  Artista fundamental da Idade de Prata, delineou os contornos dessa nova era de esplendor dos super-heróis revividos pelo seu lápis. Ao leme da DC conjugou grandes talentos e tomou medidas controversas que lhe deslustraram o legado.

Lançada em outubro de 1956, Showcase #4 apresentou a reconfiguração moderna do Flash e assinalou o início da chamada Idade de Prata dos comics. A capa dessa edição histórica mostrava o Velocista Escarlate a sair, em passo de corrida, de uma tira de filme a preto e branco. O simbolismo da imagem era óbvio: anunciava-se o advento de uma nova geração de super-heróis. Mais dinâmica, otimista e de olhos postos no futuro.
Tanto a icónica capa como o belíssimo uniforme do novo Flash foram concebidos por Carmine Infantino, artista idiossincrático cujo traço suave e design inteligente ajudaram a definir o estilo visual de toda uma época.
A despeito de ter (re)criado personagens extremamente populares e de ser figura incontornável na história da 9ª Arte, o nome de Carmine Infantino pouco diz aos fãs atuais de super-heróis catequizados pelas megaproduções dos Estúdios Marvel ou pelas séries da CW. Foi, contudo, do lápis de Infantino que saiu a arquitetura da Idade de Prata, existindo um enlace entre o seu extraordinário percurso profissional e a história da DC. Ao serviço da qual viveu os seus momentos de maior glória mas, também, de maior controvérsia. O que só comprova que por detrás de cada lenda existe sempre um ser humano imperfeito que importa conhecer melhor.

Em 1956, Flash foi o arauto de uma nova era.

Carmine Michael Infantino nasceu a 24 de maio de 1925, no modesto apartamento que os seus pais, um casal de ascendência italiana, ocupavam no bairro nova-iorquino do Brooklyn. O seu pai, Pasquale "Patrick" Infantino, era violinista profissional antes de a Grande Depressão o obrigar a reinventar-se como canalizador. Apenas um dos muitos sacrifícios que fez para garantir o sustento da família. Carmine cresceu, por isso, a admirar o homem que lhe deu vida e o impediu de tomar decisões imprudentes.
Como tantas outras crianças daquela época de provações, o pequeno Carmine começou a trabalhar demasiado cedo. Aos 6 anos de idade já engraxava sapatos na rua com o avô materno; aos 10 levantava-se ainda de madrugada para fazer entregas com o tio, dono de uma mercearia. Biscates que reforçavam o magro orçamento familiar e que, de quando em vez, lhe permitiam comprar uma revista de banda desenhada.
Nos pouco tempos livres, Carmine gostava de ler a tira de Dick Tracy. Foi com ela que tomou o gosto pelo desenho e, sempre que podia, rabiscava figuras e edifícios. Sonhava ser arquiteto e foi animado por esse desejo que, na entrada para a puberdade, se matriculou na School of Industrial Arts (posteriormente renomeada High School of Art and Design), em Manhattan. Fizesse chuva ou fizesse sol, Carmine atravessava  a cidade a pé para assistir às aulas. Acompanhava-o nessa romaria diária Frank Giacoia, seu amigo de infância e  seu primeiro parceiro criativo.
Entre a escola e os biscates, Carmine passava o resto do tempo a tentar encontrar pessoas que trabalhassem nas histórias aos quadradinhos que tanto o fascinavam. Aos 15 anos, fez amizade com Charles Flanders, artista da tira Lone Ranger. Por sugestão de Flanders, Carmine tentou a sua sorte no estúdio de Harry "A" Chesler, um dos muitos que, desde a viragem da década de 30, providenciavam material às editoras que se aventuravam no emergente mercado dos comics.
Apesar da sua fama de velhaco, Harry Chesler revelou-se deveras atencioso com Carmine. Em vez de simplesmente despachar o jovem diletante, prontificou-se a pagar-lhe um dólar por dia para que ele aprendesse a desenhar com os profissionais do seu estúdio. Ao longo de todo o verão, Carmine aproveitou aquela espécie de estágio remunerado para aprender diferentes técnicas de ilustração e composição.
Demasiado jovens para cumprirem o serviço militar, Carmine Infantino e Frank Giacoia conseguiram o seu primeiro trabalho nos quadradinhos em 1942. Nesse ano, o primeiro passou a tinta os esboços do segundo para uma história de Jack Frost publicada em USA Comics #3, um dos títulos com maior tiragem da Timely. Joe Simon, o editor-chefe, ficou impressionado com o resultado final e ofereceu emprego aos dois amigos. Mas apenas um pôde agarrar aquela grande oportunidade.

Carmine Infantino teve o seu primeiro trabalho profissional
 publicado em USA Comics #3 (1942)

Enquanto Frank deixou a escola para começar a trabalhar na Timely, Carmine, então com 16 anos, foi impedido pelo pai de seguir as pisadas do amigo. Apesar das dificuldades económicas, agravadas pelo nascimento de um segundo filho, Patrick Infantino manteve-se irredutível na sua decisão. Para ele, a educação vinha em primeiro lugar. Carmine ficou naturalmente desapontado, mas o tempo encarregou-se de dar razão ao pai.
Nos anos imediatos, Carmine Infantino e Frank Giacoia continuaram a trabalhar em conjunto, mas já com os papéis invertidos. Era agora o primeiro quem trabalhava com o lápis, cabendo ao segundo arte-finalizar os seus esboços. Além da Timely, onde desenhavam as histórias do Tocha Humana e do Anjo, os dois amigos eram artistas freelancers na Hillman, na Holyoke e no estúdio de Jack Binder (fornecedor de material à Fawcett Comics).
1947 marcou o início da longa associação de Carmine Infantino com a DC. Em agosto desse ano saiu do prelo Flash Comics #86, que incluía o seu primeiro trabalho para a Editora das Lendas. A história, protagonizada por Johnny Trovoada, marcou a estreia da Canário Negro, cujo ousado visual concebido por Infantino se mantém praticamente inalterado até hoje. Apesar de ter sido criada como coadjuvante, a nova heroína depressa ascendeu a protagonista.
Antes de dobrar a esquina da década de 1940, Carmine Infantino era já o artista favorito do editor Julius Schwartz, que lhe confiou, entre outras, as histórias do Lanterna Verde (Alan Scott) e da Sociedade da Justiça da América.

Canário Negro foi a primeira criação de Carmine Infantino para a DC.

Com o declínio dos super-heróis trazido pelo pós-guerra, Carmine Infantino passou a desenhar histórias de faroeste, suspense e ficção científica. Admirador do trabalho de Milton Caniff, os seus protagonistas masculinos invocavam amiúde os da tira Terry e os Piratas. Independentemente do género, o trabalho de Infantino sobressaía sempre pela sua elevada qualidade. Era já apontado com um dos melhores artistas da sua geração.
Quando, em 1956, Julius Schwartz decidiu apostar no revivalismo dos super-heróis, Carmine Infantino e o escritor Robert Kanigher foram os escolhidos para criar uma nova versão do Flash. Muito diferente do seu antecessor da Idade de Ouro, Barry Allen fez a sua primeira aparição em outubro desse ano, no quarto número de Showcase. E não poderia ter causado melhor impressão junto dos leitores.
Parecendo saído de um filme de ficção científica, o novo Velocista Escarlate era um expoente de elegância retrofuturista. Funcional e de linhas simples, o seu uniforme, considerado um dos mais bonitos de sempre, transmitia uma sensação de agilidade mesmo quando o herói não estava em movimento. O seu emblema peitoral com um relâmpago estilizado depressa se tornou tão reconhecível como o S do Super-Homem ou o morcego do Batman. Nascia um novo ícone da cultura pop com assinatura de Carmine Infantino.
Estribado no dinamismo visual de Infantino e nas tramas invulgarmente maduras de Kanigher, o sucesso do novo Flash abriu caminho deslizante para a revitalização do Lanterna Verde e de outros heróis clássicos. Foi o dealbar de uma nova era de esplendor, que os historiadores adequadamente designariam como Idade de Prata. 

Sob o lápis de Infantino, as histórias do Flash eram sempre de alta rotação.

Em 1958, Infantino foi distinguido com o seu primeiro Alley Award (colecionaria 13 ao longo da carreira) pelo seu trabalho nas histórias do Velocista Escarlate. Sentiu, ainda assim, necessidade de sublimar alguns aspetos da sua arte. Nesse sentido, saudando os ensinamentos paternos, resolveu regressar à escola. Na Art Students League foi apresentado à obra impressionista de Edgar Degas e descobriu todo um novo horizonte de possibilidades. Durante essa fase de aprimoramento, o traço angular - e, por vezes, duro - de Infantino evoluiu gradualmente para um design de linhas finas influenciado pelas ilustrações de Lou Fine, Edd Cartier e outros artistas pulp.
Infantino continuou a refinar o seu estilo nos anos seguintes até se afirmar definitivamente como um dos melhores artistas da sua geração. Foi já com esse estatuto que, em setembro de 1961, desenhou outro marco importantíssimo na história da DC. Publicada em Flash #123, a história Flash of Two Worlds reintroduziu Jay Garrick e lançou as bases do Multiverso da Editora das Lendas. Curiosamente, a capa - uma das mais reproduzidas na história da 9ª Arte - foi esboçada por Infantino antes de Gardner Fox ter escrito a história. Método que se tornaria recorrente entre ambos, com as capas de Infantino a servirem de mote a ser glosado pelo escriba.
Alarmado com as fracas vendas da emblemática Detective Comics - sobre a qual impendia a ameaça de cancelamento -, em 1964 Julius Schwartz encarregou John Broome e Carmine Infantino de revitalizarem o Batman. A receita passou pela eliminação dos elementos pueris das histórias e pela modernização do visual do herói. À semelhança do Flash, sob o traço de Infantino o Cavaleiro das Trevas ganhou uma aparência ágil e elegante. De tão identificável que era o seu estilo, Infantino tornou-se o primeiro artista do Batman a não assinar o seu trabalho como Bob Kane - por quem, aliás, nunca escondeu a sua antipatia pessoal.
A alteração mais notável introduzida por Infantino no traje do Batman consistiu simplesmente na adição de uma elipse amarela ao redor do morcego estampado no peito, que se tornou parte integrante da personagem por mais de quatro décadas. 
No ar a partir de 1966, a série televisiva do Homem-Morcego com Adam West foi a primeira a adotar o novo figurino do herói, contribuindo decisivamente para o seu arreigamento no imaginário coletivo. No ano seguinte, quando os produtores exigiram uma coprotagonista feminina para a terceira temporada, Carmine Infantino criou, a meias com Gardner Fox, a versão definitiva da Batgirl. Por esta altura o artista já tinha ajudado a conceber outras personagens emblemáticas da DC, como Desafiador, Hera Venenosa e Homem-Elástico.

O novo visual do Batman tornou-se icónico.

Combinando publicidade comercial com Arte Pop, as capas desenhadas por Carmine Infantino possuíam uma jovialidade atraente que se tornou pedra de toque dos títulos da DC na Idade de Prata. Em vez de simplesmente colocarem em evidência uma determinada personagem ou situação, as capas de Infantino contavam pequenas histórias. Algumas quebravam igualmente a chamada quarta parede, com as personagens a interpelarem o público. De entre estas, a mais famosa é, provavelmente, a capa de Flash #163, na qual o Velocista Escarlate implora ao leitor: "Pare! Não deixe passar esta edição! A minha vida depende disso!". 
Em reconhecimento dos méritos de Infantino no campo do design e da composição, em 1967 a DC confiou-lhe a missão de desenhar todas as capas das suas revistas. Em concomitância, a arte interior de Infantino continuava a redefinir a linguagem visual das histórias de super-heróis. Mais notavelmente, a sua técnica de representação do frenético movimento do Flash - uma série de figuras numa enxurrada de linhas de velocidade - ainda hoje serve de modelo para desenhar o herói em ação.

As capas de Carmine Infantino eram um espetáculo à parte.

Quem também ficou rendido ao talento de Carmine Infantino foi Stan Lee. O então editor-chefe da Marvel aliciou-o a mudar-se para a Casa das Ideais a troco de 22 mil dólares. O que só não aconteceu porque Infantino preferiu aceitar - não sem alguma hesitação, dada a desvantagem salarial - o cargo de diretor de arte da DC. Mal teve, no entanto, tempo para aquecer o lugar.
Quando, em julho de 1967, a DC foi adquirida pela Kinney National Company (antecessora da Warner Bros.), Carmine Infantino foi surpreendentemente promovido a diretor editorial. No exercício dessas funções chancelou importantes mudanças com vista a reforçar a competitividade da Editora das Lendas num mercado onde a Marvel vinha ditando as regras.
Ao mesmo tempo que promovia artistas veteranos, como Joe Kubert e Mike Sekowski, a cargos editoriais, Infantino assegurou a contratação de um naipe de novos talentos. Neal Adams, Dennis O'Neill e Dick Giordano foram algumas das estrelas em ascensão trazidas para a DC pela mão do seu novo diretor editorial. Cujo mandato ficou igualmente marcado pelo lançamento de novos títulos e pela reformulação de praticamente todas as figuras de proa da DC. Outra aposta ganha foram as personagens licenciadas: Tarzan e Sombra tiveram o condão de atrair leitores da velha guarda.
Em 1970, tirando proveito das crescentes fricções entre Stan Lee e Jack Kirby, Carmine Infantino convenceu o Rei a trocar a Marvel pela DC. Nos cinco anos seguintes, Kirby, a quem foi concedida ampla liberdade criativa e outras regalias astrais, desenvolveu diferentes projetos, com destaque para a saga do Quarto Mundo protagonizada pelos Novos Deuses.
Apetrechada com grandes talentos e guiada pela visão de Infantino, a DC conseguia aos poucos equilibrar o jogo com a Marvel. Respirava-se confiança na Editora das Lendas, mas os ânimos não tardariam a ficar nublados.
A meteórica ascensão de Carmine Infantino na hierarquia da DC parecia imparável. Em 1971, assumiu as funções de publisher - espécie de diretor executivo -, dando início a um consulado tempestuoso em que, segundo os seus detratores, terá atingido o seu princípio de Peter.

Carmine Infantino fotografado no seu gabinete em 1973.

O período de Infantino como publisher correspondeu, com efeito, a uma retração das vendas mercê de más decisões de mercado e da competição acirrada - e, por vezes, desleal - da Marvel. O que não impediu as duas editoras de brindarem os leitores com o seu primeiro crossover
Apesar de ter escolhido pessoalmente Ross Andru para desenhar o histórico encontro entre o Super-Homem e o Homem-Aranha, Infantino, ao contrário do seu homólogo Stan Lee, não foi um entusiasta dessa iniciativa conjunta. Pouco tempo antes, a DC, por decisão de Infantino, aumentara o preço das suas revistas de 15 para 25 centavos. Subida inicialmente acompanhada pela Marvel, que entretanto baixara para os 20 centavos. 
Em virtude disso, Carmine Infantino ficou para sempre associado à chamada Implosão da DC, o cancelamento massivo de títulos lançados em barda para competir com o abundante material inédito que, desde o início da década de 1970, vinha sendo publicado pela Marvel. Somada ao aumento dos preços em contexto de crise económica, a proliferação de novas séries periódicas - quase sempre estreladas por personagens secundárias - revelou-se um erro estratégico que comprometeu o próprio futuro da Editora das Lendas.

Carmine Infantino apadrinhou, a contragosto, o primeiro crossover Marvel/DC.

Entre as medidas mais controversas tomadas por Carmine Infantino ao leme da DC esteve a demissão de artistas que reivindicavam royalties e outros direitos laborais, substituídos por mão-de-obra filipina muito mais barata. Ironicamente, em 2004 o próprio Infantino processou judicialmente a DC alegando ter sido espoliado dos direitos sobre várias das suas criações para a editora, incluindo o Flash. O processo seria no entanto arquivado quando as suas alegações foram consideradas improcedentes pelo tribunal.
Durante a pré-produção de Superman e Superman II, Carmine Infantino foi consultor de Mario Puzo na produção dos respetivos enredos. Apesar de o seu contributo ter sido determinante para o sucesso dos filmes, Infantino não foi sequer creditado. Isto depois de ter feito tudo ao seu alcance para boicotar a campanha pelo reconhecimento dos direitos de Jerry Siegel e Joe Shuster que antecedeu a chegada do Homem de Aço aos cinemas.
À beira da falência devido à má administração, em julho de 1976 a DC demitiu Carmine Infantino. Embora os contornos desta decisão permaneçam até hoje pouco nítidos, sabe-se que não se tratou de um processo amigável. Fazendo jus à sua forte costela italiana, Infantino terá reagido intempestivamente, jurando que nunca mais voltaria a trabalhar para a empresa.
Após a sua saída da Editora das Lendas, Infantino procurou, em vão, novo cargo executivo. Decidiu então regressar às origens, tornando-se artista freelancer da Warren Publishing e da Marvel. O ponto alto da sua passagem pela Casa das Ideias aconteceu quando desenhou Star Wars, título que ajudou a transformar no maior campeão de vendas do mercado. 

Na Marvel, Infantino fez de Star Wars um best-seller

Contra todas as expectativas, Carmine Infantino regressou à DC em 1981. Reassumindo, nesse mesmo ano, a série mensal do Flash, à qual continuou a emprestar o seu traço até ao cancelamento nas vésperas da Crise nas Infinitas Terras. The Daring New Adventures of Supergirl e V (título mensal vinculado à série televisiva homónima) foram outros dos projetos em que deixou a sua impressão digital durante essa segunda passagem pela Editora das Lendas. 
Antes de se aposentar, a meio da década de 1990, Carmine Infantino rendeu Marshall Rogers na tira diária do Batman e lecionou na prestigiada School of Visual Arts. Alçado ao patamar de lenda viva dos quadradinhos, continuou a atrair os holofotes mediáticos por via das suas aparições regulares em convenções de fãs, onde participava em conferências e vendia exemplares autografados da sua autobiografia intitulada The Amazing World of Carmine Infantino
O dia 4 de abril de 2013 foi o último que Carmine Infantino viu nascer. A poucas semanas de cumprir o seu 88º aniversário, o artista faleceu, de causas naturais, no seu apartamento em Manhattan. O homem que um dia sonhou ser arquiteto levou consigo a memória descritiva da Idade de Prata. Criou personagens que ainda hoje são amadas e elaborou o estilo visual da narrativa gráfica para as gerações vindouras. Apesar das controvérsias, o seu prestígio na comunidade artística saiu incólume. Desde 2000 que o nome de Carmine Infantino figura no Jack Kirby Hall of Fame que imortaliza outros grandes vultos da 9ª Arte. Homenagem merecida a quem teve na genialidade a fonte e o esteio da sua exuberante obra.

Lançada em 2001, a autobiografia de Carmine Infantino é o testemunho de diferentes épocas.


*Este blogue tem como Guia de Estilo o Acordo Ortográfico de 1990 aplicado à norma europeia da Língua Portuguesa.
*Artigos sobre Gardner Fox, Neal Adams, Dennis O'Neill, Timely Comics, Super-Homem contra Homem-Aranha e Batgirl disponíveis para leitura complementar.







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